Jorge Ferreira
SÃO PAULO (SP) – Durante estágio na Defensoria Pública de São Paulo, me deparei com a história de João Pedro, preso por tentar furtar uma peça de carne no valor de R$ 62. Depois de não conseguir pagar o valor de R$ 350 de fiança para ser solto, a juíza decidiu que ele deveria ficar preso aguardando o julgamento definitivo. A juíza justificou sua decisão com o fato de ele não ter comprovado que trabalhava formalmente, e que aguardar o julgamento em liberdade poderia fazê-lo voltar a tentar furtar.
Conheci também a história de Carlos Eduardo, cidadão paraguaio e morador de rua da capital paulista. Foi preso acusado de tentar furtar um aparelho celular. Apesar de estar numa situação de extrema vulnerabilidade, foi exatamente a falta de moradia que foi utilizada como critério pela juíza para decidir mantê-lo preso antes mesmo do julgamento, afirmando que, pelo fato de ele morar na rua, não seria possível localizá-lo durante o processo. João Pedro e Carlos Eduardo se somaram aos mais de 250 mil brasileiros que estão presos provisoriamente, isso quer dizer, sem terem sido condenados.
De vez em quando, a gente vê ganhar certa repercussão o caso de alguém que foi preso por furtar comida ou alguma mercadoria de valor insignificante. Os noticiários, quando mencionam esses absurdos, tentam passar a ideia de que se trata de algo atípico. No entanto, recente pesquisa do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), denominada “Audiência de Custódia, Panorama Nacional”, escancara que a ausência de residência fixa, e ocupação formal é critério invocado para justificar a decretação de prisão provisória em mais de 60% dos casos analisados, o que por si só é motivo de espanto ao levarmos em conta a gravidade que é tirar a liberdade de alguém justamente pela falta de outros direitos constitucionais.
No entanto, o cenário causa ainda mais perplexidade quando levamos em conta que o defensor tem contato com o preso apenas poucos minutos antes da audiência de custódia, e que, portanto, dificilmente será possível juntar documentos que comprovem residência fixa e trabalho remunerado a tempo.
Audiência de custódia é o momento em que quem é preso tem o primeiro contato com um juiz. Esse tipo de audiência foi adotado no Brasil em 2015 com o objetivo de diminuir o número de presos provisórios. Afinal, a Constituição diz que, “salvo exceções, todo cidadão só poderá ser preso depois de condenado definitivamente”. No entanto, a maioria das pessoas que passam pela audiência de custódia acabam ficando presas.
A pesquisa realizada pelo IDDD demonstrou também que outro argumento utilizado em larga escala nessas audiências é a “manutenção da ordem social”. Em 76,2% das decisões nas quais é decretada a prisão provisória, os juízes mencionam a ordem social ou ordem pública como critério para manter trabalhadores presos.
A essa altura você pode estar se perguntando: “mas, e as pessoas que cometem crimes violentos?”. Sim, as prisões provisórias deveriam ser usadas justamente para esse tipo de crime. Mas os números do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que a maioria da população carcerária, entre sentenciados e provisórios, é formada por jovens negros e pobres cujos crimes, na maior parte dos casos, são patrimoniais (pequenos furtos) ou ligados ao tráfico de drogas e cometidos sem violência.
Isso quer dizer que, apesar de ser o principal argumento utilizado pelos juízes, não faz nenhum sentido justificar com “a manutenção da ordem social” a prisão de pessoas que não cometeram crimes violentos. A verdade é que esse critério está previsto na legislação brasileira e não é de hoje. Desde a ditadura fascista de Getúlio Vargas, ou mesmo na ditadura militar de 1964, a “manutenção da ordem” foi utilizada para criminalizar quem o Estado via como inimigo.
Nos resta saber quem, em pleno século 21, não tem moradia, emprego ou simplesmente é considerado perigoso para o Estado. A verdade é que milhões de trabalhadores brasileiros se encontram nessas condições, evidentemente que o processo de escravidão e a própria marginalização do negro no sistema capitalista, inclusive através do sistema criminal, resultou no fato de a maioria dos trabalhadores nessas condições serem negros. Isso quer dizer que os critérios utilizados para a decretação das prisões provisórias permitem que trabalhadores negros sejam presos sistematicamente.
Entre presos provisórios e presos que estão cumprindo sentença, o Brasil tem mais de 800 mil pessoas atrás das grades, alcançando o terceiro lugar no ranking dos países que mais prendem no mundo. Apesar de os noticiários denunciarem a “crise do sistema penitenciário”, o Estado brasileiro prende cada vez mais pessoas, e o encarceramento cresce numa velocidade assustadoramente alta. Em outras palavras, enquanto os massacres que vêm à tona nos noticiários constatam um verdadeiro necrotério de pessoas vivas, amontoadas umas nas outras em meio a celas lotadas, convivendo com ratos, baratas e todo tipo de doenças transmissíveis, a prisão segue sendo o investimento principal do Estado para a contenção daqueles que considera mão de obra descartável, indesejável e perigosa.
A verdade é que o sistema criminal é central na manutenção da ordem social do capitalismo. Uma ordem social que marginaliza e mata trabalhadores negros, exercendo uma tarefa de dominação através da força, mas também ideológica, na medida em que coloca na cabeça das pessoas que o negro, por ser a maioria dos presos, é naturalmente criminoso e, portanto, perigoso. A ordem do dia para superar o encarceramento em massa do povo negro é a destruição dessa estrutura e a construção de um sistema de justiça que sirva para garantir a vida do povo.