A luta das mulheres argentinas por seus direitos tem sido um exemplo para todas as mulheres e organizações feministas da América Latina. Para compreender mais sobre esse processo, o Jornal A Verdade conversou com María Rosario, trabalhadora, sindicalista e responsável nacional pelo trabalho de mulheres do PCR da Argentina.
Indira Xavier e Clarice Filgueiras
A Verdade – As mulheres argentinas tiveram importantes vitórias, como a legalização do aborto e a aposentadoria para trabalhadoras domésticas. Como se desenvolveram essas lutas?
María Rosario – A legalização do aborto é fruto de décadas de luta. Nos anos 1970, apenas alguns grupos feministas falavam desta questão, e alguns grupos tinham a palavra de ordem “Nenhuma morte mais por aborto ilegal”. Ao terminar a ditadura, a Multissetorial da Mulher em Buenos Aires realizou, em 1984, seu primeiro ato de 8 de março, e já havia lugares com a chamada contra a morte de mulheres por aborto clandestino.
Em 1988, é criada a primeira comissão de luta pelo direito ao aborto, com enfermeiras de hospitais públicos, políticas, feministas, etc., que se dedicaram a aprofundar o tema, realizando campanhas e confeccionando o primeiro projeto de lei. Em 1991, a Multissetorial da Mulher em Buenos Aires lança a palavra de ordem “Contraceptivos para não engravidar, aborto legal para não morrer”. Nessa época, já começam a ter grupos de trabalho sobre o aborto nos Encontros de Mulheres.
Em 2005, o grito pelo aborto adotado pelo movimento de mulheres é “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não engravidar, aborto legal para não morrer”. Nesse ano, os encontros de mulheres assumem campanhas pelo direito a decidir, formando uma onda verde por todo o país, com participação de milhares de mulheres, principalmente jovens, ocupando ruas, praças, hospitais, escolas, locais de trabalho, bairros e redes, somando vozes a favor de uma exigência histórica do movimento de mulheres: a despenalização e legalização do aborto.
Chegamos com uma unidade mais ampla à histórica sessão do Senado de 13 de agosto de 2018, onde se apresenta o texto elaborado por um amplo arco de legisladores e organizações, apoiadores do projeto apresentado pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Destacamos que foram décadas de debate e que os Encontros de Mulheres foram a usina mais importante de construção dessas ideias. Em dezembro de 2021, finalmente é sancionada a Lei de Acesso à Interrupção Voluntária da Gestação.
E como foi implementada?
Foi complicado, já que não são todos os distritos do país que chegavam à aprovação da lei nas mesmas condições. Alguns lugares tinham infraestrutura e equipes de saúde, mas outros tiveram que formar suas equipes, com resistência de alguns setores sociais. A situação é heterogênea. Há províncias que estão mais perto do cumprimento da lei que outras, e há o trabalho de organizações sociais, feministas e ONGs para facilitar o acesso e melhorar a qualidade do atendimento.
As mulheres argentinas desencadearam uma enorme mobilização contra a violência e o feminicídio com a campanha Ni Una Menos. Quais foram os principais frutos dessa luta?
Junho de 2015 é um marco em nossa história de luta. O feminicídio de Chiara Páez nos inundou de dor e nos encheu de raiva. Gritamos “NENHUMA MENOS, VIVAS NOS QUEREMOS!”. Viramos milhões, ficamos visíveis e colocamos em pauta o flagelo que sofremos. Nos fortalecemos e unimos na pauta a exigência por políticas públicas que tragam respostas integrais a um problema social com profundas raízes culturais, como é a violência contra a mulher. Enchemos o Ni Una Menos de conteúdo e impulsionamos por todo o país a campanha pela declaração de emergência para a violência contra a mulher. Na Argentina, sofremos um feminicídio a cada 18 horas.
Onde há uma mulher violentada, há um homem violento, uma família envolvida, um grupo social que expressa sua exaustão, um Estado que olha para o lado, respondendo a outros interesses. A opressão e a violência contra a mulher não são só um “problema de mulheres”, é uma questão social que envolve todas e todos. É um problema político, diz respeito a nossos direitos como povo. As mulheres deram um salto social muito importante, estão saindo dos limites do doméstico, íntimo e privado, dos problemas “específicos”. Politizamos nossa sexualidade, a maternidade, os cuidados e a criação de nossos filhos, estamos rumo a uma mudança profunda cultural que não só libera as mulheres, mas também toda a sociedade. Na Argentina, o movimento de mulheres é vanguarda nas lutas populares, sem parar de crescer e aprofundando-se com o tempo.
É o caso da luta pela aposentadoria das trabalhadoras domésticas, por exemplo. É um setor com altos números de pobreza e informalidade. Uma de cada oito mulheres se dedica a trabalhar em casas particulares. Mais de 75% das empregadas domésticas não estão registradas. Por isso, seu acesso a direitos trabalhistas e previdenciários está muito limitado.
Durante a pandemia, cerca de 400 mil mulheres perderam seu trabalho. Calculamos que haja quase um milhão de trabalhadoras em todo o país. A falta do registro representa não ter direitos, muito menos acesso à aposentadoria, mesmo trabalhado toda a vida, porque devem ter 30 anos de contribuição. Só uma em cada 100 empregadas domésticas poderia se aposentar.
“Isso que chamam amor é trabalho não pago” é o lema de organizações de mulheres há muitos anos, reconhecendo as tarefas domésticas e de cuidado que realizam as mulheres em seus lares. Reconhecer que as mulheres que não têm trabalho formal ou informal também trabalham é um passo do governo, que agora reconhece anos de contribuição por cada filho a seus cuidados.
No primeiro Encontro Nacional de Mulheres (ENM), em 1986, foram mil mulheres de diversos setores. Na última edição, foram cerca de 20 mil participantes. O que fez o evento crescer tanto?
Os encontros sempre foram a coluna vertebral do movimento de mulheres na Argentina. Após uma participação na Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU, em 1985, decidiu-se convocar um encontro para discutir as questões específicas das mulheres em nosso país. Esse foi o primeiro ENM.
Nosso partido é impulsionador dos ENM com maestria e liderança. Clelia Iscaro, como responsável pelo trabalho de mulheres do PCR argentino, integrou a primeira comissão organizadora, e foi pioneira na fundação da campanha nacional pelo aborto legal, seguro e gratuito.
Os encontros são realizados há 35 anos, interrompidos apenas pela pandemia. Entendemos que perduraram sobre a base de defender seus pilares: autoconvocados, federais, horizontais, plurais, autônomos, autogeridos e profundamente democráticos.
A cada ano, vamos a um lugar de nosso país para encontrar-nos e poder dizer, compartilhar e debater o que acontece. São semeadura de iniciativas que permitiram a organização para conquistar nossos direitos em diferentes âmbitos, como o divórcio, a guarda compartilhada, programas de educação sexual, lei de violência contra as mulheres, casamento igualitário, lei de cotas trabalhistas trans e, mais recentemente, a lei do aborto. Esses encontros, e os grupos de trabalho neles formados, são o que fizeram o movimento de mulheres na Argentina ser o que é e o que representa.
Em 2022, pela primeira vez, houve uma divisão do encontro. Em San Luis, ocorreram dois eventos. Apesar dos nossos esforços e de outras forças políticas, a divisão aconteceu. Fomos parte dos dois ENM, em datas diferentes, com a premissa de garantir o caráter e os pilares desse espaço, e buscando unir o que foi rompido. Chegaremos ao 36º ENM juntas novamente, entre 14 e 16 de outubro deste ano, com muita alegria, porque diante do avanço da direita, pudemos unir novamente o que não deveria ter se dividido.
Em julho acontece o 3º Encontro de Mulheres da América Latina e do Caribe. Como o movimento de mulheres na Argentina se prepara? Quais são as expectativas?
Estamos nos preparando com muito entusiasmo para poder participar. Para nós, é fundamental manter esses espaços de construção coletiva, em que podemos escutar outras experiências, aprender e também ser escutadas. Esperamos fortalecer a unidade latino-americana, porque temos realidades muito parecidas e porque queremos revolucioná-las. Unir ações e iniciativas em uma agenda em que sejam protagonistas as mulheres, os movimentos sociais e feministas. Sabemos da difícil conjuntura econômica que atravessamos, mas entendemos que é de vital importância o encontro.