Tatiane é mulher, negra e pobre. Passou a metade da vida tentando sobreviver e dar alguma dignidade a seus filhos. Agora, passará 20 anos afastada deles e da vida em sociedade, punida pelo Estado por um crime que não cometeu. Até quando as mulheres, sobretudo as mulheres negras e pobres, serão consideradas culpadas por toda a violência que sofrem?
“Hoje você vai conhecer a história da Tatiane, do Amilton e do Diogo. Tatiane é a mulher representada na imagem, segurando a foto de Diogo, seu filho, que tinha 1 ano e 2 meses na época.
Tatiane da Silva Santos é uma mulher negra e pobre do Sul do Brasil. Não é difícil imaginar que a violência sempre esteve presente em sua vida, mas vamos aos detalhes: quando pequena, seus pais eram usuários de drogas e extremamente violentos. O ciclo da violência dentro de casa era o seguinte: o pai agredia a mãe, que agredia Tati e seus irmãos. Após um episódio de espancamento um pouco mais grave, Tati saiu e casa para morar com sua avó, a quem ela se refere como sua “verdadeira mãe”. Aos 17 anos, Tati, ainda sem o ensino fundamental completo, deu à luz a sua primeira filha, fruto de seu primeiro relacionamento. Pouco tempo depois, conheceu Amilton, por quem se apaixonou e de quem engravidou após oito meses de relacionamento, o que fez com que fossem morar juntos.
Até este momento, Amilton trabalhava e era um companheiro estável. Tudo mudou quando ele perdeu seu emprego: Amilton se mostrou uma pessoa extremamente violenta e controladora, que costumava acusar Tatiane de infidelidade com frequência e exigir que ela abandonasse seu emprego.
Desempregado e viciado em cocaína, Amilton se dedicou à venda de crack e maconha para sustentar seu vício. Finalmente, em 2011, Amilton passou duas semanas preso em flagrante por tráfico de drogas. Ao retornar da prisão, seu vício pela cocaína estava ainda mais descontrolado e seu lado agressivo também aumentou: assim que chegou em casa, voltou a acusar Tatiane de infidelidade e a agrediu com uma faca, deixando-a com uma cicatriz em seu braço. As agressões, então, passaram a ser cada vez mais frequentes e intensas, sempre desencadeadas por suspeitas de Amilton sobre uma suposta infidelidade de Tatiane. Tatiane, vítima de abusos por seus pais desde a infância e ainda apaixonada por Amilton, não conseguia perceber que estava, mais uma vez, envolvida em uma relação abusiva, cujo agressor, agora, era seu companheiro.
No Natal de 2011, grávida de Diogo, após um episódio de agressões de Amilton a suas irmãs e a Tatiane, ela fugiu com seus filhos para procurar abrigo na casa de uma amiga. Alguns dias depois, contudo, foi surpreendida por sua própria mãe, que se uniu a Amilton para forçá-la a voltar para casa. Tatiane, então, teve Diogo, seu filho mais novo, e as agressões de Amilton intensificaram-se ainda mais.
Tatiane pediu socorro ao Estado diversas vezes, porém nunca foi pelo Estado protegida. Em uma audiência de conciliação, resultado de um dos vários registros de ocorrência feitos por Tatiane, o juiz, apesar de ciente do histórico agressivo de Amilton, não aplicou nenhuma medida protetiva da Lei Maria da Penha para garantir a integridade física e psicológica de Tatiane e de seus filhos, dando-se por satisfeito apenas com promessas por parte de Amilton de iniciar um tratamento para seu vício em cocaína.
O judiciário, na verdade, além de não proteger nem Tatiane nem seus filhos, deu mais argumentos a Amilton para coagir Tatiane a permanecer com ele: em 2013, após uma separação do casal, Amilton passou a ameaçar Tatiane, dizendo que foi orientado pelo Conselho Tutelar a registrar ocorrência contra ela caso ela não permitisse que ele mantivesse contato com os filhos, ao argumento de que ela estaria descumprindo decisão judicial, uma vez que foi estabelecido pela Justiça que Amilton teria direito de passar o sábado com as crianças.
Com medo de perder a guarda dos filhos, Tatiana cedeu e eles voltaram a viver juntos. Tatiane sempre foi uma mãe que se desdobrava entre seu emprego e o cuidado de seus filhos sozinha, já que Amilton, ainda que desempregado há tempos, jamais a ajudou.
Em 23 de setembro de 2013, então, Diogo, o filho mais novo, estava doente e Tati o levou ao médico. Por orientação das próprias professoras da criança, Diogo não foi à escolinha naquela semana. Tatiane, que trabalhava 7 dias por semana e não tinha condições de bancar uma creche para seu filho, não teve escolha a não ser deixar a criança sob os cuidados de Amilton, pai de Diogo, enquanto estava no trabalho.
Foi então que Amilton, aparentemente aproveitando-se da situação, decidiu que ficaria integralmente responsável pelos cuidados com a saúde de Diogo, numa tentativa de aproximar-se do filho, já que suas agressões contra Tatiane resultaram em uma ausência de convivência entre ele e a criança. Amilton se mostrou tão empenhado nesta aproximação que chegou a impedir, de fato, que Tatiane cuidasse do filho doente durante aquela semana, passando a ser ele o único responsável pela higiene, alimentação e demais cuidados com a criança. Tatiane, surpresa, chegou a acreditar que Amilton estava finalmente mudado e assumindo seu papel de pai, algo que ela considerava muito importante para o bom desenvolvimento dos filhos.
Infelizmente, Tatiane estava errada. Em um sábado, após 6 dias desta aparentemente nova realidade, ela chegou em casa do trabalho e Diogo estava dormindo no quarto. Ao tentar se aproximar de seu filho, Amilton a impediu, insistindo para que ela deixasse a criança descansar. Ela obedeceu. Contudo, conforme as horas passavam e a criança não acordava, Tati começou a desconfiar de que algo estava errado e foi checar seu filho, contrariando as ordens de Amilton. Ao tirar suas roupinhas, viu que a criança estava fraca, gemendo e com hematomas por todo o corpo. Neste momento, Amilton fugiu de casa. Desesperada, ela foi pedir socorro na vizinhança, carregando seu filho nos braços. Poucas horas depois de dar entrada no hospital, contudo, Diogo foi a óbito.
Deprimida e traumatizada com a morte de seu filho mais novo por Amilton, surpreendentemente Tatiane foi denunciada, em 11 de novembro de 2013, por homicídio qualificado por motivo torpe, além de tortura e maus tratos.
O mesmo sistema que se esquivou de protegê-la das agressões de seu antigo companheiro, agora também a culpabilizava pela morte de seu filho: na condição de mãe da vítima, tinha a obrigação de prover os cuidados necessários ao bem estar da criança, em vez de deixá-la com um “indivíduo sabidamente violento”, conforme consta da denúncia.
O procedimento foi, do início ao fim, um festival de misoginia. Tatiane foi chamada de mãe desnaturada, monstro, masoquista e narcisista. Foi hostilizada por ter deixado seu filho doente aos cuidados do pai enquanto trabalhava. Foi acusada de sociopatia por supostamente não ter chorado no hospital, em estado de choque com a tragédia que acabava de acontecer. A própria denúncia feita contra Tatiane se contradiz: ora a acusa por ter se omitido no cuidado com o filho, ora a acusa por ter desejado a morte do filho, estando em “acerto de vontades” com Amilton.
Em 13 de novembro de 2013, Tatiane foi presa preventivamente e nunca mais saiu do Presídio Madre Pelletier. O julgamento só foi acontecer em novembro 2016, momento em que, mais uma vez, a misoginia foi a personagem principal. Uma série de estudantes engajadas na causa feminista compareceram ao julgamento vestindo camisetas em apoio a Tatiane. Ameaçadas pela promotora designada para o caso, foram obrigadas pelos seguranças a retirarem as camisetas. Durante todo o julgamento, as chamadas “estudantes feministas” foram tratadas com hostilidade e apontadas como perturbadoras da ordem que atrapalhariam o julgamento. A defesa interveio, falando que a promotora estava provocando e tentando humilhar a platéia, que não podia se manifestar naquele momento. O juiz que presidia a sessão disse que a defesa, ao intervir, estava tumultuando a sessão, mas não pensou em nenhum momento no constrangimento e intimidação que a promotora praticava contra as mulheres ali presentes.
A parte mais cruel do discurso da acusação foi quando apontou para Tatiane, gritando que ela era uma péssima mãe, preguiçosa, que não queria nem trocar as fraldas do filho e que não se importava com as crianças devido ao seu ego inflado e a obsessão pelo macho. E que hoje em dia “nem mulher pobre usa fralda de pano”, que “pobre compra fralda da panvel”. Tatiane e sua defensora, assim como muitas da plateia, choraram muito nesse momento.
Desconsiderando o ciclo de violência doméstica, bem como o arcabouço jurídico e doutrinário de proteção às mulheres,a tese de acusação adotada em plenário foi de que a recorrente era uma mulher narcisista, que gostava de apanhar de Amilton, com o qual teria uma “compatibilidade sexual”, conclusão a que chegou a Parquet devido ao fato de Tatiane ter retornado ao relacionamento abusivo, desconsiderando que o retorno ao ciclo de violência é algo comum a todas as mulheres vítimas de violência doméstica, que, embora violentadas, não conseguem romper com o vínculo, seja pela destruição da sua autoestima, por medo, por acreditar que esse é o papel de uma mulher, pelos filhos, entre inúmeros outros fatores. A chamada “compatibilidade sexual” afirmada pela promotora, contudo, para Tatiane, representava o estupro marital, ao qual era submetida constantemente por Amilton.
Ao final, o Conselho de Sentença, composto por 7 juradas, acolheu a tese acusatória, condenando Tatiane a uma pena de 22 anos, 2 meses e 22 dias de prisão. Quase um ano depois, no dia de seu aniversário, em 27 de setembro de 2017, foram julgadas as apelações de defesa e de acusação, momento em que os desembargadores aumentaram ainda mais a sua pena para 24 anos 9 meses e 10 dias de prisão, ao argumento de que Tatiane teria uma personalidade narcisista, pois, mesmo sabendo da personalidade violenta de Amilton, permaneceu no relacionamento, expondo seus filhos e a si mesma a risco.
Desde 2013, os outros dois filhos de Tatiane estão acolhidos na rede de assistência social de Porto Alegre e não tiveram qualquer contato com a mãe. Tatiane, inclusive, relata uma enorme dificuldade de obter qualquer informação que seja sobre as crianças. Como se todo este sofrimento já não fosse o bastante, antes mesmo do trânsito em julgado de sua condenação, violando a presunção de inocência garantida pela nossa Constituição, Tatiane foi destituída da guarda de seus filhos pela 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. As crianças perderam seu irmão mais novo, sua mãe e estão, agora, entregues à adoção.
O caso de Tatiane é extremamente ilustrativo de uma situação que já é denunciada pela Criminologia feminista há tempos: o Direito Penal tem gênero. O Direito penal é masculino desde o momento em que cria as leis (“Mulher honesta”), até o momento em que as aplica. Há muitos fatores que implicam em maior prejuízo às mulheres do que aos homens quando em contato com a justiça criminal, seja como autoras de um fato criminoso, seja como vítimas: a mulher não é protegida quando precisa da tutela do sistema penal e, do mesmo modo, também é punida com mais rigor quando está na posição de ré. Se a criminologia crítica, nos anos 70, conseguiu demonstrar que o capitalismo atravessa profundamente a teoria do delito, trazendo o arcabouço da teoria materialista histórica e dialética para dentro do estudo do crime e suas variáveis, a criminologia feminista revela que o patriarcado, do mesmo modo, atravessa o estudo do crime e a forma como os indivíduos são tratados pelo sistema de justiça criminal. É como se o sistema penal não pudesse deixar de reproduzir a sociedade patriarcal em que vivemos.
Tatiane foi vítima da violência de seus pais durante a infância. Depois, foi vítima da violência de seu companheiro no início da vida adulta. Agora, e pelos próximos 20 anos, é vítima da violência do Estado que, além de se omitir quando deveria tê-la protegido, a puniu com severo rigor pelo resultado trágico da violência do ex-companheiro.
Tatiane é mulher, negra e pobre. Passou a metade da vida tentando sobreviver e dar alguma dignidade a seus filhos. Agora, passará 20 anos afastada deles e da vida em sociedade, punida pelo Estado por um crime que não cometeu. Até quando as mulheres, sobretudo as mulheres negras e pobres, serão consideradas culpadas por toda a violência que sofrem?”
Matheus Portela, militante da Unidade Popular – RS
Imagem: Thais Linhares/Liberdade Para Tatiane.
Texto publicado originalmente na página do Instituto de Defensores de Direitos Humanos no Facebook.
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