O sistema Ferry-Boat é fundamental tanto para o deslocamento da população local, que sai da Ilha de Itaparica para trabalhar em na capital baiana, quanto dos turistas durante a alta temporada. Apesar disso, as empresas privadas que o administram sempre abrem mão da qualidade do serviço em virtude da sua sede de lucros.
Gustavo Rebelo e Mateus Costa | Salvador
No dia 4 de janeiro a empresa Internacional Travessias, operadora do Sistema Ferry-Boat na Bahia, foi multada em R$ 1 milhão pela CODECON (Diretora de Ações de Proteção e Defesa do Consumidor de Salvador). A penalidade foi imposta por conta das repetidas falhas na prestação do serviço, que incluem o descuido completo com a higiene das embarcações, caos nas filas para comprar as passagens e embarcar, precariedade dos equipamentos, dentre outras.
Apenas no ano de 2023, ocorreram dois episódios de colisão entre embarcações¹. Somado a isso, a pane elétrica que causou falta de energia e deixou o Ferry Rio Paraguaçu à deriva no mar por alguns minutos no primeiro dia do ano foi o estopim para a multa, que tem caráter de medida cautelar. O prefeito Bruno Reis (União Brasil) anunciou que estuda a possibilidade de interditar o serviço, caso a empresa não tome as medidas necessárias para corrigir as falhas.
O Sistema Ferry-Boat e a integração do território baiano pelo mar
Em sua geografia, Salvador possui uma forma peninsular, sendo banhada a Leste pelo Oceano Atlântico e a Oeste pelo mar da Baía-de-Todos-os-Santos, que banha também os municípios do Recôncavo Baiano.
Desde o período colonial, a navegação foi a principal atividade responsável por integrar a capital baiana às outras províncias, por onde ocorria um intenso fluxo de transporte de mercadorias e de pessoas. A partir do desenvolvimento do sistema rodoviário no século XX, se tornou cada vez mais viável o transporte terrestre entre Salvador e demais territórios da Bahia. Porém, este nunca superou por completo o meio marítimo. Basta observar a geografia do estado para perceber como a travessia por mar encurta a distância da capital a outros pontos da costa baiana.
Visando estabelecer um meio de transporte marítimo de massa integrado às modernas rodovias, em 1970 se inaugura o Sistema Ferry-Boat. Os usuários desse serviço passaram a embarcar em balsas de grande porte, cujo limite de passageiros pode passar de mil pessoas, realizando a travessia entre Salvador (a partir do Terminal São Joaquim) e a Ilha de Itaparica (no Terminal Bom Despacho). Para o acesso ao continente a partir da Ilha, se construiu a Ponte do Funil, na região sul de Itaparica. Através desse caminho integrado, dezenas e até centenas de milhares de baianos e turistas chegam todos os meses ao Recôncavo Baiano e às famosas praias do Litoral Sul do estado.
Quem é o responsável pela precarização do serviço?
Os problemas apontados pela CODECON não são pontuais e nem surgiram recentemente. Ao contrário, são velhos conhecidos do povo baiano, e além de permanentes, se agravam nos períodos de feriado e datas festivas².
A Internacional Travessias Salvador S.A. é uma subsidiária da Internacional Marítima, empresa que presta serviços no Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Santa Catarina. A partir do contrato de concessão firmado em 2014 com o governo do estado, assumiu o comando do Sistema Ferry-Boat baiano pelo prazo de 25 anos, prorrogáveis por mais 25. Seguindo à risca o estabelecido em contrato, os usuários do Ferry-Boat terão que se submeter ao péssimo serviço da IT por intermináveis 50 anos.
Mas engana-se quem pensa que a precarização do Ferry-Boat começou com o início das operações da IT. Antes da sua contratação, a empresa TWB, então responsável pelo serviço, foi acusada pelo governo estadual de superfaturar³ a aquisição de duas embarcações no valor de R$ 15 milhões, além de reduzir constantemente sua frota por problemas mecânicos nos barcos. A precariedade na gestão chegou a níveis tão alarmantes que, em 2012, a empresa passou por uma intervenção estatal, tendo seu contrato de concessão rescindido.
Além dos problemas causados pela administração da TWB, o povo baiano se viu diante de uma enorme tragédia em agosto de 2017, quando a lancha Cavalo Marinho I (de propriedade da empresa CL Transporte Marítimo) naufragou⁴ durante a travessia entre Salvador e Ilha de Itaparica. O acidente matou 19 pessoas, além de deixar 89 feridos. As lanchas são embarcações de menor porte que prestam serviço complementar ao Ferry-Boat, e tal qual este, são operadas por empresas privadas que ganham a concessão deste serviço a partir de licitação junto ao governo estadual.
Mesmo diante desse histórico generalizado de maus serviços prestados, não se ouvirá da boca do Governador ou do Prefeito uma verdade óbvia: a iniciativa privada opera em busca do lucro, e sempre que necessário sacrifica a qualidade do serviço para seu retorno financeiro. O Jornal A Verdade vem há tempo denunciando as consequências negativas da gestão privada do transporte público, em especial das empresas de ônibus. Entretanto, devemos aprofundar a nossa compreensão e debate a respeito das consequências deste modelo de gestão para outros modais de transporte, como o hidroviário. Defender a gestão direta desses serviços pelo Estado, através de instituições públicas bem administradas e financiadas, é uma bandeira fundamental para a integração territorial necessária para um país com dimensões continentais como o nosso.
Fontes: