“Eles deram mais de 70 tiros numa casa cheia de crianças”

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Na operação em que matou o garoto João Pedro Matos, de 14 anos, a Polícia Militar do Rio de Janeiro deu mais de 70 tiros na casa de sua família. Mesmo assim, policiais não foram condenados pelo Poder Judiciário. Em entrevista ao jornal A Verdade, Rafaela Matos, mãe de João Pedro, conta sobre sua luta por justiça

 Igor Marques, Daniel Paiva e Redação RJ


No Centro de São Gonçalo (RJ), dezenas de pessoas vivendo nas ruas. Nas portas dos restaurantes, pessoas em situação de miséria pedem para que alguém possa lhes pagar um prato de comida. É neste cenário que encontramos nossa entrevistada: Rafaela Matos, professora de educação infantil, de 41 anos, e mais uma mãe que teve a vida de seu filho arrancada por um agente policial do Estado. João Pedro Matos foi assassinado, em maio de 2020, aos 14 anos de idade, dentro de sua própria casa, no Complexo do Salgueiro, uma das principais favelas de São Gonçalo.

Segundo o Instituto Fogo Cruzado, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro bateu recorde de crianças baleadas no ano passado, com 25 crianças atingidas, sendo 10 vítimas fatais. A maioria delas morreu em ações policiais violentas.

Os policiais deram mais de 70 tiros e um deles acertou João Pedro. Em 10 de julho de 2024, a juíza Juliana Bessa, da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, absolveu sumariamente os agentes Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, acusados do crime. Rafaela dedicou um pouco do seu tempo para nos contar sua história.

A Verdade – Como têm sido esses quatro anos de luta por justiça pelo seu filho?

Rafaela Matos – A gente acaba tendo que não viver o luto para entrar na luta. Esses quatro anos têm sido de uma luta muito desumana, porque é uma justiça que demora e acaba se tornando uma injustiça. A gente fica tentando juntar os cacos do que sobrou, porque é arrancado de nós o que a gente tem de mais precioso e de uma forma muito brutal e muito cruel.

Eu lembro que em uma das primeiras entrevistas que o meu esposo deu, ele disse que o Estado não matou somente João Pedro, mas matou a nossa família. Então, todos os dias essa busca por justiça nos mata um pouco, porque essa luta é incansável, desumana.

É algo que não vai trazer o nosso filho de volta, mas traz um alento aos nossos corações. E agora, no mês de julho, a juíza teve todas as provas necessárias para remeter os réus ao júri popular e nós fomos surpreendidos pela Justiça do Estado do Rio de Janeiro, absolvendo os três policiais acusados na morte do João Pedro. Eles ainda foram absolvidos por legítima defesa, alegando que teve um confronto dentro da casa, sendo que todas as perícias provaram que não houve confronto.

Foi uma decisão absurda. A juíza negligenciou as provas do Ministério Público e o depoimento dos adolescentes que estavam dentro da casa, que viveram tudo. Ela só ficou com os depoimentos dos policiais, que tiveram quase quatro anos para combinar e decidir o que eles falariam, para que os depoimentos dos três batessem um com o outro.

Em todo o país, muitos policiais acusados de assassinatos de jovens nessas operações são absolvidos pelo Judiciário. Como vocês enxergam o funcionamento desse sistema?

É um sistema que só nos leva a pensar que existe uma combinação entre o Judiciário e as Polícias porque, nos últimos anos, eu só tenho assistido à Justiça absolver policiais envolvidos em mortes de jovens negros no Estado do Rio de Janeiro. No caso do João Pedro, não chegou nem ao júri popular, porque a juíza não deu nem esse direito a minha família, que era o que nós esperávamos.

Você hoje está no movimento das mães que lutam por justiça para aquelas crianças e adolescentes assassinados pela Polícia. Como é este movimento?

Existe um movimento de mães, que nos acolhem. São mães que são vítimas do Estado. Eu tenho feito parte de alguns. Eu não posso estar em todos os momentos, até mesmo porque eu tenho a limitação do meu trabalho. Mas, nas vezes que eu não estou, o meu esposo está e nós fazemos parte desse coletivo de mães. Estamos juntas nessa busca por justiça a cada dia uma tenta apoiar a outra e assim a gente corre em busca de que algo mude.

Quais são os próximos passos da luta por justiça por João Pedro?

Começa um novo período, que a gente sentia medo e não esperava que fosse acontecer dessa forma. E agora a luta continua. Vamos recomeçar porque agora cabe o recurso. Nós vamos recorrer ao Ministério Público e à Defensoria e é isso: a luta não para, a luta continua.

Se o João Pedro fosse um jovem que morasse na Zona Sul, com certeza o caso já estaria solucionado, os policiais já estariam presos ou já teriam sido julgados há muito tempo. É claro que a Rafaela, a mãe do João Pedro, não é uma diplomata, que acha absurdo um policial parar e apontar arma para um adolescente, para uma criança. [Ela faz referência ao caso dos filhos de diplomatas do Canadá, Gabão e Burkina Faso, que sofreram uma abordagem violenta da PM no início de julho, no Rio].

Parece que realmente foge a memória. Parece que a sociedade esquece que os policiais invadiram a casa do João Pedro. Uma casa onde só tinha crianças. E invadiram atirando, deram mais de 70 disparos dentro de uma casa onde só tinha criança. Então, é muito normal no Estado do Rio de Janeiro isso acontecer.

Como você observa o papel do racismo nessa estrutura em que grande parte dos mortos pelas Polícias são jovens negros?

Eu sempre morei na favela. João Pedro era uma criança criada dentro de casa, mas eu nunca falei com ele a respeito do racismo, nunca falei dessa questão da Polícia parar. Eu nunca tinha me apercebido da maneira que a Polícia entrava nas favelas e o que eles faziam.

Ouvia relatos, mas, quando vivemos isso na pele, a gente tem uma visão aberta para aquilo que você não imaginava que poderia acontecer com você, que a gente acha que sempre vai acontecer com os outros. Então, vi essa questão, porque vi a diferença de como a Polícia entra na Zona Sul, bate na porta, pergunta se pode entrar, enquanto na favela não é dessa forma. Eu vi esse racismo acontecer.

Mas essa luta por justiça não é em vão. Porque, quando aconteceu toda essa tragédia na minha família, eu tinha desconhecimento de muitas coisas e hoje eu tenho uma visão mais aberta para a questão do racismo, para a questão da Polícia que entra na favela e mata.

Lembro que em uma das minhas primeiras falas eu disse que eu não queria que nenhuma outra mãe sofresse o que eu estava sofrendo e eu não imaginava que tantas outras mães iriam sofrer após o caso do João.

Eu também não tinha conhecimento de tantas outras mães, que sofreram muito antes de mim e estão nessa luta por justiça. Então, o meu sentimento imediato era que nenhuma mãe e nenhuma família sofressem como a minha família tem sofrido.

Por isso, a gente continua nessa luta para que algo mude. Porque a minha luta é por justiça, por memória e por reparação. Enquanto estiver viva, eu serei a memória do João Pedro aqui e lutarei por justiça.

Matéria publicada na edição n° 296 do jornal A Verdade