Enquanto 8 milhões de famílias não têm casa no país, a luta pela reforma urbana e pelo socialismo segue na ordem do dia. Thais da Rosa, mãe e moradora da Ocupação Sepé Tiaraju em Porto Alegre (RS), avalia que as ocupações do MLB transformam a vida de quem participa dessa luta
Alexandre Ferreira | Redação
Em uma realidade em que 18 milhões de imóveis estão desocupados no Brasil e de 8 milhões de famílias estão sem casa, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) organiza ocupações para garantir o direito à moradia digna para o povo. Para entender melhor o papel transformador que as ocupações fazem na vida de seus moradores, o jornal A Verdade entrevistou Thais da Rosa, moradora da Ocupação Sepé Tiaraju, em Porto Alegre (RS). Ela relata sua vida como mãe, preta e pobre, tendo que enfrentar diversas dificuldades para viver e criar seus filhos, além do papel que teve o MLB na sua formação.
A Verdade – Como era sua vida antes de morar na ocupação?
Thais da Rosa – Eu morava no bairro Humaitá, periferia de Porto Alegre. Pagava muito caro de aluguel, R$ 750. Somando com água, luz e internet, passava de R$ 1.000. O local era muito ruim, bem perto de uma boca de tráfico. Outro problema é quando chovia. Como era chão batido, quando ia circular no dia de chuva, não dava para sair para levar as minhas crianças para a escola. A Polícia estava lá toda hora e sempre tinha tiroteio.
Como é que você conheceu o MLB?
Eu nunca tinha ouvido falar. Estava na Praça do Sesi, com meus filhos e com duas amigas minhas. E aí a Júlia foi conversar com a gente sobre uma reunião que eles estavam fazendo para o ato do Natal Sem Fome do MLB, em dezembro do ano passado.
Explicou como era o movimento, o que era o MLB. E aí eu me interessei, porque, naquele momento, além da moradia, eu estava precisando também muito daquela cesta básica. Eu trabalho por conta própria, faço doces e salgados para vender, e não tem como sair com duas crianças para vender.
Eu só recebia o Bolsa Família, então pagava o aluguel e, para comer, sobrava cerca de R$ 100. Então, muitas vezes, eu pagava o aluguel e não tinha comida. Se eu trabalhasse, eu comia. Se eu não trabalhasse, não comia.
Eles foram me buscar na praça, aí teve o ato do Natal Sem Fome, mas eu não fui porque eu estava com vergonha de falar que eu não tinha o dinheiro para o ônibus. Porque eu pensei: “Quem é que não vai ter R$ 10?!”. Mas eu não tinha. Não tinha nem R$ 5. Mas, graças a Deus, eu consegui manter o contato com o pessoal do Movimento e participei das reuniões dos núcleos de base do MLB e das atividades que aconteciam aqui na Ocupação Sepé Tiaraju.
Que importância morar na Ocupação teve para você?
A Ocupação do MLB transformou minha vida. Quando fui aprovada como moradora, consegui que sobrasse o dinheiro para a comida. E não tem coisa melhor para uma mãe, sabe?! Tu ir no mercado e saber que os teus filhos podem comer um iogurte e comer uma fruta. Está muito melhor aqui do que quando eu estava morando de aluguel. Porque aqui eu posso dar uma qualidade de vida para eles. Aqui eu posso chamar de meu.
Eu estava comentando esses dias: é muito louco quando tu olha assim, tu te acorda e fica pensando. Aos 29 anos, tu poder olhar para um lugar e dizer, “é meu”. Ninguém vai ali bater na tua porta e te exigir um aluguel e te dar data para sair.
Inclusive, ter que escutar de proprietários de casas machista, fazendo propostas absurdas. Tipo: “Ah! Tem outras formas de tu pagar o aluguel”, entendeu?!
Aqui na Ocupação eu posso dar uma boa educação. Pois é normal aqui você respeitar o próximo por ele ser negro, homossexual, lésbica, trans ou travesti. Criar seu filho sem aqueles preconceitos que têm lá fora. Eu quero, que eles cresçam num mundo que eles vão achar normal respeitar o próximo.
E como está a educação dos seus filhos?
Logo quando comecei a morar na Ocupação, fui solicitar a vaga na Escola Marechal Floriano Peixoto. Quando descobriram que eu morava numa ocupação, disseram que não tinha vaga. Só consegui quando fui na Secretaria de Educação e disse que não ia sair sem a vaga.
No início, estava tudo bem. Só que tudo mudou quando fui com as minhas guias no pescoço levar o meu filho. As guias são da religião que me identifico, que é Umbanda. Desde o dia que eu fui com as guias, mudaram o comportamento comigo e com meu filho, nem falavam mais comigo.
Outro dia, recebi um bilhete, afirmando que meu filho não estava prestando atenção nas aulas. Falaram que ele estava atrasando a turma, que era muito lento e não acompanhava as atividades.
Meu filho começou a sofrer vários tipos de maus-tratos. Começou a chegar triste e até chorando em casa, dizendo que a professora não gostava dele e, por isso, não queria voltar para a escola. Ele disse que ela falou que ia botar pimenta na boca dele e, quando ela segurava a mão dele para escrever, apertava.
Eu comuniquei isso para a direção da escola. Depois, a diretora mandou mensagem dizendo para levar o Heitor para a escola, porque, se eu não levasse, teria problemas com o Conselho Tutelar. Aí eu levei com o coração na mão.
Ao chegar, a diretora e a Brigada Militar proibiram a minha entrada na escola e afirmaram que o local onde eu morava estava trazendo traumas para o meu filho. Que a dificuldade de aprendizado do Heitor era referente a morar numa ocupação. Eu questionei imediatamente: “Vocês já foram onde eu moro?”.
Como é morar numa ocupação do MLB?
Se eu não estivesse morando na Ocupação, eu teria morrido afogada, perdido tudo ou estaria num abrigo, pois, logo em seguida, veio a enchente.
Se agora o Heitor está indo para o colégio com a barriguinha cheia e se eu não preciso dormir pensando no almoço do outro dia, é graças a estar morando na ocupação. Aqui todo mundo se ajuda. Eu sempre tive apoio. Bem diferente da escola, que, até agora, não me apoiou em nada. E ainda julgaram o lugar onde eu e meu filho moramos. A questão é porque ele é filho de pobre e de preta. Ele veio da vila, mora em ocupação. Mas vamos continuar aqui, porque é o melhor lugar para estar.
Qual importância de se organizar no MLB?
O MLB salva vidas. Salvou a minha e dos meus filhos. Se eu não tivesse vindo para a Ocupação, eu não saberia onde estaria neste momento. Eu já passei por muita coisa, antes de conhecer o Movimento. Eu saí de um relacionamento abusivo de seis anos. Passei muitas coisas junto com essas crianças.
O pai deles é dependente químico e alcoólatra. Muitas vezes, eu me submetia a apanhar, só para aquilo acabar e meus filhos não verem. Mesmo assim, muitas vezes, eles presenciavam.
Um dia, ele chegou bêbado com uma faca de açougue na mão, dizendo que era eu ou ele, batendo a faca na parede e me deu um chute na costela. Eu tenho uma costela fraturada até hoje. Falei que ia levar meu filho para a pracinha e nunca mais voltei. Fui com uma mochila e duas crianças. Eu pensei: “Se eu fico aqui, eu morro”. Porque eu vi a morte na minha frente. Eu tinha muita vergonha de falar sobre isso, só que eu acho importante falar sobre essas coisas.
E eu não admito que chegue uma pessoa, que não sabe da minha luta, que não sabe de tudo que eu já passei para estar com meus filhos juntos, dizer que eu não sou uma boa mãe. Vim falar pra mim que vai tirar o meu filho de mim. Eu não aceito.
Enquanto eu for mãe, enquanto eu for mulher, enquanto eu estiver aqui no MLB, enquanto estiver militando, estiver morando na Ocupação, vou lutar para que outras mães não passem o que eu já passei.
Matéria publicada na edição impressa nº 300 do jornal A Verdade