Quando o poeta escreveu sobre um ‘bicho’ catando comida na rua, chamou a atenção e repulsa. O bicho era um homem[1]. Um humano, entre os detritos, era notícia de primeira página nos anos 40. A poesia denunciando as mazelas sociais de nosso país. Mas a poesia, muitas vezes, não chega nem perto da realidade. O poeta conseguiu achar poesia no lixo. Mas não há poesia alguma ali, onde a fedentina e os ratos disputam palmo a palmo com crianças seu lugar no mundo. A poesia toca, fere, machuca, mas não resolve. Afinal, quem muda os corações dos homens? E o que se dizer de quem vive à margem, abaixo dos cuidados do próprio lixo? Porque o lixo ainda tem destino, dia e hora pra ser recolhido. Mas quem “recolhe” o lixo deixado e criado pelo capitalismo? Quem cuida de Maria, que mora na rua, quem se importa se Ana Cleide procura ou não, comida no lixo, para sustentar seus dois filhos? Quem lê as denuncias de Carolina de Jesus em seu “Quarto de Despejo”, ou o bicho de Manuel Bandeira nessa escola ‘sem’ partido, enquanto michelzinho, de apenas 9 anos, já é um milionário?
Em cada esquina no país, becos e vielas, escadas, marquises e em quase todas as ruas do mundo, pessoas disputando colchões com os ratos e baratas, pratos de sopa mendigados ou doados, natais solidários, fotos em capas de jornais e revistas, lágrimas arrancadas de corações sensibilizados, mas Maria, Antônia, Joana, Lúcia, Pedro, continuam morando na rua, comendo na rua, morrendo na rua todos os dias. De vez em quando, sumiço. Viatura passou. Viaturas violentas, queima de arquivo todos os dias, volta e meia promessas de políticos, carro pipa pra limpar as cidades que nunca são limpas. Faz frio na calçada que tem dono de madrugada. Esfaquearam um candidato ali de frente, Maria nem viu.
Tu já passou fome em casa? Já mediu o peso de ver um prato de comida indo pro lixo? Milhões e milhões de toneladas que geram milhões de reais e alimentam, sustentam mandatos, sindicatos corruptos, a fome do patrão e do sistema que mata de frio e descarta crianças e mulheres como se não fossem nada. Mas Maria ainda mora na rua, queira o poeta ou não. Seja nas ruas do Recife ou de Nova Iorque. Ana Cleide de Jesus repete os passos de Carolina de Jesus e Jesus parece não se importar muito com seus filhos pobres. Maria mora na rua, enquanto os ministros do STF aumentam, deliberadamente, seus salários, e banqueiros, militares e fascistas, disputam com lobos em pele de cordeiro os votos de milhões de famintos, com ou sem emprego, com ou sem carteira assinada.
O poeta denuncia o ‘bicho’ que cata comida na rua, mas a poesia nem imagina o que é disputar a vida toda madrugada com a morte pra não morrer de fome ou de frio, com o medo de encontrar um punhado de fascistas procurando mais um índio Galdino. Mas isso não passa no horário nobre da TV, isso não dá ibope nem chama a atenção. Nos guias eleitorais, só mentira. O ‘brazil’ que mostram nem parece ser aqui. Mas isso é capitalismo. E capitalismo é sujo. Fede a lixo. Cria, joga e tornam pessoas em lixo. Maria morando na rua e Maristela, filha de Michel Temer, reformando seu AP com dinheiro público e essa justiça nem um ‘piu’, nem uma vírgula. Maria catando lixo e o capitalista cagando e andando pra tudo isso. Literalmente.
Clóvis Maia, Pernambuco
[1] Do poema “O Bicho”, do poeta pernambucano Manuel Bandeira, do livro “Belo belo”, de 1948.