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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Rompendo o silêncio: pesquisadores concluem a 2ª etapa de escavações no DOI-CODI/SP

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Grupos da UFMG, Unicamp e Unifesp realizaram escavações que tem por objetivo restaurar os espaços e romper o silêncio sobre o passado do prédio onde há 50 anos foi assassinado e forjado o suícidio do jornalista Vladimir Herzog

Wildally Souza | São Paulo​


Entre os dias 27 de outubro e 8 de novembro de 2025, equipes de Arqueologia da UFMG, Arqueologia Pública da Unicamp e Arqueologia Forense da Unifesp e Arquitetura e Patrimônio que fazem parte do Grupo de Trabalho do DOI-CODI, retomaram as escavações no antigo DOI-CODI de São Paulo, localizado na Rua Tutóia, 921,Vila Mariana, atual sede da 36ª Delegacia de Polícia Civil.​

A segunda parte da ação que busca vestígios dos anos da ditadura militar faz parte das investigações iniciadas em agosto de 2023, com o objetivo de compreender a materialidade e as transformações do espaço que funcionou como um dos principais e o mais notório centro de repressão da ditadura militar brasileira, entre 1969 e 1983. ​

O que significam as escavações no DOI-CODI/SP

O Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi o principal órgão da ditadura militar encarregado de reprimir opositores do regime. Estima-se que cerca de 7.000 pessoas tenham sido presas e interrogadas – frequentemente sob tortura — no prédio que, apesar de poucas, foi desfigurado e sofreu transformações de suas estruturas após o fim da ditadura. ​

Os prédios do antigo DOI-CODI/SP são considerados como marcos físicos, que documentam o período em que vigorou a ditadura. As escavações e as pesquisas no local possibilitam materializar vestigios da repressão, tortura e desaparecimentos forçados.

As escavações também permitem que os relatos orais dos que passaram pelos centro de torturas se transformem em provas físicas que rompam o silêncio de histórias abafadas ou silenciadas por inteiro, fortaleçam a necessidade da preservação da memória para que tais atrocidades não se repitam, além de contrapor as narrativas oficiais do Estado brasileiro sobre esses crimes contra o povo.

A professora da UNIFESP, Deborah Neves, coordenadora do Grupo de Trabalho Memorial DOI-CODI explica a importância do trabalho arqueológico nos centros de repressão. “Todo esse processo detalhado que temos feito e que materializa a história, contribui para que outros lugares que também estão sendo reivindicados para serem transformados em centros de memória, tenham uma ideia de qual o percurso mais interessante a se seguir”, afirma. ​

A equipe de escavações contou com pesquisadores da UFMG, UNICAMP e UNFESP. Foto: Wildally Souza/JAVSP

A pesquisadora ainda explica ao jornal A Verdade  o porquê do levantamento arqueológico e físico do local ser importante para a luta por Memória, Verdade, Justiça e Reparação. “Pra gente entender o que esse prédio tinha para nos contar, era importante que a gente fizesse essa pesquisa arqueológica, justamente para tratar ele como um espaço de cena de crime efetivamente. Então, por isso o trabalho da arqueologia foi muito importante para revelar esses aspectos de espaço criminal. Isso contribui efetivamente para que a reparação dos crimes venham junto com a luta por memória e verdade”, explica a pesquisadora. ​

Já a mestranda em Arqueologia Pública pela Unicamp, Beatriz Mazim, explicou como foi realizado o processo de abertura das sondagens arqueológicas — intervenções em profundidade no solo que permitem a avaliação da história, natureza e da estratigrafia de um determinado local.

“Aqui em 2023 foram abertas cinco sondagens de 1×1 m. Essas sondagens são para verificar o potencial arqueológico do lugar. E aqui, verificaram que tinha um potencial arqueológico bom. E nessa etapa, foi decidido abrir uma única sondagem em formato de trincheira de três metros quadrados e aberta na área externa, que é uma sondagem um pouco mais comprida. Assim, as escavações vão acontecendo aos poucos, procurando detalhadamente os vestígios daquele período. E a expectativa é sempre de chegar no nível zero, uma espécie de um solo virgem da época, o que será determinante para reconstruir a história, colocar pingos no ‘i’s e determinar em diversos aspectos o que de fato aconteceu aqui, juntando com as histórias orais e os relatos diversos que contemplam esse local”, explica Mazim. ​

O que foi encontrado no local?

Na primeira etapa das escavações, ocorridas em 2023, entre os indícios preliminares de tortura encontrados no local, estão escritos nas paredes feitos pelos prisioneiros, artefatos que indicam o processo de sequestro e fichamento dos prisioneiros e resíduos de um material que indicava a presença de sangue. ​

Já na segunda etapa, nas escavações, coordenadas pelo Professor Andrés Zarankin (UFMG), foram encontrados diversos vestígios arqueológicos, tais como materiais construtivos associados às mudanças físicas na arquitetura do prédio ao longo do tempo e objetos que podem estar relacionados ao funcionamento cotidiano do complexo: louças, vidro, metais, etiquetas de produtos, etc. ​

Estes materiais são oriundos da trincheira na entrada do edifício onde ocorriam grande parte dos interrogatórios e torturas e onde foi capturada a foto que simula o suicídio de Vladimir Herzog — até o momento única imagem interna do edifício durante o funcionamento do DOI-CODI. O artefato que mais chamou a atenção da equipe é uma prótese dentária, que será analisada em laboratório para identificar, por exemplo, o material de que foi feita, a técnica de produção empregada e, a partir
desses elementos, a época na qual foi utilizada.

Prótese dentária encontrada durante as escavações. Foto: Wildally Souza/JAVSP

A equipe de Arqueologia Forense, coordenada pela professora Cláudia Plens (Unifesp) em colaboração com a Dra. Maryah Haertel (UFSC), ampliou as análises no segundo andar do edifício, com o objetivo de identificar possíveis vestígios orgânicos humanos, como a presença de sangue, por meio da aplicação de técnicas forenses que incluem o uso de luminol — reagente químico que, em contato com o ferro da hemoglobina, emite uma luz azulada — e de luzes forenses.​

Nesta etapa, ainda foi iniciado um importante trabalho de levantamento arquitetônico coordenado pelo arquiteto Alessandro Sbampato (Rebrapesc) em colaboração com Deborah Neves (Unifesp). A partir dele, tem sido possível analisar materiais construtivos recuperados nas escavações de 2023 em confronto com plantas originais localizadas em 2021 e identificar técnicas construtivas.

Sobretudo, tem sido possível identificar causas, mecanismos e efeitos de anos de desuso e má conservação do edifício 2-A, desde alterações nos materiais provocadas por infiltrações de água até a presença de agentes biológicos de degradação, como cupins e pombos.​

O Grupo de Trabalho Memorial DOI-CODI destaca que dessa etapa resultará tanto um diagnóstico conclusivo com previsão de custo para realizar os reparos necessários quanto “diretrizes detalhadas de intervenção neste importante e singular patrimônio cultural edificado do Estado de São Paulo, com relevância nacional”​.

Trabalho de memória com as crianças e documentário “Arqueologia da tortura”

Sob a coordenação da professora Aline Carvalho (Unicamp) e da Dra. Fernanda Lima (UFMG), a equipe de Arqueologia Pública ainda promoveu visitas mediadas ao espaço. O local também recebeu diversos ex-presos políticos que passaram pelo DOI-CODI e filhos (as) de sobreviventes. Além disso, o grupo desenvolveu oficinas educativas para professores e estudantes, com foco na história da repressão no
Brasil e a luta por direitos humanos. ​

Para Deborah essa é a parte mais bonita do trabalho. “É poder mudar a história do futuro. Como eles são muito jovens, não têm medo de fazer perguntas e não têm medo de errar. Então, eles trazem questionamentos pra gente que às vezes a gente nunca nem tinha pensado. E eu acho que trazê-los para essa visita também permite que eles tenham contato com a realidade que às vezes é muito distante. Às vezes, eles têm contato só por meio de livros ou de séries e parece que é uma coisa que
nunca existiu. Então, trazê-los aqui permite que eles conheçam de perto a história do Brasil passada a limpo “, explica. ​

O professor Andrés Zarankin também acredita que o projeto terá um papel pedagógico relevante sobre a sociedade. “Considero que haverá uma contribuição importante para a conscientização sobre o que significa realmente um governo de exceção, no qual as pessoas são tratadas como inimigas apenas por pensarem diferente”, conclui.​

Durante toda semana, os trabalhos puderam ser contemplados pelos alunos de escolas públicas e instituições de ensino, que assistiram relatos dos presos políticos ainda vivos, tiveram contato com os materiais encontrados durante as escavações de 2023 e puderam perguntar e comentar sobre o que aprenderam sobre o prédio, a repressão contra o povo e a luta por memória, verdade e justiça no Brasil e no mundo. A criançada curiosa e envolta em conhecer essa parte dolorosa da história do Brasil declararam que no futuro tal coisa não acontecerá mais, porque “agora sabemos da verdadeira história e não vamos repeti-la”.​

O projeto ainda contempla um documentário dirigido e roteirizado por Carla Gallo e com produção da Ouro de Tolo Filmes. Intitulado “Arqueologia da tortura”, a produção audivisual tem o obejtivo de documentar todo o processo de luta para que o local se transforme em um Memorial, além de acessiblizar as informações sobre o que aconteceu no prédio para além do que está nos livros e depoimentos, mas considerando também o que está no solo, nas paredes e nos objetos que passamos por cima diariamente e não temos noção do poder arqueologico. ​

Para Carla esse documentário é uma missão de cobrar uma dívida do passado. “O documentário é um veículo de informação, é um veículo de emoção, e a gente vê a reação das pessoas quando assistem. E é uma reação de emoção e de tomada de consciência sobre a importância do que está sendo feito aqui. É também fazer cumprir efetivamente esse processo de verdade e justiça. A gente tem, no filme, o
acompanhamento da primeira etapa, com o encontro dos ex-presos políticos, a análise da arquitetura, a história do prédio, e a arqueologia forense também, que busca vestígios de sangue E foi muito emocionante, porque a gente viu as coisas acontecendo. A persistência,a esperança deles e as vitórias que eles vão tendo nesse processo, que é muito lento, muito burocrático e muito difícil, também está
documentada por completo”, declara a diretora. ​

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