Nascida Maria Madalena Correia do Nascimento, no dia em 12 de janeiro de 1944, na Ilha de Itamaracá, município da Região Metropolitana de Recife (PE), a cantora, compositora e cirandeira Lia de Itamaracá, recebeu a equipe do jornal A Verdade na Embaixada da Ciranda, para uma manhã de conversa sobre seus mais de 80 anos de vida, sua obra e como ela lutou para fazer de sua arte uma ferramenta de luta. Lia teve que trabalhar desde muito cedo, enfrentar o preconceito antes de ser reconhecida como uma das maiores expressões da música negra brasileira e mundial.
Clóvis Maia e Rafael Freire | Redação
A Verdade – Lia, você começou na música bem cedo. Quais foram seus primeiros passos?
Lia de Itamaracá – Todo o meu sonho era cantar. Sempre achei bonito quem canta, quem dança. E eu dizia: “Jesus, eu quero um dia ser uma cantora, me apresentar no meio de muita gente, cantando pro povo”. Aí eu comecei a me interessar pela música com uns 12 anos de idade. Com 19 anos, eu assumi a responsabilidade de cantar, de compor, de gravar. Aí eu comecei a sair pelo mundo.
Eu venho de uma família de 18 irmãos comigo. Ninguém cantava nem dançava. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai era agricultor. Um dia, eles conheceram uma família que viu minha mãe carregando sete filhos. Eles devem ter ficado com pena e ofereceram um emprego pra ela.
Como foi o seu primeiro contato com a ciranda?
Foi no Recife. Eu ia muito ao Pátio de São Pedro. Eu via muito as rodas de ciranda lá. Eu olhava e dizia: “Vou entrar nesse andamento. Vou prestar atenção aqui pra jogar minha linha”. E deu certo. Dizem que a ciranda vem de Portugal, vem da África. Pra mim, a ciranda já existia aqui no Brasil. E eu a consagrei aqui em Itamaracá.
Você foi pioneira em muitas coisas como mulher, negra, cantora, gravando um disco em 1977, em plena ditadura militar. Mas também passou por muitas dificuldades na carreira, como falta de pagamento e a questão do direito autoral sobre o seu maior sucesso. Fala um pouco sobre isso.
Em 1961 ou 1962, Teca Calazans teve aqui em Itamaracá. Ela já era pesquisadora de música. Ela me ouviu cantar e pediu pra eu cantar pra ela. Seguimos para a praia, eu e ela, e eu solfejei a ciranda “Quem me deu foi Lia”. Então ela me disse: “Lia, essa música é um amor. Vou colocar uma letra nela em sua homenagem”. O tempo passou e depois veio um pessoal do Recife falar da música, e ela disse que nunca teve conhecimento comigo, que nunca me encontrou e disse que essa música era dela.
Aí essa música ficou nessa polêmica grande, que ainda aumentou porque Antônio Baracho, cirandeiro de Abreu e Lima, registrou a música como sendo dele. A coisa pra mim foi difícil, mas eu estou aqui. Eu gravei meu primeiro disco e não ganhei nenhum dinheiro por ele por causa dos direitos autorais. A gente não registrou. Aí eu fazia meus shows aqui e acolá e ainda trabalhando no bar.
Depois que o bar fechou, virei merendeira numa escola. Eu fazia comida para quase 300 crianças. Trabalhar com as crianças pra mim era uma maravilha. Trabalhei lá até me aposentar.
Você se recorda da primeira grande viagem, do primeiro grande show que fez lá fora?
A minha primeira grande viagem que foi para o Rio de Janeiro, no Abril Pro Rock, em 1998. Eu gravei esse primeiro disco em 1977, “A Rainha da Ciranda”, depois veio o primeiro CD “Eu Sou Lia” (2000), “Ciranda de Ritmos” (2008) e “Ciranda Sem Fim” (2019). E teve também os filmes, né?! “Sangue Azul”, “Recife Frio”, “Bacurau”.
Suas letras falam do cotidiano da gente, a relação com o mar e com a natureza, reforçando a ciranda como uma arte coletiva. Como é o seu processo de criação?
A ciranda não tem preconceito. Ela abraça o branco, o preto, todo mundo. Ela abraça todo mundo. De adulto às crianças, principalmente as crianças. Isso que é bom. A gente ouve muito falar de racismo hoje em dia. A ciranda acaba com isso tudo. Minhas músicas são escritas na areia da praia. Eu sou filha de Iemanjá. Eu sento na beira da praia, escrevo a música, a onda vem e apaga. Eu vou e escrevo de novo. A onda vem e apaga. Eu acendo novamente. Quando a onda vem de novo, a música tá pronta. Eu tenho contato com Janaína, a mamãe Oxum, Iemanjá. Eu sou católica, mas não vejo nenhum problema com religião nenhuma. Respeito e me dou bem com tudinho. E isso vem da ciranda. Abraçar todo mundo sem preconceito. Eu tenho um talento que Deus me deu e eu sou feliz em tudo que eu faço.
Como funcionam a Embaixada da Ciranda e o Centro Cultural Estrela de Lia?
A gente faz oficina de cabelo afro com as doceiras, as marisqueiras da comunidade, organiza cineclubes. A Embaixada é um Ponto de Cultura, mas, no momento, está sendo mantida por nossa própria conta. No Centro Cultural, fazíamos cirandas todos os sábados, mas está em reforma desde 2014 e parou tudo. Já oferecemos oficinas de fotografia, de cerâmica para as crianças.
Em janeiro deste ano, você completou 80 anos reconhecida mundialmente pela sua arte, com os títulos de doutora Honoris Causa e de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Como foram as homenagens?
Foi uma maravilha! A pessoa começar com 12 anos e chegar aos 80, neguinho. Foram três dias de festa… Veio gente do Brasil inteiro pra cá. Teve cortejo, teve circo. Ainda mais porque eu recebi essas homenagens estando viva, né?! Isso que é importante.
Mas tem muita gente da minha geração que ainda enfrenta dificuldades. Tem muitos mestres da cultura no Recife precisando de apoio. Não dá pra esperar a pessoa morrer pra homenagear depois.
Eu fui fazer um show no Pátio de São Pedro outro dia desses, e estava tudo acabado. Eu fico me perguntando onde é que estão os gestores que não veem isso. No centro da cidade, o foco da brincadeira. Eu acho que deveriam olhar o lado dos mestres, especialmente os mais necessitados.
O povo vem de fora buscar as coisas da gente e tem um monte de gente de braços cruzados precisando de ajuda. Onde eu chego, eu falo deles. Faço questão de falar de nossa cultura por todo lugar que eu piso.
Eu, há mais de 20 anos, conheci o Beto Hess, meu produtor e hoje temos uma equipe de produção, tudo cabeça feita, que trabalha com união, com respeito, e a gente continua produzindo. Vamos ver até onde a gente vai… A canção “Dorme, pretinho”, que Beto adaptou [da canção “Duerme, negrito”, de Atahualpa Yupanqui, gravada por Mercedes Sosa], foi premiada e tudo.
É como diz aquela música: “Para chegar aqui, atravessei um mar de fogo/ Pisei no fogo, o fogo não me queimou/ Pisei na pedra, a pedra balanceou”. Isso é um ponto de Exu. É muita história, muita estrada, muita luta. É chão. E eu, com meu pouco estudo, levantei a bandeira e sigo levantando. Atravessei um mar de fogo. Vê que braseiro danado!
Racismo e ditadura militar
Em certa altura da entrevista, Lia nos contou a situação envolvendo os direitos autorais da música “Ciranda de Lia”, que foi divulgada pela cantora, atriz e pesquisadora pernambucana Teca Calazans, em 1964. Acontece que apesar da letra falar explicitamente de quem é a canção, Lia teve sua autoria negada em uma época em que os direitos autorais não eram respeitados.
Em uma reportagem no Diário de Pernambuco, de 23 de julho de 1973, o jornal tratava de “descobrir” quem era a tal Lia da canção, na época, com 29 anos. No ano mais violento do regime militar, em que imperava a censura ao jornalismo e à cultura, não houve nenhum editor ou sensor para questionar o conteúdo da reportagem escrita por Selênio Homem de Siqueira, definia Lia com termos como “crioula”, “escurinha”, “empregadinha” e “boneca de piche”, evidenciando o racismo presente no país governado pelos militares.
Matéria publicada na edição impressa nº 303 do jornal A Verdade