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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Minhas recordações do Che

Em homenagem a Ernesto Che Guevara, um dos maiores revolucionários de todos os tempos, A Verdade publica um trecho do livro Che em Sierra Maestra, de Merceditas Sánchez Dotres, que lutou ao lado do Comandante na guerrilha que derrubou o ditador Fulgencio Batista, em 1959, e abriu caminho para a construção do socialismo em Cuba. Che foi assassinado em outubro de 1967, na Bolívia, a mando do governo norte-americano. A 2ª edição brasileira deste livro será lançada neste mês pelas Edições Manoel Lisboa, em parceria com a União da Juventude Rebelião (UJR).

Merceditas Sánchez Dotres*


A tropa atribuía ao Che uma série de qualidades que a História se encarregou de confirmar. Para a coletividade guerrilheira, era ponto pacífico que ele era um homem extremamente justo, incapaz de se deixar levar por um determinado estado de ânimo quando tinha de julgar um companheiro. Além disso, todos sabiam que ele podia gostar mais de certos combatentes que de outros, ou mesmo admirar ou apreciar alguns mais que outros. Porém, isso jamais influiria nas decisões que tivesse de tomar em relação aos seus prediletos. Jamais ele lhes concederia nem mais nem menos do que merecessem.

Na Sierra, ninguém falava mal do Che. Todos o amavam. Todos o adoravam. Ninguém se sentia tratado injustamente. Nenhum homem o responsabilizava pelo que lhe acontecia ou pudesse acontecer. Ninguém se atrevia a lhe contar uma mentira. Confiavam nele, no seu valor e na sua sabedoria. Era um guerrilheiro muito sensato.

Na guerrilha, Che sempre foi contra o desperdício. Cuidava de cada objeto pelo valor que tinha, pelo esforço que havia custado trazê-lo até às montanhas da Sierra Maestra, quer se tratassem de armas, medicamentos ou instrumentos de qualquer espécie.

Lembro-me de que, muitas vezes, vi Che estudando, recostado ou sentado num tronco ou deitado na sua rede já muito velha. Gostava de fumar charuto. Às vezes, tomava seu mate e, amiúde, movimentava-se de um lado para outro no seu burro. Comumente o víamos usando o inalador contra asma.

Talvez seja por tudo isso que nós, que tivemos o privilégio de conhecer o Che nas montanhas da Sierra Maestra, sentimo-nos eternamente endividados para com ele, por seu exemplo e seus ensinamentos.

Naquela época, todos já sabíamos que ele estava destinado a batalhar em outras terras, pelo bem da humanidade, que seu destino final não era Cuba, mas sim a América inteira, e que Cuba era apenas a primeira etapa do caminho que ele escolhera.

Por vezes, alguns se põem a pensar, com uma dose de egoísmo maior ou menor, que Che nasceu para nós, cubanos, como se o Guerrilheiro Heroico já não houvesse transcendido todas as fronteiras.

O certo é que quando alguém começa a refletir sobre esse ir e vir do Che de um extremo ao outro da nossa América Latina, tende a imaginar que é como se ele tivesse estado a nos procurar sempre, durante anos. Na realidade, o doutor Ernesto Guevara de la Serna teve de percorrer todos os caminhos, precisou atravessar montanhas, grandes planícies e rios imensos, passando por bosques, aldeias e cidades, até chegar ao México e encontrar-se com Fidel.

Lembro-me de que uma noite, quando já estávamos no acampamento de La Mesa, ouvi o Che falar sobre como era possível construir um mundo melhor para toda a humanidade. Do céu puríssimo da montanha, uma lua cheia magnífica banhava com sua luz prateada os montes e vales da Sierra Maestra, e ali, na casinha onde se editava o jornal El Cubano Libre, Che revelou que o momento mais feliz da sua vida foi quando teve a sorte de conversar uma noite inteira com Fidel.

O Comandante

Sobre o comandante Ernesto Guevara, pode-se dizer que ele era um desses seres excepcionais que abrigam em seu coração todo o respeito do mundo pela dignidade humana. Che sentia um respeito absoluto pela dignidade do homem. Suas palavras sempre pareciam a todos muito claras, cristalinas. Che não costumava deixar questões pendentes com ninguém. Na amizade, sobretudo quando se tratava de novas amizades, ele avançava muito devagar, passo a passo. Talvez tenha sido essa sua peculiaridade que definiu a relação tão especial que ele sempre manteve com todos os combatentes da sua tropa: relação de chefe para com subordinado, relação que nunca foi rompida, nem por ele, nem por nenhum de seus homens. Em consequência disso, na tropa rebelde todos o estimavam, o adoravam e o respeitavam. Como todo grande homem que está envolvido numa guerra, a qualidade que o comandante Che Guevara mais apreciava nos combatentes era a lealdade.

Essa mesma fidelidade revolucionária, Che devotava ao comandante Fidel Castro. E esse seu sentimento crescia cada vez mais ao verificar que, graças às suas qualidades excepcionais, Fidel havia sido capaz de sublevar em luta armada todo o seu povo contra a tirania de Batista e de guiá-lo à vitória, não obstante os poderosos inimigos que então acorrentavam os destinos da nação cubana.

Em virtude da própria guerra, Che, às vezes, dava a impressão de ser um homem de temperamento rude. Entretanto, quando era obrigado a agir com dureza em circunstâncias espinhosas, ninguém sofria mais que ele próprio.

Che, paladino da ética e da moral, paladino da austeridade e do tratamento justo e de uma equidade a toda prova, sempre viveu tal como pensava. Tais quais eram seus desejos e suas ideias. E, como nada do que acontecia à sua volta lhe era alheio, interessava-se por tudo. Não só pela guerra revolucionária, como meio para o povo atingir o poder, mas também pela economia e pela política. Era capaz de dedicar sua atenção e seu talento à literatura, ao cinema, à poesia, ao xadrez, ao jornalismo, à matemática, aos idiomas, à pintura e até à música.

Suas preferências poéticas eram muito variadas, porém apreciava sobremaneira a obra de Nicolás Guillén. Costumava repetir de cor muitos dos poemas de Guillén. Ele, que nunca pedia nada a ninguém, não resistia à tentação de ter nas suas mãos, folhear e ler um livro de poesias. Ele tinha a bela qualidade de cumprir tudo o que prometia. Gostava de repartir tudo por igual entre todos, um costume que estava tão arraigado em nós, cubanos, no sentido histórico mais profundo, no âmago da cultura cubana.

Em outra ocasião memorável, em La Pata de la Mesa, onde se achava o seu Comando, ouvi-o dizer que nós, cubanos, havíamos sido a sua escola, seus chefes e seus subordinados. E, como era lógico, como sempre ocorreu no seio do nosso povo, Cuba acolheu-o como um de seus filhos mais amados e mais queridos.

A despedida

Depois do triunfo da Revolução, tornei a encontrar-me com o Che em várias ocasiões.

Logo tive notícia de que os soviéticos haviam fundado uma Universidade Internacional e de que um grupo de cubanos ia estudar lá. Apresentei-me à Seção Juvenil do Partido e, atendendo o meu pedido, o jovem Oscar Padilla inscreveu-me no grupo de bolsistas.

Cumpri todos os trâmites burocráticos para a viagem e, antes da partida, fui despedir-me do Che, com a intenção de pedir-lhe alguns dólares para as despesas de viagem.

Cheguei ao saguão do Banco Nacional acompanhada de nove bolsistas, dirigi-me a um dos seguranças e perguntei-lhe:

— O Che está?

Respondeu-me que sim. Sem mais formalidades, e para espanto do segurança, caminhei desembaraçadamente até a porta do seu escritório, abrindo-a. Vi o Che ali, sentado atrás de sua escrivaninha. Exclamei:

— Che!

E ele respondeu:

— O que você quer?

— Venho lhe dizer que ganhei uma bolsa de estudos. Vou para a União Soviética e quero um pouco de dinheiro.

Ele ficou ali, contemplando-me com aquele seu olhar tão inteligente. Depois de uma pausa, eu disse:

— Che, na realidade eu quero apenas trocar meus pesos por dólares.

Ele continuou me olhando, e eu acrescentei:

— Porém, somos dez. Eles vieram comigo. Estão aí fora.

Então, Che mandou que trocassem trinta pesos para cada um de nós. Enquanto se processava a operação de câmbio, ele saiu do seu escritório.

Havia muitas pessoas perto da porta, e todos se acotovelavam para vê-lo, porém ele, imperturbável, entrou no seu elevador. Momentos depois, para surpresa minha, o elevador voltou, a porta abriu-se e o Che reapareceu. Então, ele me disse bem baixinho, bem devagar, meu codinome na guerrilha:

— Carmen!

E acenou com a mão, despedindo-se de mim. Essa é a última recordação que guardo do Comandante.

Matéria publicada na edição impressa nº 300 do jornal A Verdade

*Leia mais sobre a vida da historiadora e guerrilheira cubana Merceditas Sánchez Dotres

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