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terça-feira, 16 de julho de 2024

Candeia e a luta pela cultura nacional

Raphael Almeida | Rio de Janeiro (RJ)


Seu pai era operário gráfico e sua mãe, dona de casa. Antônio Candeia Filho, o Candeia, nasceu em 1935 no subúrbio do Rio de Janeiro. A casa que cresceu era frequentada por figuras que fundaram o samba carioca, como Paulo da Portela, Zé da Fome, João da Gente, Dona Esther, Pixinguinha e ganhou intimidade com a música assistindo às rodas de choro que aconteciam em sua sala. O Antônio Candeia (pai) participou da criação do Bloco Carnavalesco Vai Como Pode, que, mais tarde, se transformaria na Escola de Samba Portela. Foi ele o responsável por idealizar a primeira comissão de frente da história do Carnaval.

Candeia, o filho, também marcou seu nome na história do samba, sendo influência para todos os sambistas que vieram depois dele. Começou na Portela ainda muito cedo: com apenas 16 anos, venceu sua primeira disputa de samba de enredo na escola. A cereja do bolo veio na quarta-feira de cinzas: a Portela foi campeã do Carnaval com o samba escrito por ele, recebendo nota máxima do júri, fato inédito até então. Candeia venceu outras quatro disputas de samba na escola.

Mudanças no Carnaval carioca

Nos anos 1950, ocorre a entrada da indústria fonográfica no Brasil com o advento dos discos de vinil e das leis do direito autoral, que transformam as músicas em mercadorias a serem comercializadas. As escolas de samba não passaram ilesas: ao ter o samba no disco, o compositor ganhava muito dinheiro. Assim, as disputas que aconteciam entre os membros da ala de compositores passaram a serem feitas também por membros de fora das escolas.

Outra mudança promovida para valorizar a espetacularização do Carnaval e torná-lo “mais atrativo” foi a mudança na figura do carnavalesco, que, até hoje, é responsável pela concretização da ideia do espetáculo visual, que antes vinha do chão da escola, e então passou a ser feito por pesquisadores contratados nas universidades. Os primeiros carnavalescos eram integrantes das próprias escolas, que dispunham unicamente de alguma habilidade artística, não tendo nenhuma formação acadêmica para tal.

O ponto de virada na grande transformação do papel do carnavalesco se dá no desfile de 1959. A Acadêmicos do Salgueiro contrata o aderecista Dirceu Nery e a figurinista suíça Marie Louise para fazer o carnaval da escola. Um ano mais tarde, a chegada de Fernando Pamplona, professor da Escola Nacional de Belas Artes, consolida esta nova tendência.

Nova fase de vida

Candeia chegou a trabalhar como policial civil e, inclusive, era conhecido por abordagens truculentas. Mas, em 1965, ao se envolver numa briga de trânsito, o portelense foi alvejado por cinco tiros e uma bala se alojou em sua medula espinhal, deixando-o paraplégico. Passou, então, a refletir profundamente sobre sua vida e a importância da defesa da cultura nacional. Não aceitava as ações da indústria fonográfica estadunidense, que esmagavam a música brasileira, e denunciou os artistas brasileiros que submetiam suas músicas à proposta melódica e rítmica do estrangeiro.

 Nessa fase compôs “Preciso me encontrar”, onde os versos seriam eternizados na voz do mestre Cartola: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Sorrir pra não chorar/ Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr/ Ouvir os pássaros cantar/ Eu quero nascer/ Quero viver”. Candeia percebeu que as Escolas de Samba estavam mudando rapidamente sua forma de se relacionar e de se apresentar por influência do mercado, tanto do turismo quanto fonográfico.

Na cabeça das elites econômicas e governantes, o país que apresentava para o mundo o seu plano de milagre econômico “cinquenta anos em cinco” não poderia ser apresentado para o exterior com uma cultura construída por filhos de pessoas escravizadas. Não à toa, nessa época, surge a Bossa Nova (um samba embranquecido, sem tambor e desafricanizado), que era pintada internacionalmente como a expressão da cultura nacional.

Nasce um novo quilombo

Já na década de 1970, alguns sambistas se revoltaram com o desenrolar dessas bruscas mudanças e, assim, transformaram sua indignação em músicas, como Nelson Sargento, ao compor “Agoniza, mas não morre” (1978). Outros abandonaram suas agremiações e fizeram, segundo eles, um caminho de reencontro do samba consigo mesmo.

Em 1974, a Portela apresentou o enredo “O mundo melhor de Pixinguinha” e abriu a escola para compositores de fora, sendo escolhido a parceria de dois nomes vindos da MPB: Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Essa mudança bateu de forma violenta na Ala de Compositores portelenses, uma das mais respeitadas da época, resultando no afastamento de Zé Ketti e de outros sambistas. Além disso, a presença da indústria fonográfica resultou diretamente no trabalho do compositor, que era obrigado a fazer um samba em até cinco minutos para caber no disco.

Outro que rompeu com essa lógica foi Candeia, que percebeu que a espetacularização do Carnaval era favorável apenas às grandes empresas de turismo, que submetiam a festa popular aos seus próprios interesses financeiros. Com isso, promoveu, dentro da Portela, a maior crise interna na escola desde a morte de Paulo Benjamin de Oliveira, seu fundador.

Candeia era, naquele momento, a grande estrela da agremiação, mas decidiu sair da escola e criar, em 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, um espaço onde os sambistas poderiam se reunir para fazer sua festa sem o assédio da indústria fonográfica, da indústria do turismo, das imposições estadunidenses à cultura nacional. 

A escolha do nome não foi à toa: para Candeia, as Escolas de Samba serviam como quilombos urbanos, espaços de reunião, socialização e luta das pessoas pobres. O Quilombo nasce com um manifesto de fundação denunciando a submissão da cultura nacional aos ditames da cultura norte-americana, contra a homogeneização, pasteurização e industrialização da música nacional. Diz um trecho do manifesto:

“A posição do Quilombo é principalmente contrária à importação de produtos culturais prontos e acabados, produzidos no exterior. (…) Quilombo não pretende chamar atenção do consumo, violentador da cultura tradicional, mas sim denunciar sua participação. (…) Os sambistas estão sendo anestesiados, controlados e roubados. (…) Quilombo é um núcleo de resistência contra as deformações que vêm afetando a arte popular brasileira. Quilombo é uma greve de sambistas contra a populução no meio.”

O manifesto de Candeia, apresentado acima, entregue à direção da Portela, trazia sugestões divididas em tópicos: introdução; críticas que julgamos construtivas; nossas sugestões (direção, gigantismo, fantasias, alegorias, samba de enredo, destaque, participação de componentes, posição externa) e conclusão. Tratado como letra morta, suas ponderações não foram nem mesmo discutidas no seio da diretoria da Portela, sendo a gota d’água para compositores como Nei Lopes, Wilson Moreira e Paulinho da Viola, que também foram para o Quilombo. Mais tarde, incorporam-se outros, como Martinho da Vila, Waldir 59, Elton Medeiros, Monarco. O Grêmio era ainda frequentado por Paulo César Pinheiro e Clara Nunes, entre outros expoentes do samba carioca.

O Quilombo era um grito de insurreição e Candeia se tornou uma liderança da cultura nacional, dos direitos civis da população negra, dos sambistas vítimas da degeneração das escolas de samba (cada vez mais comerciais) e um ferrenho opositor da ideia que existia, e ainda existe, de que “o que fosse bom para os EUA, era bom também para o Brasil”. 

Raquel Trindade foi responsável pelo primeiro enredo do Quilombo. Inspirada na frase de seu pai, o pintor, ator, teatrólogo e militante do Partido Comunista, Solano Trindade, que dizia: “pesquisar na fonte e devolver ao povo em forma de arte”. Nei Lopes e Wilson Moreira foram responsáveis por fazer a letra, conhecida como “Ao povo em forma de arte”.

Candeia cantou a vida dos trabalhadores em “O Invocado”, que denuncia a falta de oportunidade de emprego para os pobres, escreveu “Dia de Graça”, que buscava levantar a autoestima dos negros brasileiros: “Não negue a raça/ Torne toda manhã dia de graça/ Negro, não se humilhe nem humilhe a ninguém/ Todas as raças já foram escravas também”.

FONTE: “Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz”, de Antônio Candeia Filho e Isnard Araújo

Matéria publicada na edição nº 288 do Jornal A Verdade

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