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sábado, 16 de novembro de 2024

“Vivemos os efeitos das mudanças climáticas”, diz professor da UFRGS

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Para entender melhor a dinâmica das chuvas e inundações no Rio Grande do Sul, especialmente como se poderia preveni-las e qual sua relação com as mudanças climáticas, A Verdade entrevistou Fernando Dornelles, engenheiro civil e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela UFRGS, onde é professor no Departamento de Hidromecânico e Hidrologia. Confira perguntas da edição impressa e de entrevista ao vivo

Redação e Thiago Salvador


A Verdade — Fernando, mal o povo gaúcho se recuperou das enchentes do final do ano passado e ele já está sofrendo com outras inundações. Essas tragédias ocorrem por conta da crise climática ou por despreparo do governo do Estado do Rio Grande do Sul e do município de Porto Alegre?

Fernando Dornelles — É multifatorial, nem só mudança climática e nem só falta de gestão do uso do solo, mas tudo isso daí colaborou. Falando exclusivamente da questão da “improbabilidade” de eventos como esses que vimos, temos que lembrar que nós monitoramos esses rios há muitos anos. Desde 1899, a gente tem a série de níveis máximos do rio (ou lago) Guaíba, por exemplo.

A partir do momento em que se iniciaram os registros sistemáticos, aconteceram vários eventos acima da cota 3, que tem sido chamada de “cota de inundação”. Eu tenho críticas a essa denominação, porque ali no bairro Arquipélago, por exemplo, já houve casas sendo atingidas com 1,80m ou 2 metros de cheia – e se em qualquer parte da cidade a população já está sendo afetada, essa para mim é a cota de inundação.

Antes de 1941, a gente teve dois eventos onde a cota superou 3 metros. Depois, a gente teve o ano de 1941, que foi um evento bem distinto desse que está ocorrendo agora, foi mais gradual, demorou mais de 20 dias para alagar. Essa subida do Guaíba também gerou problemas em todo o Rio Grande do Sul, mas naquela época havia menos formas de registrar, então existem poucas fotos – ainda que um livro de um jornalista tenha organizado essas informações há uns seis, sete anos. Nessa enchente de 1941, o pico foi de 4,75 metros, ou seja, 60 centímetros abaixo do que foi atingido no Cais Mauá no primeiro fim de semana de maio.

Aquilo causou um grande impacto. A cidade inteira foi atingida, até porque a região central era praticamente toda a cidade de Porto Alegre naquela época. Isso criou um grande trauma e durante as décadas de 50 e 60, com o grande crescimento e desenvolvido na cidade, isso deu impulso para o projeto de proteções não só para Porto Alegre, mas também Canoas e São Leopoldo. Em 1968, de forma bem ágil, isso praticamente se concluiu. Por outro lado, as cheias que ocorreram nessa época foram menores, de no máximo 3,13m. Foram todos projetos do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), extinto em 1992 pelo governo Fernando Collor sob alegação de corrupção.

Com isso, os municípios que tinham estruturas do DNOS absorveram esses equipamentos. Aqui em Porto Alegre, isso ficou por conta do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), que fazia sua operação e manutenção até também ser extinto pelo governo Marchezan. Depois, houve um certo limbo: essa tarefa de manter o sistema de proteção e drenagem passou por uma secretaria do município até chegar, atualmente, ao Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE).

O critério de projeto do sistema foi a cheia de 41, que foi de 4,75m, e mais uma borda de segurança – ou borda livre –, para incertezas no dimensionamento e o efeito das ondas do Guaíba de 1,25m, chegando assim na cota de coroamento, de 6m. A princípio, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo estariam protegidas para essa cota.

Além disso, existem elementos que complementam esse sistema, como o dique e o pôlder. Lembrando a aula de geometria, o pôlder é como se fosse a área onde queremos proteger, e o dique é o perímetro ao redor. São 68 quilômetros de diques aqui em Porto Alegre. Toda a Freeway é parte do dique, e ele continua ali pela avenida Castelo Branco – onde a comporta 14 rompeu, bem próximo à ponte do Vão Móvel. Na região central, a alternativa técnica foi o uso da cortina de concreto: o muro da Mauá. Esse sistema continua ao sul do Gasômetro e ao longo de toda a avenida Beira-Rio.

Por que a avenida Ipiranga não está inundada agora, por exemplo? Porque ela é o dique de proteção – o dique interno, como nós chamamos. As duas margens do Arroio Dilúvio fazem parte desse sistema, estão na cota seis. Continuando para o sul, ele ainda vai para o Pontal do Estaleiro e termina no pôlder do Hipódromo.

Fernando, há riscos de inundação para a região metropolitana e áreas próximas? As cidades banhadas pela Lagoa dos Patos, ao que parece, estão em risco. O que se pode esperar para os próximos dias? [Nota da edição online: a entrevista foi realizada no início do maio e a região da Lagoa dos Patos, de fato, foi duramente afetada pelas enchentes]

Sim, vai ter um repique. Não deve chegar ao nível máximo que já foi atingido, nem no Vale do Taquari e nem em Porto Alegre, mas o nível alto do Guaíba vai se manter e continuar prejudicando toda a região metropolitana. Na região do Vale do Taquari, que foi muito afetada e viu uma cheia recorde, a gente já está observando de novo a elevação dos níveis, principalmente ali em Muçum, Roca Sales, Encantado.

Esses rios têm uma hidrologia específica, em que eles tem uma cheia muito mais agressiva quanto mais a montante a gente vai neles. O rio Taquari subiu da cota 13 até a cota 33, ou seja, subiu 20 metros! As alternativas que temos para conter esse rio são muito distintas das que Porto Alegre tem. Lá, por exemplo, é inviável fazer um sistema de proteção com diques. Se a gente já tem problemas urbanísticos aqui na capital com o muro da Mauá, que tem três metros de altura, imagina criar lá uma estrutura com oito, dez ou até doze metros para proteger a cidade? Nessas regiões, o indicado é ter medidas que chamamos de não-estruturais, principalmente as medidas de zoneamento.

É preciso definir as zonas de passagem de cheia, onde não deve haver nenhum tipo de ocupação. Muitos desses lugares onde vemos imagens de casas destruídas deveriam ser zonas de passagem de cheia. Ali, a velocidade e a profundidade dos rios são altas e a destruição e o risco de morte são muito altos. Por simulação matemática, a gente consegue definir esses campos de velocidade e profundidade, classificar as áreas e dizer o que é uma zona de passagem de cheia, o que é uma zona de restrição e por aí vai.

O que é uma zona de restrição? É onde as profundidades e as velocidades são menores e é possível ter algum tipo de ocupação, mas com edificações preparadas para conviver com as inundações. Nela, não se pode ter escolas, hospitais ou sede da defesa civil. A cidade tem que se preparar e entender que as suas estruturas de serviço importantes para atuar durante uma emergência não podem estar em áreas inundáveis. Essa lógica é a que deve ser implementada na região do Taquari.

Outra coisa que complementa os diques são as casas de bomba. O dique impede que a água entre na cidade, mas também impede que a água saia. Como, então, fazer a água sair da cidade quando o Guaíba está muito alto? A única maneira é colocar energia nesse escoamento, por meio de bombeamento, que faz com que a água consiga passar por uma cota mais alta.

Existem, porém, os pontos vulneráveis do sistema, as chamadas partes móveis. Existe um problema com o acesso à região portuária, que precisa de entradas e passagens no sistema de proteção. O restante é tudo fixo, não exige operação, apenas vistoria e manutenção.

No dique do Sarandi, não tem comportas e a água entrou por lá. Circulam filmagens da enchente passando por cima do dique. A cota do dique estava certa?

Nesse caso, ninguém nunca checou isso para saber se o dique estava lá na cota 6. Na verdade, ele teria que ser até um pouco mais alto, porque como é o Rio Gravataí, a gente tem a questão da linha d ‘água. O projeto do dique de Canoas é 20 centímetros mais alto do que o de Porto Alegre, justamente por essa declividade da linha d ‘água, assim como lá em São Leopoldo ele também tem que ser mais alto. Então, lá no Sarandi, assim como no Matias Velho, será que o dique todo estava na cota 6,20m? São coisas que a gente precisa saber.

Quando a água passa por cima de um dique de terra, esse é o primeiro passo para o rompimento do dique. Essa é a situação mais grave que se pode ter, porque em vez de uma inundação gradual que vamos acompanhando de centímetro em centímetro o nível do rio, no rompimento a gente tem uma inundação brusca, que em questão de minutos uma região inteira pode ser inundada. Foi o que a gente observou em alguns pôlderes, como Sarandi e Matias Velho, onde a água pegou as pessoas de surpresa.

Disso, é importante tirar outra reflexão. Viver dentro de um pôlder não pode ser vida normal, a gente tem que saber que é uma zona de inundação e que estamos protegidos por um sistema que pode falhar. É preciso que haja todo um protocolo. Acompanhando a cheia do rio, é preciso fazer anúncios para a população, que deve estar preparada para organizar suas coisas, subir seus materiais, pegar seus documentos e evacuar a região.

Com o furacão Katrina, a cidade de New Orleans, nos Estados Unidos, aprendeu isso. A inundação brusca, infelizmente, acabou levando a centenas de mortos.

Nana Sanches (UP, Olga) — Fernando, queria te agradecer e colocar mais algumas questões. Ontem, eu estava vendo o Atlas do Rio Grande do Sul, uma publicação que já tem uns 20 anos e tem toda uma parte dedicada a apresentar para a população como funciona esse sistema de prevenção de inundações, que é uma grande e ótima obra da engenharia necessária para a cidade de Porto Alegre e parte da região metropolitana. Nas últimas gestões, dos prefeitos Marchezan e Melo, todas essas estruturas que o professor relatou aqui, de diques e estações de bombeamento, ficaram sem nenhum tipo de monitoramento e melhora. Não houve investimento nessas áreas, o que dificultou bastante a reversão do quadro de enchente no centro de Porto Alegre.

Isso tudo faz parte do neoliberalismo. Se a gente está conseguindo ter alguma resposta é porque os trabalhadores do DMAE, com apoio do pessoal da UFRGS, têm feito um grande esforço. O Departamento foi sucateado, mas mesmo assim conseguiu dar uma resposta e manter alguns equipamentos de tratamento de esgoto nas cidades. Sem isso, parece que a situação poderia estar ainda pior.

Nesse assunto do investimento, tem sido argumentado que foram gastos milhões na modernização das casas de bombas. De fato, isso aconteceu, temos agora bombas mais modernas e houve reformas na parte elétrica, além do trabalho de desassoreamento do Arroio Areia. Porém, nada disso foi investimento para evitar o problema que estamos tendo agora, que foi o ingresso da água dentro da área protegida pelas comportas pelas próprias casas de bomba.

As tampas de inspeção dessas galerias trabalham com pressão muito forte, era preciso que houvesse tampas herméticas. Rotineiramente, por exemplo, acontece o extravasamento de uma tampa na Voluntários da Pátria com a Álvaro Chaves. Quando chove forte em Porto Alegre, sai água daquela tampa, que é uma tampa de inspeção desse conduto forçado, que é uma galeria que drena da parte alta e descarrega no Guaíba. Enquanto está atravessando toda a parte baixa da cidade, esse conduto está sob pressão, então são necessárias tampas de inspeção robustas e competentes para resistir a essa pressão de dentro para fora. O que evitaria esse problema [de extravasamento] são coisas simples: um dimensionamento de chapa de aço, parafusos e borrachas para garantir a vedação adequada já serviriam.

Quando a gente vê utilização de sacos de areia, por exemplo, algo está errado. As comportas de Porto Alegre são autônomas, não deveriam precisar disso. O saco de areia pode ser uma medida efetiva contra inundações, mas eles são emergenciais. Só é para usar quando a água já está subindo. Quer dizer, o projeto de contenção é de 1968, como que a gente chega em 2024 dependendo de saco de areia? Além do mais, existem técnicas corretas para fazer uma barricada de sacos de areia, não é simplesmente empilhar qualquer saco, que é o que estamos vendo.

Os órgãos responsáveis, ao fazer o edital da modernização do sistema, deveriam ter previsto que as estruturas seriam solicitadas com tanta demanda.

Por que as cidades não aguentam mais as inundações?

Temos que analisar a localização das cidades em relação aos cursos d’água, boa parte das cidades se estabeleceram preferencialmente em regiões planas e próximas aos rios pelos diversos benefícios de comodidade, como de transporte, de uso da água e de conveniência para edificar (preferência por terrenos planos).

No entanto, ao ocupar estas zonas, a ameaça de serem inundadas passa a existir a cada evento de chuva intensa na bacia hidrográfica. Longos períodos sem grandes inundações fazem com que esta ocupação seja mais intensa e despreocupa com a ameaça de inundação. Quando ocorre uma cheia importante, os prejuízos são amplificados. Porém, estamos vivenciando os efeitos das mudanças climáticas. As cheias estão sendo mais frequentes e cheias históricas estão sendo superadas. As consequências deste comportamento são evidenciadas pela população impactada, em especial a parcela menos favorecida, que está constantemente se recuperando de inundações passadas por total falta de condições e oportunidades para sair desta situação.

Como será o processo de reconstrução pós-enchente?

Preferimos não falar em reconstrução, pois isso tem uma conotação de recair no mesmo erro, pois é evidente que nem tudo estava adequado já que foi destruído. Assim, preferimos usar “construir melhor” ou “recuperar”, pensando muito a respeito do que deu errado e como evitar.

É necessário principalmente estudar as formas de dar mais robustez e resiliência às estruturas de serviços públicos, como sistemas de proteção contra cheias, estações de tratamento de água, rede elétrica, transporte e, fundamentalmente, realizar programas sócio-habitacionais para prover melhores condições para os mais atingidos e desprovidos de recursos próprios para não serem impactados pelos desastres, realocando em zonas seguras de modo digno.

Este texto reúne trechos de matéria publicada na edição impressa nº 292 do jornal A Verdade e entrevista ao vivo realizada no canal do jornal.

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