Leia entrevista exclusiva do jornal A Verdade com Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe-Palestina do Brasil (Fepal), sobre os recentes desdobramentos do cessar-fogo e os próximos passos da luta do povo palestino
Rafael Freire | Redação
A Verdade entrevistou, com exclusividade, o advogado Ualid Rabah (58 anos), presidente da Federação Árabe Palestina no Brasil (Fepal), no dia 02 de fevereiro, durante a Bienal da UNE, em Recife (PE). Ele fez questão, inclusive, de ressaltar “a importância dos meios de comunicação não-hegemônicos para denunciar os crimes de Israel e caracterizá-los como genocídio e propaganda de guerra. Hoje, 70% da população brasileira rejeita o genocídio por isso”.
“Desde outubro de 2023, eu já visitei presencialmente mais de 200 locais no país inteiro para denunciar a perseguição histórica ao povopalestino. De maneira online, já perdi as contas. Conseguimos romper com a lógica de que para debater a questão palestina é necessário chamar um sionista, o suposto ‘ouvir os dois lados’“, relata.
Rabah e seus irmãos nasceram no Brasil, filhos de pai e mãe palestinos da Cisjordânia, que sempre mantiveram laços com sua terra natal (incluindo o uso da língua árabe), mesmo sem retornar a ela por quase 40 anos.
A Verdade – Cessar-fogo em Gaza, mas, ao mesmo tempo, seguem os assassinatos e as prisões na Cisjordânia. Já são mais de 100 mortos nas últimas semanas. Como explicar essa contradição?
Ualid Rabah – É porque, de fato, nós estamos discutindo uma realidade na Palestina que já tem vários cessar-fogo desde, pelo menos, de 2009 para frente. Então é o seguinte: a ocupação de Gaza é uma ocupação à distância por bloqueio. O que é uma ocupação? É o controle dos seus movimentos, o impedimento de você utilizar o seu espaço aéreo, o seu espaço marítimo, você não ter controle nas fronteiras, e você ser atacado. É haver controle do ingresso de comida, de medicamentos, material de construção, a totalidade daquilo que significa tornar habitável um território.
A Cisjordânia não aparenta isso, mas ela também está sob esse domínio. Ou seja, os palestinos têm uma governança na Cisjordânia em algumas partes de concentração urbana, e o restante, as estradas, os postos de controle militar estão ali dentro. Os colonos estão se tornando cada vez mais uma milícia que promove pogroms [ações de limpeza étnica], já são mais de 700 mil.
O controle das fronteiras terrestres é de Israel, o controle do espaço aéreo é de Israel. Os palestinos não têm acesso marítimo, portanto, ele é negado aos palestinos, e devem, em consonância com Israel, por exemplo, exportar pelos portos outrora palestinos que foram israelizados, Haifa, por exemplo, que fica no Mediterrâneo, na Galileia.
A distinção é que, neste momento, Gaza passa por um grande extermínio para deslocar essa população. Se você for pegar como aconteceu entre 1947 e 1951, quando Israel se faz pela força na Palestina, tomando 78% do território, desta porção tomada foram eliminados 88% da população. Esta limpeza étnica não foi promovida em Gaza, mas sim no restante da Palestina. Israel é um projeto colonial.
Eles já estão repetindo agora em Gaza. A diferença é que Gaza hoje vive um genocídio a céu aberto, televisionado. Hoje, essa limpeza étnica do século passado é superada pelos 91% de deslocados em Gaza. Naquele momento, foram 15 mil mortos. Agora, estamos falando de 60 mil mortos.
Naquele momento, houve 774 localidades palestinas invadidas, com 531 destruídas (70% de destruição). Agora, estamos falando em até 92% de residências destruídas em Gaza, num território muito pequeno, pouco maior que o Recife, por exemplo.
Segundo, a matança em escala industrial de mulheres e crianças. Isso, sim, é diferencial. A matança de mulheres (as mulheres grávidas podem ser 10% das que foram exterminadas), o aumento de 300% do aborto involuntário, perto de 60 mil mulheres palestinas que darão à luz nos próximos nove meses, sem considerar as que deram à luz neste período todo, que nós não sabemos ainda quais são as consequências da guerra, da toxicidade desse território, e a eliminação de quantidades industriais de crianças, a maior da história. Quase 10 mil por milhão de habitantes, contra 2.813 na Segunda Guerra Mundial, em seis anos, por milhão de habitantes naquele momento. Isso significa a tentativa de esterilização da sociedade palestina.
Quando você elimina ventres e elimina o que saiu anteontem dos ventres, você está tentando colapsar a capacidade reprodutiva de uma sociedade inteira. Este é um grande diferencial. Todo o resto diz respeito à ocupação e ao projeto sionista desde o século 19, até o final dele, que é tornar a Palestina sem palestinos.
Portanto, os métodos podem ser diferentes de tempos em tempos. Para o restante da Palestina, foi um extermínio na mesma escala que acontece praticamente hoje em Gaza. Agora, está acontecendo o que aconteceu antes, porque há uma tentativa de continuar o processo de limpeza étnica.
Trump tem defendido abertamente tomar Gaza e expulsar os palestinos para outros países árabes. Quais os planos do imperialismo para o Oriente Médio? Quais os interesses econômicos?
A ideia de Trump é eliminar um milhão e meio de palestinos de Gaza para irem para outros lugares, uma limpeza étnica que pode superar 2 milhões de palestinos. Isso é para, novamente, reequilibrar, na mentalidade insana dos sionistas, a demografia em favor dos judeus, para haver maioria judaica, e, sob esse pretexto, continuar reclamando o direito à autodeterminação dos judeus em toda a Palestina.
Esses são os contornos, e o processo de limpeza étnica é para todo o território. Por fim, há uma tentativa (e Trump já tinha anunciado isso no seu primeiro mandato e vai continuar agora) de que os palestinos refugiados (73% da população de Gaza é refugiada de 1947 a 1951, com seus descendentes, claro) não tenham direito de retorno, seja anulada, revogada, a Resolução 194 da ONU, de 11 de dezembro de 1948, de retorno dos refugiados. Por isso, o ataque à UNRWA, agência especial das Nações Unidas para os refugiados palestinos, para que ela deixe de prestar assistência, para que os palestinos deixem de ter escola, enfim, uma vida normal.
Por isso, o ataque privilegiado aos refugiados em Jenin, em Tulkarem, em Hebron, sair de Jerusalém, onde há até 100 mil palestinos refugiados, tudo isso é um processo de limpeza étnica. Por isso, o ataque aos campos de refugiados palestinos fora da Palestina, como foi no Líbano, nos anos 1970 e em 1982; como foi no campo do Yarmouk, com os aliados de Israel, com os degoladores que urravam enquanto degolavam pessoas, tudo isso é um plano de extermínio dos palestinos.
Sobre o aspecto econômico, não é apenas a maior reserva de gás e petróleo do mundo em toda a região, mas é também a mais importante conexão geográfica e marítima do mundo em todos os tempos, até os dias de hoje. Só para nós termos uma ideia, Gaza tem, na sua costa mediterrânea, a norte da Faixa de Gaza, uma reserva gasífera de 600 bilhões de dólares.
Estamos falando do controle do Mar Vermelho, do Chifre da África e de Bab-el-Mandab, que sai para o Mar Índico, sai para o Mar Arábico, vai para o Pacífico, vai por Ormuz, entra no Golfo Pérsico. Nós estamos falando do controle da saída do Mar Negro para o Mediterrâneo, que é da Turquia, e o controle do Mar Negro é, em grande medida, dos russos.
Nós estamos falando do projeto que é um canal ligando o Golfo Pérsico ao Mar Cáspio, um canal que vai passar por território iraniano, e um outro canal, no Mar Cáspio, unindo o Mar Negro. Esta conectividade deixa de ser ocidental, por isso que estão intimamente conectadas as ações da Otan e dos Estados Unidos, notadamente, na Ucrânia, do extermínio dos palestinos. Isso está em jogo, é uma guerra contra um mundo multilateral que insiste em tentar existir, não sem contradições, evidentemente, não há que se infantilizar nada disso, e isso é uma parte dessa leitura necessária.
Com o cessar-fogo, veio a libertação de milhares de presos palestinos das masmorras de Israel. Alguns beirando 40 anos de prisão, outros crianças praticamente, adolescentes. Que tipo de tratamento receberam e como as organizações palestinas pretendem agora cobrar justiça perante os tribunais?
Primeiro que o cessar-fogo não muda a informação e a investigação do crime de genocídio. O cessar-fogo não anula as investigações do Tribunal Penal Internacional, que, aliás, vêm desde 2021, quando a primeira petição da OLP [Organização para a Libertação da Palestina] e da Autoridade Palestina são admitidas por estarem legitimados para tanto. E finalmente o mandado de prisão não apenas para o Netanyahu.
Segundo, nós estamos falando da troca de sequestrados palestinos por apreendidos israelenses. E o cessar-fogo está sendo traduzido pela mídia hegemônica ocidental como se o objetivo fosse o próprio cessar-fogo. Na verdade, não é isso. Estamos falando também que Israel sequestrou, nessa fase do genocídio, 18.700 palestinos. Já havia 6 mil antes.
Quer dizer, que troca de prisioneiros é essa em que o ocupante produz um estoque no seu almoxarifado de presos e depois troca um tanto libertando alguns que estão sendo libertados depois de 40 anos, 50 anos, alguns deles inválidos ou libertados para morrerem apenas?! Nós precisamos que isso seja alterado. Precisamos que haja a libertação de todos os palestinos incondicionalmente, especialmente do “Mandela Palestino”, Marwan al-Barghouti, que é o único que tem unanimidade para um governo futuro de unidade nacional.
Vejam a qualidade dos que estão sendo libertados na posição de apreendidos e que ficaram esse tempo todo em Gaza, mesmo sob ataque. A qualidade com que eles saem absolutamente inalterados desde o dia em que são apreendidos e veja como saem os sequestrados palestinos das masmorras israelenses. Saem como semivivos. Então essa é a distinção, isso também é um parâmetro de definir o que é civilizatório e o que é barbarizante.
Como foi possível resistir e sobreviver por 15 meses em Gaza bombardeada, sem infraestrutura, sem hospitais, sem residências? Como as pessoas se alimentavam? Como elas dormiam? O lixo que era produzido, esgotos, resíduos… Como que foi possível sobreviver em condições tão duras, diante de cadáveres, diante do luto das famílias?
As pessoas sobreviveram com 10% a 20% do que consumiam. Antes de Israel iniciar essa fase morticida, entravam até 600 caminhões por dia em Gaza, não apenas com a chamada ajuda humanitária, com o fluxo normal de comércio pelas alfândegas, etc. Isso poderia ser mais porque Israel limita a entrada daquilo que eles acham que é certo, veja só a ousadia de Israel e a sua degeneração: a entrada de alimentos em Gaza estava restrita à quantidade mínima de calorias necessárias para um ser humano. E passou a entrar, em alguns momentos, apenas 60 caminhões, ou seja, 10%.
As pessoas consumiram seus estoques, as pessoas consumiram grama, as pessoas consumiram o que tinham plantado para vender, ou seja, não sobrou mais plantações em Gaza, não sobrou mais absolutamente nada, e as pessoas estão raquíticas e doentes.
Isso é absolutamente desumano. E nós também não podemos negligenciar uma coisa muito importante: qual que era o objetivo de Israel e dos Estados Unidos? Era que o Egito abrisse as fronteiras para tirar de Gaza toda a população e, assim, tomar o território.
Entre 1948 e 1949, houve uma tentativa de obrigar o Egito a abrir as suas fronteiras para receber o máximo de refugiados, que ainda hoje estão em Gaza. Portanto, se fossem para o Egito, não voltariam mais. Então, houve uma pressão muito grande no começo desse extermínio para que o Egito abrisse suas fronteiras, e o Egito resistiu.
Na grande limpeza étnica de 1947 a 1951, a Nakba, houve um momento em que se pressionou o Egito e, mesmo sob o Rei Farouk, naquele momento (não era ainda o presidente Gamal Nasser), o Egito resistiu e não aceitou, mesmo sob forte pressão britânica.
Assim como aconteceu com aqueles que foram para a Síria, para a Jordânia e para o Líbano, não puderam voltar até hoje, por isso, 4,2 milhões de palestinos, refugiados e seus descendentes, estão fora das fronteiras da Palestina histórica. 72% da população de Gaza é a refugiada de 1948 e outro tanto equivalente a 25% está como refugiado na Cisjordânia, em vários acampamentos de refugiados, alguns, inclusive, em Jerusalém Oriental.
Então, ao impor esse grau de matança, destruição, fome, sede e os feridos em quantidades industriais, quase 5,5% da população de Gaza, perto de 120 mil feridos, quase toda ela mutilada ou ferida gravemente, era para provocar um grande êxodo. Esse era o propósito. O êxodo, ao não acontecer, malgrado essas condições todas, é que permite agora essa grande marcha de retorno dos palestinos. Uma parte do insucesso de Israel está nesse objetivo de limpar etnicamente que não foi alcançado.
Claro que a política geral de Israel é aquela política que eles chamam, de tempos em tempos, de “aparar a grama”. Quer dizer, de tempos em tempos, destruir e impedir as condições normais de habitabilidade de Gaza e exterminar uma parte da sua população. Se nós considerarmos os que já morreram, os que morreram direta ou indiretamente, neste tempo todo, os que fugiram de Gaza por não poderem ficar ali desde 2008, 2009, nós podemos estar falando de até 600 mil palestinos que morreram direta ou indiretamente, ou saíram para não voltar.
Quais os próximos passos da luta palestina, tanto no território, a partir de suas organizações, quanto desse trabalho que a Fepal e outras organizações têm feito? Qual o papel da solidariedade internacional?
Bom, primeiro de tudo, os palestinos foram capazes de mostrar para o mundo, mesmo sob extermínio, o que é Israel. Isso não é pouca coisa.
Então, esse é um dado fundamental, é importante. Como é que o povo palestino resiste? Primeiro, ficando lá, construindo estruturas, construindo negócios, construindo casas, mantendo sua presença, mesmo sob ocupação, como entidade política, a OLP e a Autoridade Palestina, mantendo suas presenças na ONU, nas organizações internacionais, porque a resistência é um conjunto de elementos. Quando se considera a Palestina um país apto a estar no Tribunal Penal Internacional e, graças a isso, a Palestina pode peticionar no TPI e, com isso, obter um mandado de prisão contra os sionistas, isso é um ganho.
Quando você tem embaixadas no mundo todo, quando você tem 151 países que te reconhecem, ou seja, política, diplomacia, resistência armada, manutenção da vida no terreno, tudo isso é resistência. Mas, se nós chegarmos ao fim disso, sem alcançar aquilo que conquistamos em Pequim, sob mediação chinesa, a reconciliação palestina de todas as forças e a construção de um governo de unidade, inclusive neste momento emergencial, que some o Fatah e o Hamas, todas as demais forças da Palestina, historicamente falando da OLP, todos eles estarem na OLP, chamando eleições em todos os níveis, porque nós não temos eleições para presidente na Palestina desde 2005, desde a morte de Arafat, e não temos em Gaza desde 2006.
Nós não teremos uma vida normal sem isso. Então, se nós não chegarmos ao final deste processo com um governo de unidade nacional e reconciliação, Israel terá vencido. Se nós tivermos, por outro lado, alcançado isso, Israel terá sofrido uma derrota estratégica.
Este é o papel do povo palestino lá. O papel da diáspora fora da Palestina. Nosso papel aqui, pela Fepal, por exemplo, é construir informação fidedigna em tempo real, não apenas informar, mas formar, qualificar o discurso, buscar aliados, aliados em todos os campos, não apenas em um campo restrito, porque contra o genocídio, contra o extermínio, todo ser humano, seja ele de que vertente política for, tem o direito de ser informado e conquistado para isso. E ele tem o direito de aderir à repulsa ao genocídio. E tem o papel da solidariedade.
A solidariedade, evidentemente, não substitui a vontade palestina. Mas a solidariedade é importantíssima, porque ela é que soma aquela parcela de multidões do mundo que derrotaram, por exemplo, o nazismo. Porque o nazismo não foi derrotado apenas belicamente.
É claro que os Estados Unidos têm impedido que isso aconteça pressionando seus aliados. Hoje, por exemplo, a esmagadora maioria dos países europeus se abstém do reconhecimento do Estado palestino. Há um veto que impede isso.
Se não tivesse o veto dos Estados Unidos, a Palestina seria reconhecida integralmente. Então, nós pedimos que o povo palestino mantenha sua resistência.
Nós cumprimos o nosso papel como entidade geral, representando a comunidade palestina, que no Brasil deve ter aproximadamente 200 mil membros com seus descendentes.
E que a solidariedade cumpra esse papel fabuloso. É isso que a gente espera. Tenho confiança na vitória.