Por Alexandre A. Martins
Inicio com uma história que testemunhei em 2013, quando estava estudando nos EUA. Estava participando de uma aula, quando uma das minhas colegas passou mal e desmaiou. Imediatamente acionamos o serviço médico da faculdade, que prestou os primeiros-socorros e disse que ela precisaria ir para o hospital, sendo necessário chamar uma ambulância. Instintivamente peguei o celular para chamar uma, como se faz no Brasil, pensando existir um serviço como o SAMU. Os socorristas da faculdade perguntaram se a minha colega, uma estudante internacional como eu, tinha plano de saúde e se este cobria ambulância. Ela tinha o mesmo seguro que eu, mas não sabia responder a pergunta. Então, a decisão dos socorristas foi não fazer nada, porque o custo de uma ambulância era muito caro e a minha colega talvez não pudesse pagar. “O que fazer então?” Os socorristas responderam: “Não podemos fazer mais nada, mas, se você quiser, pode levá-la ao pronto-socorro no seu carro. A responsabilidade será sua; se acontecer algo com ela e criar um problema jurídico.” Assumi o risco e a levei ao hospital. Lá, apesar de aparentemente vazio, demorou muito para que um enfermeiro ou médico se apresentasse. Passei a maior parte do tempo resolvendo a burocracia sobre o plano de saúde. No fim das contas, ela foi atendida coberta pelo plano dado pela faculdade, mas, duas semanas depois, ela recebeu uma conta de 900 dólares para pagar.
Estudando bioética e saúde pública nos EUA, aprendi na prática e por meio dos livros o custo da saúde no país ainda considerado o mais rico do mundo. Aqui não existe um sistema de saúde pública com cobertura universal como o SUS. Tudo depende de um seguro ou plano de saúde. Se a pessoa tem um emprego formal, seu empregador oferece um plano, para o qual contribui com 80% do valor mensal e o empregado contribui com os outros 20%. Esses planos são muito caros, com mensalidades totais que podem variar de 500 até 2000 dólares. Mas isso não é tudo. Todo plano tem um sistema de copagamento e um sistema chamado dedutíveis (uma espécie de franquia, como existe no Brasil em seguros de carros) quando a pessoa precisa de algum serviço de saúde mais avançado e caro. O copagamento é simples de entender: toda vez que se faz uma consulta, seja de emergência ou rotina, o plano não cobre o valor integral; o paciente tem que pagar uma quantia em dinheiro para o profissional de saúde e/ou à instituição de saúde onde foi atendido. Esse copagamento também é aplicado a medicamentos. O dedutível é um sistema mais complexo e deixarei para o leitor interessado fazer sua pesquisa; em linhas gerais, quando alguém precisa de algo complexo como internação, leito de UTI ou cirurgia, dependendo do plano que tem, deve pagar um extra que pode chegar até 8 mil dólares por ano, além do que já paga todo mês. Uma ambulância, como minha colega precisava, pode variar de 200 a 1000 dólares de copagamento com plano de saúde e pode ultrapassar a marca de 2000 dólares sem plano. Como dizem os economistas Anne Case e Angus Deaton (esse, ganhador do Nobel em Economia), ambos da Universidade de Princeton, em artigo publicado no The New York Times, “a indústria de saúde americana não é boa na promoção da saúde, mas tem excelência em tirar dinheiro de todos nós para o seu próprio benefício.”
Para complicar ainda mais, as pessoas de baixa-renda e sem um trabalho formal não têm acesso a planos de saúde e não há um sistema público com o qual possam contar quando precisam. Há planos populares subsidiados pelo governo, como o Medicaid e o Medicare, assim como outros parcialmente subsidiados, parte do Affordable Care Act (conhecido como Obamacare), mas eles são limitados e não conseguem atender todos que precisam. Ademais, eles são dependentes do sistema privado de saúde, como é todo sistema estadunidense, isto é, o governo paga um “planinho” para que as pessoas de baixa-renda tenham acesso a algum serviço de saúde, mas que também exige copagamento. Em síntese, todo o sistema de saúde estadunidense é regido pelo sistema privado dentro do capitalismo de livre mercado. Não há nada público, nem participação popular em decisões, tampouco justiça distributiva. Consequentemente, há muita injustiça na saúde em um sistema elitista no qual o acesso aos serviços de saúde é um privilégio de quem pode comprar algum commodity, isto é, saúde é um bem de consumo adquirido com dinheiro e não um direito social.
Atualmente, os EUA têm em torno 28 milhões de pessoas sem plano de saúde, mais aproximadamente 11 milhões de imigrantes indocumentados com pouco acesso a serviços de saúde, sendo que 45% dessa população estão sem qualquer cobertura.
A pandemia do coronavírus e da Covid-19 escancarou os desigualdades e injustiças do sistema de saúde estadunidense. Tecnicamente, não é possível dizer que os EUA tenham um sistema de saúde, mas, sim, sistemas independentes, isto é, companhias privadas que vendem saúde como commodity. Eles funcionam de forma independente um do outro e os governos federal e estadual não interferem na operação dos sistemas. Há leis de saúde para regular os sistemas e os planos de saúde, mas elas são mínimas; segue-se a lógica do mercado liberal. Sem regulamentação e controle de preços, o custo dos serviços de saúde é estratosférico, sendo os EUA o país que mais gasta com saúde no mundo e o que oferece menor cobertura entre os países desenvolvidos. Nesse mercado liberal da saúde, o governo tem pouco poder de intervenção nos sistemas de saúde para organizar uma resposta nacional ao coronavírus. Um exemplo disso são os testes: por mais que o governo federal esteja providenciando testes gratuitamente, eles têm de ser realizados em uma instituição privada; a pessoa examinada não paga pelo teste, mas tem de pagar pelo local onde ele é realizado, pelo material utilizado para coletar a amostra para o teste e pelos profissionais de saúde. Muitas pessoas têm recebido contas altas depois de serem testadas e outras, com sintomas, não vão ao hospital porque não podem pagar.
Outro dado que mostra a injustiça desse sistema está relacionando às populações que estão sendo mais infectadas e morrendo devido à Covid-19: negros, imigrantes e pobres. Esses três grupos formam, de modo geral, as populações mais socioeconomicamente vulneráveis. Elas já sofrem com muitas desigualdades em saúde e agora têm sido infectadas e estão morrendo devido à Covid-19 de forma desproporcional ao restante dos outros grupos populacionais, especialmente em relação aos brancos e às pessoas de renda média e alta.
O custo da falta de um sistema de saúde universal e público, no qual o acesso a serviços de saúde é um direto, é muito alto. Ele é pago com vidas humanas. A assistência à saúde controlada pelo mercado liberal, tal como é o sistema estadunidense, se autoalimenta por meio do lucro, retirando o dinheiro das pessoas no limite das suas capacidades. É um sistema que lava as mãos diante do sofrimento do povo. Saúde é um direito humano, e para que esse direito valha é preciso a luta popular, aproveitando o momento histórico para construir um sistema de participação popular, como é o SUS, que, mesmo sem financiamento adequado, promove mais justiça do que qualquer sistema neoliberal. A esperança é que os EUA saibam aproveitar a oportunidade do momento histórico para promover mudanças estruturais depois dessa crise, que está provando a injustiça e a crueldade do capitalismo.
*Alexandre A. Martins é doutor em Bioética e Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos, professor e pesquisador na Marquette University em Wisconsin, EUA. Autor de “Bioética, Saúde e Vulnerabilidade: em defesa da vida dos mais vulneráveis” (Paulus, 2011); “The Cry of the Poor: liberation ethics and justice in health care” (Lexington Books, 2020)