A história do clube pernambucano é um exemplo vivo de como o futebol pode ser um instrumento de resistência da classe trabalhadora e de combate à segregação racial imposta pelas elites.
Jesse Lisboa e Clóvis Maia | Redação PE
HISTÓRIA – O futebol brasileiro, historicamente apropriado pelas classes dominantes como espaço de exclusão, também carrega em suas raízes exemplos de resistência popular. Em Pernambuco, o Santa Cruz Futebol Clube ergueu-se não apenas como uma agremiação esportiva, mas como um verdadeiro movimento de massas contra o racismo e o elitismo que dominavam o esporte no início do século XX.
Fundado em 3 de fevereiro de 1914, o clube nasceu da iniciativa de onze garotos, com idades entre 14 e 16 anos, que se reuniam para jogar bola nas ruas do bairro da Boa Vista, em frente à Igreja de Santa Cruz. Eram jovens excluídos dos sofisticados clubes da época, restritos à pequena burguesia recifense. Mas, diferentemente de seus rivais, o Santa Cruz já nascia com a marca da integração e da luta de classes.
“A mística do time capaz de superar qualquer dificuldade e reerguer-se quando parecia impossível junto com os mais pobres da sociedade, foi forjada nos primeiros anos do Santa Cruz Futebol Clube. O primeiro obstáculo a ser vencido foi o racismo.”, destaca o Santa Cruz ao contar sua história.
Entre os fundadores, que acumulavam as funções de dirigentes e atletas, estava Teófilo de Carvalho, o Lacraia. Foi capitão, técnico e até o desenhista do primeiro escudo do clube, cujos traços resistem até hoje. A presença de um negro em posição de destaque foi determinante para que o “Tricolor” conquistasse a simpatia imediata do povo em Recife
Enquanto rivais como América, Sport e Náutico fechavam suas portas para o povo, mantendo-se como redutos da aristocracia branca, o Santa Cruz abria seus braços para negros e brancos pobres. Essa democratização precoce gerou uma via de mão dupla: por acolher os invisibilizados, o clube recebeu em troca uma devoção quase religiosa, tornando-se o “Time do Povo”.
A relação orgânica entre o clube e a classe trabalhadora foi reconhecida até mesmo pela imprensa burguesa da época. O Diário de Pernambuco, em 17 de fevereiro de 1943, registrou:
“Este Clube popular que, quando vence, as massas regurgitam de contentamento; os subúrbios engalanam-se de festas; o operariado do sopé dos morros ou da humildade dos mangues exulta de entusiasmo. Comemoram estas vitórias no ambiente modesto de suas moradias, como se tivessem tirado a sorte grande. Para esta gente popular, o Santa Cruz é tudo. Para o Tricolor de todos os tempos, este povo heterogêneo é a razão de sua existência. O Santa Cruz pertence às multidões, independentes de classe ou de posição social.”
Essa força coletiva se manifestou de forma contundente em diversos momentos da história. Em 1955, a contratação de Moacyr Barbosa, o lendário goleiro negro da Seleção Brasileira, só foi possível graças à mobilização do povo. Para pagar os 200 mil cruzeiros de luvas, a torcida organizou uma arrecadação massiva. O Diário de Pernambuco de 5 de agosto de 1955 relatou a comoção:
“Numerosos associados, famílias e simpatizantes de todas as camadas sociais estiveram no Arruda, elaborando intensamente. (…) Uma criança pobre, de dez anos de idade, enviou 5 cruzeiros, por intermédio do seu irmãozinho um pouco maior, dizendo que também queria ajudar para a contratação de Barbosa. Foi a nota mais sensacional da tarde”.
A mesma lógica de mutirão e solidariedade de classe ergueu, nas décadas de 60 e 70, o Estádio do Arruda. Na histórica “Campanha do Tijolo”, milhares de trabalhadores doaram materiais e horas de trabalho voluntário para construir sua própria casa, o Arrudão, provando que o patrimônio do clube é fruto do suor de sua torcida.
Combater o racismo e construir o poder popular
A trajetória do Santa Cruz é a prova de que o futebol não é apenas um jogo, mas um campo de disputa política e social. Nada do que o clube representa hoje seria possível sem a coragem de Lacraia e de tantos outros jovens, negros e operários.
Também é importante notar que mesmo após toda modificação do futebol, tornando-se uma verdadeira indústria mundial, onde bilhões circularam ano após ano, esse esporte ainda é uma referência para a classe trabalhadora e encontra, dentro e fora de campo, espaço para debater e refletir nossa sociedade.
Hoje, as torcidas organizadas são atacadas por todos os lados, mas ainda representam uma grande força de mobilização e organização coletiva. Tais times como o Santa Cruz, que vem sofrendo com a tentativa de retirar de vez o controle do time da mão dos sócios, por meio das SAFs (Sociedade Anônima de Futebol, ou seja, transformar o time da sociedade civil- seus sócios- em uma empresa privada), continuam resistindo e fazendo a alegria de milhares de pessoas, a grande maioria das periferia, que vê nesse esporte, nesses times e em sua trajetória, algo também pertencente a eles.