Os modismos da sociedade influenciam com muita força nosso agir e pensar, tirando grande parte da nossa autonomia. Em alguns casos adquirimos gírias e figuras de linguagem, em outros, adotamos o gosto por estilos musicais ou culturais que não nos pertenciam até pouco tempo. De repente, podemos nos encontrar frequentando o mesmo local que toda a cidade parece frequentar – e quase sempre no mesmo horário. Mas em casos mais sérios adotamos o ponto de vista e a forma de interpretação do mundo que nos é imposta pelos veículos de comunicação e difusão cultural de setores atrasados da sociedade.
Isso é o que vem acontecendo, há algum tempo, quando o assunto é a obtenção, interpretação e utilização do conhecimento na área das ciências. E, como geralmente acontece, o setor que mais expressa essa falta de autonomia de pensamento é a juventude, muito por estar conectada aos fatos mais atuais e ao interesse em se manter sempre na vanguarda das opiniões e querendo parecer “descolada”.
A expressão mais recente da adoção de um modismo, sem reflexão do que ele representa, é a mania de justificar a falta de conhecimento ou a preguiça de aplicar o conhecimento que se possui com a frase “não sei, sou de humanas”, todas as vezes que surge um problema relacionado às chamadas ciências exatas.
A divisão do conhecimento
Isaac Newton, Blaise Pascal, Galileu, René Descartes, são exemplos de nomes que aprendemos a decorar na escola por causa de suas leis e teorias para explicar o funcionamento da natureza, mas escondem de nós que eles e tantos outros cientistas foram também grandes filósofos e pensadores da organização da sociedade.
Ao afirmar que a Terra girava em torno do Sol e defender a teoria do heliocentrismo, Galileu confrontou toda a estrutura arcaica da Igreja Católica, que durava quase 1.500 anos. Descartes foi outro que enfrentou a Igreja (embora faça uma defesa velada de Deus em seus livros para evitar que fossem queimados em praça pública) ao divulgar suas descobertas matemáticas e aplicá-las na interpretação do mundo defendendo a razão e não o espírito como orientadores das ações humanas. Newton e Pascal são conhecidos por suas leis da física, mas escreveram livros que defendiam outra visão do mundo. Assim como eles, poderíamos citar centenas de nomes.
A questão é que, desde o surgimento da Filosofia, os pensadores refletiam em conjunto sobre a natureza, a matemática, a geografia, a sociologia, a teologia e todas as outras ciências que se desenvolveram depois. Assim, eles tentavam responder as questões mais complexas sobre a realidade do ser humano, de onde viemos e para onde vamos e outras questões que nos atormentam desde que passamos a compreender e refletir sobre quem somos.
Afinal, fazia todo sentido pensar dessa forma unificada, já que é impossível compreender de forma material e dialética a realidade social sem compreender a realidade da natureza e o que elas nos fornecem de base para desenvolvermos a sociedade.
A quem serve a divisão do conhecimento?
Ao longo dos séculos, o conhecimento foi sendo dividido em ramos ou setores. É claro que devemos levar em conta o acúmulo do conhecimento pela humanidade e de como ele se aprofundou no entendimento da realidade social e natural. Mas, como toda separação, a do conhecimento também produz segregação e divisão em classes (não apenas dentro das escolas).
Com o advento da escola, mais ou menos nos moldes que temos até hoje, nos séculos XVIII e XIX, foi desenvolvida a forma isolada de transmissão e aprendizagem de conteúdos no chamado ensino básico. Foram criadas as matérias como letras (português), ciências exatas (matemática, biologia, química, física, geografia), ciências humanas (história, sociologia, filosofia), além da psicologia, educação física, entre outras.
No Brasil, por exemplo, a educação pública e gratuita para todos(as), inclusive a população pobre, que, até então, sofria intensamente com o analfabetismo, só se tornou realidade na década de 1960. E isso por necessidade de formar mão de obra nacional que pudesse trabalhar e ampliar os lucros das empresas que se instalavam no País na época do chamado “milagre econômico”.
Durante vários séculos, as mulheres foram privadas de frequentar as universidades, mas, ainda antes, elas eram privadas de estudar matemática ou cursos profissionalizantes, ficando relegadas ao ensino religioso ou dos afazeres da casa. A intenção era clara: garantir que a mulher se mantivesse dependente do homem, cuidando da casa e dos filhos, enquanto o homem era o único capacitado a ter alguma renda pela venda da sua força de trabalho. Não esqueçamos que hoje o maior empecilho para as mulheres deixarem suas casas quando são alvo da violência doméstica continua sendo a dificuldade de obter uma renda pelo próprio trabalho.
Há pouco mais de 50 anos, ainda era fácil encontrar escolas somente para brancos ou outras em que negros não podiam sentar próximos aos brancos e ter acesso à mesma qualidade de educação. Isso se reflete ainda hoje na pouca presença dos(as) negros(as) em cargos de chefia ou que sejam estratégicos para uma empresa.
Portanto, a segregação intelectual é mais uma expressão e um dos pilares da forma capitalista de reger essa sociedade opressora e ampliar cada vez mais exploração das classes que não estão poder.
Superar nossa visão metafísica
Engels é conhecido principalmente por suas obras junto com Marx, mas são suas obras como Dialética da Natureza e Anti-Dühring, que explicam a base material da natureza. Lá está escrito que os níveis mais básicos do movimento dialético surgem no movimento das partículas subatômicas na física, elevada até a química, a biologia e, só por fim, a sociologia. Também são obras que nos ajudam neste sentido Materialismo e Empiriocriticismo, de Lênin, e A Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, de Marx.
É preciso compreender, por exemplo, a importância do domínio da matemática para a revolução. No livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, Lênin comprova a era dos monopólios e do imperialismo através de tabelas e cálculos matemáticos.
A URSS é outro exemplo de como as “ciências exatas” são importantes para a revolução. Sem o desenvolvimento da ciência não teria sido possível transformar um país semifeudal na segunda maior potência mundial, inclusive sendo o primeiro país a mandar um foguete para o espaço. Esse foguete, com certeza, não foi construído por historiadores ou cientistas sociais, mas por físicos, químicos, matemáticos e astrônomos(as), com apoio de todo o povo.
Portanto, é inaceitável que tenhamos camaradas que não conseguem (ou não se esforçam para) calcular quantos jornais foram vendidos em uma brigada e quanto dinheiro deve ter sido arrecadado ou que não conseguem planejar atividades de finanças com os gastos e lucros.
É urgente que as escolas do partido comecem a funcionar o mais rápido possível e tenham módulos de estudo das ciências naturais. Seu domínio, junto com as ciências sociais (e o fim da divisão em exatas e humanas), é imprescindível para a estruturação e sustentação de uma revolução proletária.
A revolução é interdisciplinar
Che Guevara era médico. Marx, Lênin e Fidel se formaram em Direito. Engels prestou serviço militar. Stálin abandou os estudos no seminário ainda muito jovem para construir o Partido Bolchevique. Krupskaia e Clara Zetkin eram educadoras. Muitos dos militantes mortos pela Ditadura Militar no Brasil eram estudantes de Geologia, Física, Química, História, Medicina, Direito e outros cursos ou eram operários(as), camponeses.
De outro lado, temos cientistas como Alfred Nobel e Albert Einstein que pensaram e criticaram socialmente o uso dos conhecimentos desenvolvidos por eles (Nobel criou a dinamite que foi utilizada para matar milhões de pessoas na Primeira Guerra e Einstein fazia campanha contra o uso de energia atômica para construção de bombas nucleares).
Para ser revolucionário ou revolucionária não é obrigatório estudar em uma universidade pública nas chamadas “faculdades de letras e ciências humanas”, muito menos ter aversão a números ou viver de formas alternativas ao que o povo vive. Para ser revolucionário(a) é preciso conhecer a realidade do povo e saber quais as bases materiais que nos permitem e ajudam a construir o socialismo científico e destruir esses sistema opressor que oprime até mesmo nosso pensamento.
Lucas Marcelino, é professor e militante do MLC