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Por Juliana Auler
Movimento de Mulheres Olga Benario – MG
O feminismo é hoje um importante setor das lutas populares, sendo muitas vezes porta de entrada para mulheres, em especial as mais jovens, para uma luta contra a exploração e a opressão em um sentido mais amplo. Seu poder de mobilização é inegável, em especial na América Latina, considerada vanguarda na luta feminista, seja com a campanha #NiUnaMenos, a luta pela descriminalização do aborto na Argentina ou gigantescos 8 de Março que ocorrem em diversos países todos os anos. As mulheres também são protagonistas nas lutas estudantis, greves e nas manifestações do Equador e do Chile, que serviram de inspiração para lutadores e lutadoras do mundo todo.
Este cenário, contudo, não significa um caminho livre de problemas para as feministas comprometidas com a emancipação da humanidade, que lutam não só contra o machismo, mas também contra o capitalismo e o racismo, ou seja, as feministas marxistas. É sabido que uma série de vertentes distanciam as mulheres da luta pelo socialismo, tanto o feminismo liberal – ou para algumas autoras, o feminismo de mercado -, mas também o feminismo pós-moderno, “radical”, etc.
Conseguir se tornar majoritário é a principal tarefa do feminismo marxista nos dias atuais, para que possa ser na prática uma ferramenta de superação do sistema capitalista. Um dos principais desafios é construir um feminismo que de fato sirva aos interesses das mulheres dos países de capitalismo dependente, países estes que foram barbaramente destruídos e explorados desde a invasão dos povos europeus. Desde então, mecanismos ideológicos foram criados e aprimorados para garantir a subordinação desses povos, sendo um dos mais bem sucedidos o apagamento da história.
Na nossa historiografia oficial, a história dos negros escravizados, dos povos originários da América como um todo, assim como a história de luta dos explorados é sistematicamente esquecida, dando lugar a uma chamada história oficial, que não dá conta dos verdadeiros acontecimentos que construíram o Brasil e a América Latina.
Um povo que não conhece sua história se subordina, é levado a acreditar que o que importa é apenas o que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, que não há valor em sua cultura, que acredita ser inferior, pois assim foi ensinado. Um povo que não conhece sua história mais dificilmente se organiza para derrubar aqueles que o exploram. Esta lógica de apagamento é altamente reproduzida no meio feminista.
Quando fala-se em feminismo, tradicionalmente são explicadas as ondas do feminismo, que se iniciam com os movimentos ligados à luta pelo voto das mulheres até a década de 1980, com uma maior reivindicação por um feminismo que tratasse das questões de raça, classe, sexualidade, identidade de gênero, etc. Esta narrativa, contudo, não diz respeito à história de todo o movimento das mulheres por sua emancipação, não apenas por desconsiderar as contribuições das socialistas que trataram da questão da mulher, como Alexandra Kollontai, Clara Zetkin, Nádia Krupskaia, etc., mas principalmente por não tratar da história das mulheres brasileiras e latino-americanas.
A história das feministas da América Latina tem diálogos com o feminismo norte-americano e europeu, somos influenciados por eles e ignorar esse fato não nos leva a caminho nenhum. Há diversas contribuições que precisam ser levadas em conta. Entretanto, nossa história não se encerra neste percurso tradicional das ondas feministas. Reconhecer isso é dar espaço a mulheres que tiveram suas histórias negadas.
A história das mulheres latino-americanas é traduzida, em primeiro lugar, através de uma luta constante contra o sistema colonial, que assassinou as mulheres indígenas, escravizou as mulheres africanas e as tratou como subumanas ao colocar o estupro como palavra de ordem da colonização. A história delas não é, apesar disso, uma história de subordinação, mas de resistência contra as barbaridades conduzidas nesse período. Até hoje, as mulheres negras e indígenas ocupam sempre o lugar de maior índice de violência doméstica, menor acesso aos serviços de saúde e condições de vida mais precárias. A pobreza é cada vez mais feminina, e sobretudo, negra e indígena.
Outro momento importante é a luta contra as ditaduras militares. Enquanto a segunda onda se desenvolvia nos países dominantes, os países da América do Sul foram acometidos por golpes militares fascistas patrocinados diretamente pelo imperialismo estadunidense. Logo, a militância das mulheres foi direcionada para derrotar estes regimes. O filme Que bom te ver viva, de 1989, conta a história de algumas mulheres que pegaram em armas no Brasil para lutar contra essas ditaduras. Trabalhos importantes para entender as relações de machismo e capitalismo como os de Heleieth Saffioti também foram desenvolvidos neste período.
Há também outros exemplos, como o fato de que há muito mais acesso a conteúdo estadunidense para falar da situação das mulheres negras do que o uso de autoras brasileiras, como Lélia Gonzales e Sueli Carneiro. A própria Angela Davis falou do tema em sua última visita ao Brasil: “Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzales do que vocês poderiam aprender comigo”.
O esforço de valorizar a trajetória das mulheres latino-americanas não significa abandonar as referências vindas da Europa e dos Estados Unidos, a teoria da reprodução social, trabalhos de Angela Davis e o próprio marxismo têm origem nestes países. Negar tais contribuições é um caminho inócuo que não precisa ser trilhado. Não se trata de ignorar um e supervalorizar o outro, mas saber utilizar das ferramentas dispostas por tais teóricos para fortalecer um feminismo latinoamericano.
É preciso notar que os processos revolucionários que obtiveram sucesso não o alcançaram através de uma transposição mecânica da teoria marxista, mas adaptando-a à sua realidade, entendendo as necessidades reais do povo. Em essência, a utilização do método dialético de compreender as características gerais e particulares da realidade. Assim sendo, um feminismo que se embasa na trajetória das mulheres latino-americanas tem mais possibilidade de sucesso que um feminismo que se espelha apenas em uma história que não é nossa.
Fazer este resgate é uma tarefa que deve caber às feministas marxistas, porque são as verdadeiras interessadas na libertação das mulheres. Não apenas como forma de reconhecimento deste legado, mas entendendo que tal reivindicação também é feita por feministas que não são ligadas a um projeto de transformação social. A luta contra o imperialismo, o racismo, o apagamento será feita pelas marxistas ou não será.