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quinta-feira, 10 de outubro de 2024

“A questão Palestina não acaba somente com o fim desse conflito”

Em entrevista ao jornal A Verdade, Ana Maria Pimenta e Muhammad Tawfik, que se conheceram enquanto estudavam na antiga União Soviética, discutem a relação entre Palestina e Brasil e denunciam o genocídio na Faixa de Gaza.

Clóvis Maia | Redação PE e JC Moretti | Redação PB


O jornal A Verdade entrevistou Ana Maria Pimenta, brasileira, e seu esposo, Muhammad Tawfik, palestino, que se conheceram quando estudavam na antiga União Soviética (URSS). Na entrevista, falam sobre a relação Palestina/Brasil e sobre o genocídio que ocorre na Faixa de Gaza.

A Verdade – Falem um pouco de vocês e de como se conheceram.

Ana Maria Pimenta: Eu sou de Natal, Rio Grande do Norte. Estudei na Antiga União Soviética e lá conheci meu esposo, que é palestino. Nossa filha mais velha nasceu lá em Moscou. De lá, quando terminamos os estudos, fomos para a Palestina. Ficamos mais quatro anos lá, onde nasceu o meu filho mais novo. E depois viemos para o Brasil, morar em Natal. Estamos já há uns 25 anos morando lá. Só que a família da gente toda continua na Palestina. Muhammad, meu esposo, é o único filho que saiu da Palestina.

Muhammad: Eu nasci em 1965, na cidade de Nazaré, que naquela época já estava sob domínio de Israel. Meus pais nasceram na Palestina. Porque nasceram antes de 1948, quando era só Palestina. Então, eu sou palestino-israelense, filho de palestinos. Esta cidadania israelense não foi nossa escolha, foi imposta. E naquela época, 1948, ficaram na Palestina, em Israel, somente 150 mil palestinos. Hoje tem um milhão e meio.

Como foi crescer na Palestina com toda essa pressão colonial do sionismo?

Muhammad: Eu cresci como qualquer adolescente palestino. Sob o domínio sionista. Tortura psicológica. Quando você ia trabalhar numa cidade judaica, porque infelizmente só tinha emprego nessas cidades, pois nas cidades palestinas não há nada para trabalhar. Não por incapacidade. Mas pela política de Israel, de não deixar indústrias nas cidades palestinas. Por quê? Para deixar os palestinos dependentes de Israel em qualquer coisa. Então, na adolescência, quando ia trabalhar nessas cidades judias, durante as férias escolares, era humilhação enorme nos centros, nos parques, nas rodoviárias. Você chegava, descia na rodoviária e todos sabem pela sua fisionomia que você é árabe. Então, começa: “O que você está fazendo aqui nessa cidade?” “Para que você chegou?” “Mostre sua identidade”, “abra sua bolsa” … Humilhação na frente de todo mundo. Aquela humilhação psicológica para intimidar e, infelizmente, conseguiam em grande parte. Agora, adultos, já sabemos que era só uma tortura.

Quando se fala em Palestina, no povo Palestino, a questão da resistência é algo que logo vem à mente. A questão do enfrentamento ao sionismo e da ocupação de Israel é algo quase inevitável. Fale um pouco sobre o tema da resistência Palestina.

Muhammad: Não havia outra saída. Por isso, nós nos organizamos naquela época em partidos da esquerda. Partidos comunistas, Frente Popular, Frente Democrática. Até as Irmandades Muçulmanas, que existiam na nossa cidade. Todos com ideias diferentes, mas juntos, trabalharam para combater o sionismo. Como não temos armas, pois se tiver é preso, organizamos manifestações, cobranças. E por isso, nós conseguimos muita coisa, não tudo o que a gente queria, mas muita coisa. Conseguimos via pressão, manifestação e cobrança nas ruas. Como palestinos.

Nessa nova etapa do genocídio promovido pelo sionismo, surge infelizmente até na esquerda quem acuse a União Soviética de ter apoiado o sionismo. Qual a opinião de vocês sobre o papel da URSS nesse processo? O que a experiência de vocês diz sobre isso?

Ana: Não dá pra negar que a União Soviética prestou um grande favor para o chamado Terceiro Mundo. E para a população carente. Porque eles deram muitos, milhares, talvez milhões de diplomas para o Terceiro Mundo. Pouca gente conseguiu estudar, porque custa muito dinheiro em Israel. Então, prestamos uma espécie de Enem pelo Partido Comunista e tinham bolsas de estudo no mundo socialista. Então conseguimos estudar. Na nossa época lá ainda era socialismo. Então, todos os países da Europa Oriental (Alemanha, Tchecoslováquia, Bulgária, Hungria), tinham acesso a bolsas de estudos para estudar na URSS. E uma boa formação, tá?

Muhammad: Aqui no Brasil, nas Universidades Federais, se estuda de graça. Lá em Israel é difícil para se estudar, pois é tudo pago e caro. Além de uma espécie de Enem que você presta para entrar na universidade, tem o formulário para você preencher: “Você serviu no Exército?” “Você mora em que cidade?” E manda cópia da sua identidade, que em Israel está escrito se você é árabe ou judeu. Imagine em que lugar no mundo se discrimina seu cidadão. Lá está escrito na identidade se você é árabe, muçulmano, cristão, judeu…

Fale um pouco mais como eram essas bolsas de estudos para estudar lá na URSS.

Ana: Eram bolsas gratuitas, ofertadas para os jovens, sem discriminação de cor, crença, país… Eu por exemplo fui pelo Centro da Mulher Brasileira. Ele foi pelo Partido Comunista. Quando eu fui, existiam bolsas para o Partido Comunista e outras instituições. Estudei como se fosse na Federal da URSS. E ele foi de lá também com bolsa. Não pagávamos nada. Tínhamos estadia, alimentação, livros. O básico para tudo. Se você quisesse uma condição melhor, tinha que se virar. Era suficiente: moradia com bolsa em dinheiro para todos. E não era só para os estrangeiros. Os estudantes soviéticos também tinham esses mesmos direitos. Eles tinham moradia também. Moradia de estudantes como a gente. Morávamos juntos com eles, inclusive.

E como se deu a vinda de vocês para o Brasil, já como uma família?

Muhammad: Terminamos os estudos em 1993. Voltamos para a Palestina ocupada e começamos a trabalhar. Ficamos três anos e meio, quatro anos. Depois viemos visitar a família dela no Brasil, acabamos gostando e ficando. Pelo menos aqui não tem aquela discriminação por ser palestino, árabe. Porque a discriminação é tão grande que, mesmo eu tendo cidadania e passaporte israelense, sou discriminado por ser árabe. Aqui você não tem discriminação contra outro povo. Aliás, não tinha, agora tem. Contra povos indígenas, imigrantes refugiados, mas na minha época, quando eu cheguei em 1996, não tinha, não.

Nós acabamos de sair de um governo fascista no Brasil. Vocês sentem que essa guinada xenofóbica se deu agora, depois dessa nova campanha da mídia hegemônica burguesa contra o povo Palestino ou com a ascensão de Bolsonaro ao governo isso já se mostrava abertamente?

Ana: É um negócio que não tinha antes. Você vinha de fora, não recebia nenhum tipo de olhar estranho ou de reprovação. Hoje em dia tem essa… Bolsonaro nunca escondeu quem era. Tem até um vídeo aqui na Paraíba, ele defendendo que aqui era um estado judaico-cristão. Que os outros não tinham lugar aqui. Ou seja, ele ressuscitou fascistas que estavam mortos ou escondidos. Tirou todos do armário. Ele mostrou o seu racismo, discriminação contra as minorias. Por causa disso, no Rio Grande do Norte, nós formamos um fórum inter-religioso. Porque as matrizes africanas também são ‘minorias’ e também estão sendo atacadas. E até hoje estamos sofrendo. O governo agora mudou, mas estamos sofrendo ainda.

Na reunião entre comitês Pró-palestina vocês falaram sobre ‘trazer novas pessoas para essa causa’. Como vocês enxergam essas manifestações hoje no Brasil, e a criação desses comitês?

Muhammad: Somos gratos por essas ações e iniciativas. Somos sempre de esquerda, fazemos manifestações, participamos de atos e articulações. Mas sempre falamos que nas manifestações pró-Palestina não devemos levar nossas bandeiras partidárias. Levar a bandeira da Palestina, o cartaz da Palestina, a camisa da Palestina. Disso que precisamos. Enquanto continuarmos nas nossas manifestações apenas com bandeiras partidárias um número maior de pessoas deixa de participar, pois fica parecendo coisa apenas de partidos. Mas quando as pessoas passam na frente do ato e vê nas nossas manifestações as nossas bandeiras, mas vê também um cartaz falando do sofrimento dos palestinos, a situação das crianças morrendo, das mães e mulheres sendo assassinadas, isso sim toca de fato as pessoas. Devemos ser inteligentes como eles têm sido. Precisamos encontrar uma maneira de sair disso, pois estamos empacados, entendeu? não vai para frente nem para trás. Caímos na armadilha deles. Essa pauta é muito importante, e não vai acabar mesmo com o fim do atual conflito. É preciso deixar de lado as nossas diferenças e partir para uma unidade verdadeira. Só assim a gente consegue crescer e ficar mais forte. Essa é a nossa preocupação e nosso objetivo.

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