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domingo, 10 de agosto de 2025

Madre Maurina, freira franciscana torturada pelos militares

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Madre Maurina foi presa e torturada por apoiar militantes do MEJ e FALN na luta contra a Ditadura Militar, e por defender que o orfanato era para as crianças necessitadas, e não para as famílias ricas da região abandonarem os filhos

André Molinari | Ribeirão Preto (SP)


HISTÓRIA – Nascida em 1926 em Perdizes, Minas Gerais, Maurina Borges da Silveira vinha de uma família pobre do campo. Em 1950, Maurina emite seus votos e integra a Congregação das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição, em Araraquara, São Paulo. A vida da família da Madre Maurina era sofrida, mas mesmo seu pai se chocou ao ver as condições de simplicidade das irmãs franciscanas.

A Madre Maurina atuou em escolas e juvenatos até quando, em 1968, assume a direção do Lar Sant’ana, local destinado para ser um orfanato para crianças pobres em Ribeirão Preto, São Paulo, principalmente no bairro da Vila Tibério, que na época era um bairro periférico da cidade.

Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN)

Maurina havia consentido que o militantes do Movimento Estudantil da Juventude (MEJ) utilizassem o porão do orfanato para guardar materiais e trabalhar. Dentre esses militantes, entre eles o próprio presidente do MEJ, havia membros das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), que utilizavam o porão como ponto de encontro, estudo, guardar materiais e, inclusive, imprimir num mimeógrafo o jornal da organização, chamado “O Berro”.

A FALN foi uma dissidência do PCB organizada por Vanderley Caixe em 1966, após identificar um esgotamento com as posições imobilistas do PCB ante a Ditadura Militar de 64. A maioria da organização era formada por estudantes que defendiam a luta armada contra a Ditadura, que rapidamente se expandiu para dezenas de municípios do interior de São Paulo como Ribeirão Preto, Franca, Sorocaba, Sertãozinho, Cravinhos, Bauru, São Joaquim da Barra, Rio Claro, Pitangueiras, Bebedouro, etc. Integrando estudantes, trabalhadores rurais, operários e intelectuais em suas fileiras. Tendo ainda dezenas de apoiadores, inclusive religiosos. A Madre Maurina recebia regularmente edições do jornal “O Berro”

Tinham iniciado os preparativos para uma guerrilha no campo, realizando treinamentos e reunindo materiais. Após uma expropriação de dinamite em uma pedreira da região, acenderam-se os alarmes da repressão de maneira mais enérgica, principalmente após serem localizados dois militantes que estavam numa área de mata fazendo guarda para uma cabana que serviria como aparelho para uma operação de sequestro de usineiros.

A Ditadura Militar deslocou o infame torturador Sérgio Fleury para a região para liquidar a FALN, no meio desse processo mais de 500 pessoas foram detidas e várias delas torturadas física e moralmente, inclusive alguns religiosos como freiras e sacerdotes.

A prisão de Madre Maurina

Quando soube das recentes prisões através dos jornais, inclusive do presidente do MEJ e membro da FALN, Maurina tomou a decisão de queimar todos os documentos e materiais que estavam no porão do orfanato, de maneira que quando a polícia chegou somente havia cadernetas do MEJ.

Dias após, a Madre foi presa e levada para a prisão, onde passou por diversas torturas. Dividiu cela com duas estudantes, Aurea Moretti (estudante da USP Ribeirão Preto) e Leila Bosqueto (estudante da Instituição Toledo de Ensino), no presídio de Cravinhos.

Em depoimento para jornais, a Madre considera que atritos que comprou com famílias ricas da cidade devem ter contribuído para a sua prisão. Dentre as mais de 100 crianças que viviam em regime de internato ou semi-internato no orfanato quando a Madre chegou, 15 eram crianças de mães solteiras de famílias ricas.

“Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no orfanato Lar Sant’ana. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. […] O orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um lugar para viver, que não tem pai nem mãe” (Madre Maurina em entrevista à Folha de São Paulo).

“Chegaram seis homens, mais ou menos, entre eles estava o Fleury. Começaram os interrogatórios… […] E, quando eles falavam essas besteiras, eu não respondia nada, ficava quieta… E, quando eu não respondia, eles me davam choque elétrico… Então, eles esperavam eu descansar para depois começar de novo… E isso durou muito tempo… Até, eu acho, umas três ou quatro da tarde. Vinha um, me interrogava, vinha outro, interrogava…”.

A Madre se manteve firme durante os interrogatórios e não delatou nenhum dos inúmeros jovens que conhecia. Inclusive chegando a irritar Fleury:

“O único que eu conhecia era o Fleury… Ele ficou danado da vida comigo. Ele me perguntou: ‘Quer que eu chame meu primo, que é padre, para te interrogar?’. E eu não respondi… Passou um tempo, ele perguntou novamente: ‘Você não responde? Não olha na minha cara?’. Eu olhei bem no olho dele… Ele perguntou: ‘Como você me conheceu?’. E eu disse que tinha conhecido o Fleury pela revista ‘Veja’, quando ele tinha inventado uma história com os dominicanos [refere-se ao caso de Frei Betto e Frei Tito]. Ele ficou bravo quando falei isso, muito bravo. Simulou, bateu na mesa… E completei: ‘Foi aí que eu conheci você’. Então, ele deu um murro na mesa e saiu da sala”.

Dentre as três, a mais torturada foi Áurea Moretti, que chegava das sessões de tortura e era atirada na cela, tendo que ser amparada pela Madre e pela Leila. A Madre rasgava pedaços de sua roupa para fazer curativos e cuidar da Áurea.

Em 1970 a Madre é solta após o sequestro do cônsul do Japão, Nobuo Okuchiem, em São Paulo, articulado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), em seguida é exilada no México onde passa cerca de 10 anos, sempre com clima de solidariedade e de amor aos pobres, fazendo atividades de educação, hortas comunitárias e demais atividades voltadas para as comunidades pobres.

O caso da Madre Maurina foi um dos principais elementos para virar a posição da Igreja Católica e da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) contra a Ditadura Militar, envolvendo mais ativamente a Igreja nas lutas do país. O arcebispo de Ribeirão Preto chegou a excomungar os dois delegados envolvidos na prisão e tortura da Madre Maurina.

O Lar Sant’ana

Em meados de 2015 o prédio do Orfanato Lar Sant’ana foi vendido pela Congregação para a Prefeitura de Ribeirão Preto, que fez questão de manter o local abandonado e depredado durante mais de 10 anos.

Apesar de ser um prédio histórico que figura num dos principais casos de resistência e repressão do período da Ditadura Militar, não há nenhuma política pública consequente para destinação do espaço, apesar de diversas consultas, audiências e pareceres de comissões já terem indicado que a criação de um Memorial no local seria a melhor destinação possível. A maior parte da fiação já foi furtada, o prédio constantemente é invadido para jogos de paintball, com anuência da GCM, de acordo com os moradores do bairro, e até mesmo casos de “investigação paranormal”.

A verdade: existe um projeto sistemático de apagamento histórico dos processos de luta e resistência que tiveram palco no interior de São Paulo. Desde as lutas dos povos indígenas e dos negros escravizados, as lutas operárias e de trabalhadores do campo, as lutas estudantis e antifascistas, etc.

Isso tudo com a intenção de nublar a perspectiva histórica do povo, criar uma versão artificial e falsa de um interior hegemonizado pelo reacionarismo e pelo agronegócio, onde o povo é conivente ou até mesmo cúmplice de suas próprias violências. Mas os poucos casos conhecidos como a Revolta da Fazenda Castelo, o Levante de Guariba, a FALN e muitos outros.

Ter um Memorial da Resistência que atue permanentemente no resgate, preservação e divulgação das lutas populares do interior de São Paulo é o melhor destino possível para o uso de um prédio que, diferente de tantos outros vinculados ao período da Ditadura, não foi palco de aparatos repressivos, mas sim fazia parte do aparelho de resistência e solidariedade do povo.

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