A partir do Censo de 2010, e pela primeira vez desde a Lei Áurea, a maioria da população brasileira se autodeclarou negra, dentre os quais estão pretos e pardos. Em comparação com o Censo realizado em 2000, o percentual de pardos cresceu 38,5% para 43,1% (82 milhões de pessoas), em 2010. A proporção de pretos também subiu de 6,2% para 7,6% (15 milhões), no mesmo período, sendo a população brasileira atualmente composta de aproximadamente 97 milhões de negros. Já a população que se autodeclara branca caiu de 53,7% para 47,7% (91 milhões).
De acordo com analistas socioeconômicos do IBGE, o que ocorreu foi uma maior tomada de consciência da população sobre a sua cor da pele, sua identidade racial. No entanto, existe o outro lado da moeda: ainda vemos enorme diferença entre os que se autodeclaram pretos ou pardos. No último Censo, a diferença entre pretos e pardos era de 35,5%, considerando que os entrevistados deveriam escolher entre cinco respostas predefinidas (preto, pardo, branco, índio e amarelo).
Quando foram permitidas respostas livres, vieram as mais variadas possíveis: moreno, moreno escuro, mulato, morena-jambo, marrom-bombom, marrom-glacê, escuro, escurinho, dentre outros. Tais dados mostram a dificuldade de a população brasileira ver sua cor da pele, assumir sua negritude. Um problema de identidade racial.
Outro exemplo é a insatisfação de alguns negros com suas características físicas. Muitos (principalmente mulheres) não conseguem ver beleza em seus cabelos naturais cacheados ou crespos, ou tentam modificar através de cirurgias plásticas o “nariz largo ou achatado”, ou disfarçar os “lábios grossos”. Foi desenvolvido até mesmo um creme que “clareia” a pele negra, já amplamente vendido em países africanos. Mas por que isso acontece?
Para entendermos tal questão, precisamos entender que o padrão do que é “belo” é um valor social, determinado pela sociedade, e aprendido na nossa educação desde que nascemos. Como vivemos num mundo onde os interesses do mercado são os que definem nossas relações, o “belo” é tratado como mercadoria.
Não é difícil observar que o poder da grande mídia por meio da televisão, revistas, jornais e internet vem impondo à sociedade padrões de beleza que não respeitam, muitas vezes, as características do negro.
Sendo a beleza uma mercadoria no mercado da moda, e estando na Europa as elites da moda internacional, a beleza europeia é a escolhida por esse mercado, excluindo modelos negras. Essas mesmas relações de mercadoria aprendemos também na infância, no ambiente escolar. As crianças consideradas “mais bonitas” e queridas são as de olhos ou cabelos claros. Lembremos que a infância é um período fundamental para a formação da autoestima e da personalidade de um adulto.
No ensino de História do Brasil, livros didáticos pouco mostram heróis negros em nossa história; pouco se fala a respeito da importante contribuição do negro para a cultura brasileira, as artes, a ciência, técnicas de produção… Enfim, nosso importante papel sócio-político-cultural na construção do país. Nos jornais, poucos cientistas, pesquisadores, educadores negros são mostrados, questionando a inteligência e escondendo as capacidades do negro enquanto liderança na sociedade. Nas novelas, poucos são os protagonistas negros. Mulheres e homens negros aparecem quase sempre vendendo sua “sexualidade”, mercadoria de alto valor no período do Carnaval. Esse é o “estereótipo negro”.
Mas tal visão do negro não passou a ser construída recentemente. Desde que a escravidão do negro foi implementada em nosso país, sua imagem já era desconstruída a partir da sua inferiorização. O sistema escravista era extremamente lucrativo, negros e escravos eram coisa: não tinham direitos, eram propriedade dos brancos ou até mesmo usados como moeda de troca. Esta mesma elite inventou que negros não tinham alma, portanto, não sentiam dor e não tinham inteligência. A cultura e a religião negras foram inferiorizadas como “diabólicas”. Se o negro era considerado em tudo inferior, logo, merecia ser superexplorado.
Após a Abolição da Escravatura, com a chegada do capitalismo, sendo a maioria da população negra, não foi diferente. Como mostramos na edição de novembro de 2014 de A Verdade, o capitalismo também vê no racismo uma forma de sustentar a superexploração do povo. Sendo o trabalhador negro aquele que recebe menores salários, ele se torna mais barato para o empresário que o admite: portanto, aumenta o lucro das elites. A mão de obra negra é a mais barata. Negros, assim como as mulheres, foram escolhidos para ocupar os setores mais pobres, mais explorados (e oprimidos) da sociedade.
Mas para manter tal estrutura social, é necessária uma ideologia racista que sirva ao capitalismo, que justifique tais injustiças, e que convença à maior parcela da população do nosso país, os negros, de que são inferiores (e não têm inteligência para organizar a produção e a sociedade) e devem se submeter a toda forma de exploração e opressão, pois são inferiores. O racismo, um componente da ideologia burguesa, é uma ideologia de submissão, que classifica o negro como inferior. Serve aos interesses da classe dominante. A partir daí entendemos porque tantos negros negam a sua cor: ninguém quer ser o que há de pior. Ninguém quer ser inferior!
É preciso que a população, principalmente negra, desenvolva sua consciência e, ao perceber a enorme mentira presente no discurso que os inferioriza, assuma sua negritude. Ainda mais: precisamos tomar consciência da importância de nos organizarmos e lutarmos contra a superexploração capitalista do negro e contra a ideologia racista que a sustenta. Assim, ao invés de vergonha, teremos orgulho de sermos negros, e orgulho da nossa luta e resistência.
Carla Lima, Clério Rosa e Eloá Santos
Grupo de Estudos e Luta contra Desigualdades Étnico-Raciais, Rio de Janeiro