Mesmo às vésperas das eleições, quando se ampliam os espaços para a divulgação das mentiras dos protagonistas desse processo, cresce uma campanha em defesa da verdade e da justiça. É que, com a criação e o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, estruturou-se em cada estado a Rede Brasil, reunindo familiares dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985), ex-presos políticos e demais pessoas que não aceitam a violações dos direitos humanos em nosso país. Neste ano de 2014, com relativa visibilidade, muitas foram as manifestações de repúdio aos 50 anos do golpe que implantou o nazifascismo no Brasil. E em todas elas se sobressaiu o fato de aqui, ao contrário de outros países da América Latina, não haver nenhuma medida que levasse à punição dos agentes que atuaram nos porões da ditadura. Agora, neste 28 de agosto, quando deveríamos estar comemorando os 35 anos da anistia, nossas ações têm outro objetivo. Mesmo reconhecendo que ela resultou da mobilização do povo brasileiro, continuamos lutando para que essa conquista possa assegurar a justiça de transição, consubstanciando uma ruptura com o tempo do terror.
Devemos lembrar que, principalmente a partir de maio de 1978, quando foi fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo, tomou as ruas o movimento em defesa de uma anistia ampla, geral e irrestrita, envolvendo vários setores sociais. Então, o ditador de plantão, general João Batista Figueiredo, decidiu elaborar e apresentar um projeto que pudesse conter as pressões recebidas. A Lei da Anistia (nº 6.683) foi sancionada no dia 28 de agosto de 1979, tendo a preocupação de beneficiar os generais, coronéis, almirantes, brigadeiros e todos os agentes militares e civis que praticaram indescritíveis ignomínias durante os anos de tirania.
Mesmo excluindo 186 presos políticos condenados pelas ações de combate à ditadura, o projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional, sob as ameaças dos fuzis e da truculência do governo militar. Ainda assim, a vitória foi apertadíssima: a situação teve 206 contra 201 da oposição. Desse jeito, ao longo dos anos, não cessou a luta pelo triunfo da justiça. Aliás, o presidente da Câmara Nacional de Apelações no Tribunal Criminal de Buenos Aires, Eduardo Freiler, procura encorajar os brasileiros, observando que os avanços na Argentina foram possíveis “depois de muitas idas e vindas na legislação”. E a procuradora da República Eugênia Fávero até ironiza. Diz ela temer que juízes argentinos julguem criminosos brasileiros ou que o Brasil passe a receber torturadores argentinos, porque aqui há refúgio para eles.
Inúmeras “idas e vindas” aconteceram nesse período, incluindo a sentenças de uma Corte Internacional. Mas nenhum governo teve autonomia política para enfrentar o problema. A criação da Comissão Nacional da Verdade representou um inequívoco avanço. Todavia, são imensas as suas limitações, deparando-se até com a recente decisão do general Enzo Peri, comandante do Exército, proibindo seus subordinados de passar qualquer informação sobre violências praticadas, em suas unidades, durante a ditadura. E onde está a presidente Dilma, que não exonera esse defensor de quem praticou tortura, homicídio, esquartejamento, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro, atentado violento ao pudor, enfim, crimes de lesa-humanidade? Onde está a presidente Dilma Rousseff? E não venha ela falar de respeito a “pactos políticos que nos levaram à redemocratização”.
Onde está a bancada governista na Câmara Federal que não julga (e aprova) o projeto da deputada Luíza Erundina, que propõe no art. nº1: “Não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos”? Por quê? E a bancada governista no Senado, que também não vota (e aprova) o projeto do senador Randolfe Rodrigues? A proposta foi colocada em pauta a pedido dos integrantes da Subcomissão da Memória, Verdade e Justiça, que apoiam a campanha da Anistia Internacional pela punição dos crimes da ditadura militar. Por quê?
Francisco Celso Calmon, coordenador nacional da Rede Brasil, teme o caminho da “revisão” ou da “reinterepretação” da Lei da Anistia, pelo Congresso Nacional, que, na sua opinião, pode se constituir uma armadilha, porque “corre o risco de parar no STF, sob a arguição de que sendo uma revisão não retroage e não alcançará os criminosos de lesa-humanidade”. Opina: “O caminho último é uma nova arguição ao STF (patrocinada pela OAB), cuja composição é diferente da de 2010, quando sustentou a tese do pacto”.
Estou convencido de que todos os caminhos devem ser percorridos, porque 35 anos são passados, e o Brasil exige providências urgentes, para que a ditadura não continue ameaçando a vida da maioria dos brasileiros. E a impunidade não mais estimule a hedionda prática dos atuais criminosos, como está acontecendo hoje em Goiânia.
Pinheiro Salles, presidente da Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas e coordenador da Rede Brasil do Centro-Oeste