O fascismo foi vencido nas urnas; no entanto, ele sobrevive nas ruas, famílias, empresas, escolas, universidades, quartéis, nas cidades e no campo. É preciso enfrentá-lo em todos esses campos de batalha. Essa guerra é de muitos fronts simultâneos, pois as energias de morte e exploração do fascismo espalham-se por toda a sociedade.
Thiago Rodrigues* | Niterói (RJ)
OPNIÃO – O ataque aos Três Poderes em Brasília, realizado por uma turba de fascistas no dia 08 de janeiro, expôs a fragilidade das instituições democráticas brasileiras. As cenas chocaram a maioria dos brasileiros e rodaram o mundo. Foram, no entanto, partes de uma crônica anunciada.
Não era segredo para ninguém que a recusa dos fascistas em aceitar os resultados eleitorais de outubro vinha acompanhada de uma mensagem clara de golpismo. Essa mensagem foi diariamente exibida nos diversos acampamentos diante de quartéis e unidades de comando das Forças Armadas e em atos violentos em todo o país.
As ações em Brasília contaram com financiamento e coordenação, como têm constatado as investigações conduzidas pela Polícia Federal. No entanto, tal capacidade de organização dos grupos fascistas também era de conhecimento geral. Desde a campanha presidencial de 2018, a direita mais reacionária havia demonstrado habilidade para lidar com as mídias sociais e os aplicativos de comunicação eletrônica, produzindo um ambiente de ódio e paranoia que deu forma e direção a práticas sociais profundamente enraizadas na nossa sociedade, como o patriarcalismo, o racismo, a misoginia, a LGBTfobia e o machismo.
Se a influência do apoiadores de Trump nos EUA e de seus mentores sobre o fascismo de Bolsonaro é evidente, não se pode ignorar que ele cresceu em solo original, cultivado no escravagismo, no Integralismo – versão brasileira do fascismo europeu –, no militarismo e, mais recentemente, no neoliberalismo e no neopentecostalismo fundamentalista.
A inação das forças de segurança em Brasília tampouco foi uma surpresa. Há farta documentação de como as ideias de Bolsonaro cresceram e, até certo ponto, tem as suas bases, entre os membros armados do Estado em todos os seus níveis. Sabe-se, ainda, como Bolsonaro deu espaço para que militares e ex-militares, policiais e ex-policiais ocupassem mais de 6.000 postos na administração federal, quase todos eles de competência civil, ou seja, fora do campo de especialidade profissional de quem os assumiu.
Por isso, o temor de um golpe de Estado articulando as Forças Armadas, as polícias militares e civis, policiais federais e rodoviários federais e até bombeiros, não deve ser encarada como preocupação excessiva e o perigo não está eliminado. Se o “golpe de 08 de janeiro” não aconteceu, deve-se, como sempre, a um conjunto de fatores.
Em primeiro lugar, não há apenas o fascismo organizado atuando no Brasil. Os movimentos sociais e as forças democráticas se mobilizaram durante todo o governo Bolsonaro, indo às ruas e disputando-as com contra as ideias fascistas. Tentativas de golpe ou de tensionar ao limite a política nacional não foram adiante – como no dia 07 de setembro de 2022 – porque parte significativa da sociedade tomou o espaço público criando uma correlação de forças que freiou a marcha da ultradireita.
Em segundo lugar, existem contradições no grande capital brasileiro e entre as classes dominantes brasileiras. Parte considerável do PIB – tanto na indústria, quanto nos serviços e, mesmo em parte do agronegócio – perdeu com o isolamento internacional do Brasil, com a descontinuidade dos projetos de integração comercial regionais e com a queda brusca do poder de compra da maioria dos brasileiros e brasileiras. Entre as elites, foram acirrados os choques de interesse entre oligarquias tradicionais – controladoras históricas das instituições e do jogo político nacional – e os novos-ricos do bolsonarismo, como os donos de cadeias de restaurantes, grandes atacadistas, agroempresários e mineradores predatórios, militares de baixa patente e “intelectuais antiglobalistas”.
Por fim, o ambiente internacional não foi – até o momento – favorável aos golpistas. Para os Estados Unidos, o fascismo de Bolsonaro aqui reforça o fascismo de Trump lá e, por isso, combater o golpismo no Brasil fortalece a posição do governo Biden contra a força da ultradireita estadunidense que segue viva e ameaçadora. Em termos econômicos, a fase atual do capitalismo extrai a sua mais alta rentabilidade de um novo tipo de produtividade e consumo que não são mais os do desenvolvimentismo devastador defendido pelo bolsonarismo. A “economia verde e sustentável” dá o tom em tempos nos quais o lítio vale mais do que uma manufatura. A forma de desenvolvimento econômico encampada por Lula se alinha à tendência da vanguarda do capitalismo global, tanto nos seus valores quanto na disposição de localizar o Brasil na posição “correta” para fazer funcionar essa economia da sustentabilidade. Desse modo, os EUA de Biden e a União Europeia precisam que um país com o potencial de geração de riqueza como o Brasil esteja perfilado com os rumos e propósitos do capitalismo neoliberal global e da governança dos recursos mundiais.
Ainda no plano internacional, o reacionarismo canhestro de Bolsonaro, sua figura grotesca e os seus princípios rudes de violência e intolerância não são aceitáveis pelos valores expressos pela hegemonia ideológica da democracia liberal ocidental, aquela chamada por Bolsonaro de “globalista”. Os valores “globalistas” são, de fato, o complemento ideológico do capitalismo sustentável neoliberal mundial, dando-lhe as condições para que exista e se reproduza. Na atual fase do capitalismo, trabalhadores e consumidores – os precarizados e os em “home office” – geram riqueza e demandam serviços e estilos de vida que transformam valores em produtos.
Se as condições não foram favoráveis ao golpe nesse momento, não significa que estejam superadas. O Congresso Nacional segue controlado por partidos fisiológicos disponíveis a todo tipo de acordo para viabilizar a governabilidade do Executivo. Representantes da direita e da ultradireita, somados, ocupam a maioria dos assentos na Câmara e no Senado.
A provável desgraça de Jair Bolsonaro e do seu círculo mais imediato não implicaria, portanto, no final das forças e interesses políticos e econômicos que, nos últimos anos, modelaram-se em torno do bolsonarismo. Como muito se tem ouvido, o “bolsonarismo” pode e provavelmente sobreviverá sem Bolsonaro. O grande papel desempenhado por Bolsonaro para a ultradireita brasileira foi o de tê-la organizado, deixando-a aparente e coordenada do ponto de vista econômico, ideológico e operacional.
Resta ainda a questão das Forças Armadas e das polícias. Os militares foram os artífices da república brasileira e, ao longo da História, mantiveram-se na crença de que são os defensores da pátria, os mantenedores da “ordem” e os impulsionadores do “progresso”. A volta da democracia formal no Brasil, na segunda metade dos anos 1980, não alterou essa autopercepção. De fato, as Forças Armadas acomodaram-se bem à Nova República, conseguindo manter dispositivos intervencionistas na Constituição de 1988 e preservando grande autonomia com relação ao poder civil, além da total isenção de responsabilidade penal pelos crimes cometidos durante a ditadura. A criação do Ministério da Defesa, em 1999, não deu conta de estabelecer aqui o controle civil sobre os militares, conforme o modelo das democracias liberais avançadas.
A “questão militar” no Brasil segue, portanto, intocada. Não foi realizado o acerto de contas com a História que é fundamental para que os traumas e crimes sejam expostos e, a partir daí, mitigados. O elemento da punição dos responsáveis pelo terrorismo de Estado durante a ditadura é um tema crucial, mas não esgota o processo. Trata-se de algo maior que é o direito à memória e à reparação histórica sem a qual um povo como o brasileiro não terá condições de encontrar um caminho comum rumo a uma sociedade mais justa e solidária.
Foi Edmund Burke, um filósofo liberal – e não um socialista –, quem disse que “um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”. Sem um profundo exame de nosso passado e das estruturas desiguais e violentas que constituem a sociedade brasileira, seguiremos presos a uma roda de tortura que faz da nossa história uma repetição de breves períodos democráticos seguidos de longas noites autoritárias. E por quê?
Porque o povo brasileiro não pode esperar que as suas liberdades e a sua dignidade sejam resultantes de conjunturas alheias à sua vontade e ação. Não serão os interesses circunstanciais de suas elites e classes médias, os humores das Forças Armadas, as lucratividades do capitalismo global ou os objetivos geopolíticos e econômicos das grandes potências que garantirão a democracia no Brasil. Apenas a articulação consciente das diversas forças sociais, das minorias, das maiorias excluídas, da classe trabalhadora e da juventude pode produzir uma quantidade e qualidade de energia suficientes para barrar iniciativas golpistas e autoritárias de grupos políticos e sociais que sempre serão numericamente minoritários, ainda que detentores de muitos recursos materiais.
Um povo fragmentado, radicalizado e ignorante é refém dos mais reacionários valores, tornando-se presa fácil para quem os quiser controlar e explorar. Nesse caso – aí sim lembrando de um socialista, Karl Marx – nossa História seria a sucessão infindável de farsas reavivando a tragédia que nos originou como nação.
O fascismo foi vencido nas urnas; no entanto, ele sobrevive nas ruas, famílias, empresas, escolas, universidades, quartéis, nas cidades e no campo. É preciso, então, enfrentá-lo em todos esses campos de batalha. Essa guerra é de muitos fronts simultâneos, pois as energias de morte e exploração do fascismo espalham-se por toda a sociedade.
A palavra de ordem que surgiu após o 08 de janeiro em Brasília foi: “Sem Anistia para Bolsonaro e seus cúmplices!”. Ela resume bem o ímpeto da mobilização constante contra o fascismo porque reúne múltiplos significados. O mais óbvio é o da demanda para que os atores e financiadores do vandalismo de Brasília sejam identificados e julgados. Além disso, refere-se à urgente responsabilização por todos os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro, do genocídio durante a pandemia de COVID-19, à corrupção desenfreada e ao acobertamento de assassinatos como os de Marielle Franco, Anderson Gomes, Bruno Pereira e Dom Philips.
Há, todavia, um sentido ainda mais profundo: trata-se da “anistia” como o esquema operacional das nossas elites políticas e econômicas, ou seja, a constante não responsabilização por abusos, crimes e violências que marcam a nossa História. Trata-se do modelo da conciliação permanente: conciliação de classe e conciliação entre adversários políticos em nome da manutenção do poder. Trata-se da ideia de que para seguir adiante é preciso esquecer o passado.
Mas a quem convém esse esquecimento? Esta é a pergunta necessária. Ao fazê-la, chegaremos à constatação de que o silêncio sempre favorece o poderoso, deixando inalterada a estrutura de desigualdade e opressão que geram períodos de maior violência e repressão. O “pesadelo bolsonarista” pode passar, mas ele não será o último se essa atitude com relação à nossa História não for alterada.
Por isso, cobrar a punição para os crimes do governo Bolsonaro não é uma atitude revanchista, mas uma busca por justiça e pelo fortalecimento e soberania do povo brasileiro. Ela deve ser destinada aos fascistas e criminosos de classe que parasitam o povo trabalhador brasileiro. O nosso passado não foi de glórias, como diz a letra do Hino Nacional, tampouco será de “paz no futuro” se a conciliação silenciar, uma vez mais, o direito à memória, à justiça e à reparação.
*Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)