A equipe de reportagem do jornal A Verdade esteve na Penha, no Rio de Janeiro, onde aconteceu o maior massacre policial da história recente do Brasil, no dia 28 de outubro, na chamada “Operação Contenção”. Conversamos com as pessoas sobre como a comunidade está reagindo a esta chacina e como vivem os mais de 180 mil moradores das 13 favelas que compõem a região. Por motivos de segurança, alguns entrevistados não quiseram se identificar ou permitir o uso de fotos. As fotografias que ilustram esta edição do jornal são de Bruno Itan, morador de comunidade no Rio que se dedica a registrar o quotidiano das favelas cariocas.
Rafael Freire e Felipe Annunziata, da Redação
“Eu não dormi, estou acordada até agora, porque os corpos estão sendo deixados na praça aqui perto de casa. Não para de chegar gente morta, e os familiares gritando quando alguém é reconhecido. Torturaram muito as pessoas que estavam na mata. Tem gente faltando um pedaço da cabeça, do rosto, os dedos quebrados, perna pendurada. Teve um menino de 11 anos que foi reconhecer o corpo do pai. Quando ele viu o pai todo desfigurado, ele se jogou em cima do corpo e ficou gritando: ‘Meu pai! Meu pai! Meu pai!’. E a irmãzinha dele, de quatro anos, perguntando: ‘É meu pai?’.”
“Eu tô em choque. Até nove horas da noite, a gente escutava tiro. Os policiais passaram na frente da minha casa arrastando um menino já morto. Foi horrível. Ficou um rastro de sangue na rua. De manhã, a vizinhança se juntou para lavar a rua. Uma tristeza.”
Relatos enviados por moradoras da Penha ao jornal A Verdade logo após o massacre.
BRASIL – Na Praça São Lucas, onde mais de 70 corpos ficaram expostos no último dia 29 de outubro, num espetáculo sinistro, chama atenção o letreiro “Creche Comunitária do Parque Proletário da Penha”. Na pequena quadra, em frente, algumas crianças, ainda com uniforme da escola, jogavam bola. A circulação de mototáxis é frenética, pois é o único meio de transporte que chega a certas áreas dos morros.
A região, no coração da Zona Norte carioca, encravada na Serra da Misericórdia, possui a icônica Igreja de N. Sra. da Penha e um comércio agitado, mas sempre foi tratada como quartel general das facções criminosas. É sob este “argumento” que sucessivos governos atacaram aquelas comunidades como se estivessem invadindo um território inimigo.
Mas o chamado “domínio territorial” do tráfico convive lado a lado com o domínio do Estado. O transporte coletivo circulava, os agentes de saúde da família atendiam as pessoas e os agentes de limpeza recolhiam o lixo na caçamba. No acesso para cada um dos lados do morro, barricadas com barras de ferro e pneus mostram que o controle das facções é uma espécie de controle adicional ao que o Estado já exerce sobre as famílias trabalhadoras.
Chacinas há 30 anos
O Massacre da Penha foi o pior já ocorrido, totalizando 121 mortos. Destes, 117 são considerados “suspeitos” pela polícia (todos homens, entre 20 e 30 anos) e quatro eram agentes policiais. Apesar de ter contado com cerca de 2.500 militares, a dita operação não conseguiu prender nenhum líder de facção criminosa. Mesmo assim, o governador fascista Cláudio Castro (PL) classificou o massacre como um “sucesso”, provavelmente comemorando o fato de ter aplicado, na prática, a pena de morte sem qualquer amparo na legislação brasileira.
Mas essa não é uma realidade nova para os moradores dos chamados Complexos da Penha e do Alemão. De longe, as favelas daquela região da capital fluminense são as mais atacadas por forças militares do Estado. Nos últimos 30 anos, foram nove chacinas policiais registradas, e, das 10 maiores chacinas do Rio, seis ocorreram no Alemão ou na Penha.
O governador Cláudio Castro tem nas chacinas sua principal marca. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, que recolhe informações sobre tiroteios, domínio de territórios e dados sobre a violência urbana no Brasil, durante seus mais de cinco anos de governo, quase 900 pessoas foram assassinadas em operações policiais.
No Rio, “operação policial” é sinônimo de morte e também de campanha eleitoral. Desde o fim da ditadura militar fascista, a direita e a extrema-direita usam a execução de pessoas como meio para ganhar votos e redesenhar o mapa eleitoral do estado. Não é verdade que os governos não tenham controle desses territórios. Durante as eleições, apenas os candidatos de direita e fascistas podem fazer campanha eleitoral abertamente nas favelas, enquanto que os candidatos de esquerda são expulsos ou têm sua campanha muito limitada.
Ao atacar o Comando Vermelho, um ano antes das eleições, o governador do Rio busca garantir a consolidação de outros grupos criminosos na cidade, mais próximos da sua base política, especialmente as milícias. Não é por acaso que Castro anunciou mais dez operações contra o CV até o fim do ano que vem.
Sobre o massacre
O que chocou no massacre de 28 de outubro foi sua extensão e brutalidade. Cabeças e membros decepados a golpes de facão, corpos pendurados em árvores, sinais de tortura e execuções sumárias. Quando nossa reportagem chegou ao conjunto de favelas, era visível o clima de tensão em meio às atividades do dia a dia.
“O sentimento é de revolta. Eles não tinham direito de matar e penalizar esses jovens sem julgamento. Dá medo também porque eles anunciaram que vão voltar. Você fica como? À noite, ninguém fica sentado na calçada. Não sabemos o que vai acontecer daqui a 5 minutos ou daqui a 5 dias”, afirmou a professora Christiane Germano, 53 anos, conhecida como Tite, nascida e criada no Morro do Serrano, umas das favelas da Penha.
Outro morador, Vilson Luiz, 45 anos, formado em administração, questiona as “pesquisas de opinião” sobre aprovação ou rejeição ao massacre e afirma: “Aquilo não foi operação, foi pra destruir, matar e assaltar. Aqui ninguém foi perguntado se aprovava ou não. Aqui ninguém é a favor disso!”.
“Não esperem de nós enaltecer a violência! Quando o Complexo da Maré é atingido, a gente também sente. Desta vez, foi aqui. Tivemos duas janelas de vidro quebradas. Uma bala perfurou uma delas e atingiu o espelho da sala de balé. A outra janela foi perfurada, atingindo uma televisão”. Quem nos conta é Albert, 49 anos, coordenador da ONG Arte Transformadora, que possui, além do balé, aulas de capoeira e violão, um estúdio para gravação de podcasts e uma biblioteca. “Tivemos que fechar por dois dias e, na volta, recebemos as crianças com rosas. Quando fomos conversar, elas perguntavam: ‘Tio, por que quebraram nosso espelho?’. Elas não entendem ainda, mas favelado já nasce resistente, com o couro grosso”, afirma.
A luta da comunidade
A comunidade possui diversos projetos e, por isso, os moradores também denunciam a abordagem preconceituosa da grande mídia. “Na TV, eles afirmam que a Serra da Misericórdia é um lugar de desova de corpos, mas quem fez isso agora foi a Operação. Aqui não é lugar de desova, de morte, é local de vida, de semear, de plantação, de colheita e de acolhimento. Temos um projeto de agroecologia que mobiliza cerca de cem mães, com seus filhos. Além de consumir os alimentos que elas mesmo cultivam, fazem refeições para vender e gerar renda”, relata Tite. E destaca: “As mulheres é que tomaram à frente nos protestos, no cuidado umas com as outras, porque sobra para quem é mãe, esposa ou filha desses meninos que foram mortos”.
Nossa equipe subiu o morro e foi até o projeto de agroecologia acompanhada por Vilson, que atua como guia turístico dentro das favelas no Rio. “Eu sou o garoto que, há 30 anos, nunca pegou em armas”, ele afirma. “A favela é um infinito de possibilidades, mas eles só querem mostrar o lado ruim. A Rede Globo exibiu uma reportagem no Fantástico onde eu apareço associado só ao massacre. Mas eu dei uma entrevista de mais de duas horas para a repórter, falando de tudo que tem aqui. Porque o Estado não fez nada para melhorar a favela depois da operação de 2010, então somos nós, os próprios moradores, que temos que nos organizar para resolver nossos problemas”.
De fato, apesar do apoio do governo e dos grandes meios de comunicação da burguesia à violência policial e à repressão contra o povo, já está provado que essa política não leva à diminuição da criminalidade. Ao contrário.
Porém, o que existe hoje é uma política institucionalizada de violência e racismo contra os trabalhadores, a juventude negra e o povo pobre. Essa política atende aos interesses das classes ricas e dos verdadeiros senhores do crime, que não estão nas favelas, mas nos bairros nobres, nos condomínios de luxo e nos espaços de poder do Estado.
Cabe ao povo organizado pôr fim à violência policial e à exploração dos patrões. Somente um governo que seja expressão do poder popular e do socialismo, que coloque a economia e todas as riquezas do país sob controle da classe trabalhadora porá um ponto final a essa rotina de morte e violência contra os moradores das favelas brasileiras.
Matéria publicada na edição nº325 do Jornal A Verdade.