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sexta-feira, 21 de março de 2025

Privatização da Compesa: uma ameaça aos trabalhadores de Pernambuco

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A Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) está em processo de privatização, algo que ameaça diretamente a vida da classe trabalhadora no estado, mas a luta por um saneamento básico e garantia de água na torneira não é de hoje e sempre enfrentou a vontade das elites em deixar os mais pobres sem acesso a esse bem universal e necessário.

Daniel de Albuquerque* | Recife – PE


BRASIL – O saneamento básico tem sido tema de operações extremamente relevantes no Brasil nos últimos anos. Embora, a priori, as políticas de saneamento básico tenham sido pensadas com a finalidade de contribuir para a melhoria da saúde pública e da qualidade de vida da população brasileira, atualmente o debate principal das decisões que envolvem este serviço público é de cunho econômico-financeiro.

Como a maior parte da população não dispõe das ferramentas necessárias ao entendimento do debate, muito embora a constituição cidadã de 1988 tenha exigido do poder público a realização de audiências públicas para dialogar com a sociedade civil, todo tema de relevância e impacto sobre o orçamento público, decisões que impactam centenas de milhares de pessoas ainda são tomadas por uma elite tecnocrata que faz pouca questão de aprofundar o debate público.

Com um histórico de pouco investimento e contratação de soluções estrangeiras todas fracassadas o saneamento básico em Pernambuco tem um histórico longo e marcado por uma disputa de território e mais recentemente de mercados.

Lembremos que a formação urbanística do Recife teve seu embrião na primeira metade do século XIX e está intimamente relacionada com a evolução das políticas sanitárias e de saúde pública. Inicialmente com a gestão de Francisco Rego Barros (1837-1840) que lançou propostas de melhoramentos nos serviços públicos e infraestrutura da cidade, contratando em 1839 uma equipe de operários e técnicos alemães que iriam compor a “Copanhia dos Operários” liderada pelo engenheiro Augusto Kersting, contratando também o engenheiro francês Louis Legér Vauthier para liderar a Repartição de Obras Públicas que havia sido criada em 1835. Embora estes esforços não tenham obtido sucesso, após o governo de Rego Barros, em 1845, foi criado pela Assembleia Provincial, o Conselho de Salubridade Pública, pela Lei n° 43, de 15 de maio de 1845, a partir do qual foram lançadas propostas para melhorar as condições sanitárias e combater os focos de epidemias.

Este grupo ficou conhecido como “higienistas” e desejavam, entre outras coisas, remover as populações pobres do centro do Recife, também sem sucesso, uma vez que a gestão pública alegava ausência de recursos para realizar as obras. Já em 1853 foi a Comissão de Higiene Pública, sob a presidência do médico Aquino Fonseca, que forneceu dois anos mais tarde um importante documento intitulado “Bases para um plano de edificações da cidade”, sendo um marco no higienismo e que mais a frente resultaria em fortes críticas às alcovas, aos cortiços e aos mocambos. (Miranda, 2012, p.146-160)

Neste mesmo período foram realizados esforços no sentido de implantar um sistema de abastecimento de água e um sistema de coleta de esgoto. Em 1869 foi criada a Recife Drainage Company Limited com o objetivo de ceder a empresários britânicos o direito de explorar os serviços de esgotamento sanitário do Recife, o que consistia na ligação de latrinas domiciliares a estações depuradoras através de tubulações e estações elevatórias, para que o efluente fosse tratado e posteriormente lançado no Rio Beberibe. Ainda assim, o Recife do final do século XIX foi marcado por diversas epidemias (Miranda, 2012, p. 160-168).

Desse modo, o início do século XX no Recife é marcado pelo aprofundamento das causas higienistas e da criminalização da casa operária (dos trabalhadores).

Segundo (Moreira, 2011) “O cortiço, o mocambo, ou mesmo a casa operária passaram a ser objeto de controle, a sofrer regulações, perseguições, notificações e de campanhas de imprensa.”

Foi apenas entre 1910 e 1917 que o Recife passou por obras mais expressivas que levaram as populações mais pobres para as periferias, dando origem às ocupações nos morros e em regiões periféricas. As mudanças na paisagem da cidade é descrita por Neves (2018) quando diz que “Recife enfrentou no início do século XX, diversas mudanças de casarões antigos e remoção de populações carentes de áreas habitadas há vários anos para dar lugar a empreendimentos imobiliários com a proposta de modernização e embelezamento da cidade.” Aqui já é possível perceber como a política higienista gerou uma grande valorização do centro da cidade, agora equipado com “abastecimento de água, saneamento, praças e infraestrutura”.

Os investimentos em saneamento só passam a ter uma maior eficácia a partir da criação do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), financiado com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) através do Banco Nacional de Habitação (BNH) e estadualização dos serviços de Saneamento, quando surge nossa  Companhia Pernambucana de Saneamento (COMPESA).

É verdade que o PLANASA só obteve êxito em algumas capitais, entretanto, foi esse aprendizado que nos permitiu construir empresas fortes, apesar das pressões internacionais. Cíntia Maria Ribeiro Vilarinho e Eduardo de Aguiar do Couto trazem no artigo “Saneamento básico e regulação no Brasil: desvendando o passado para moldar o futuro”, publicado no portal de revistas da USP duas análises que serão transcritas a seguir:

“A avaliação da contribuição do PLANASA para o desenvolvimento do saneamento não foi unânime.  Para Santos, Kuwajima e Santana (2020, p. 13), ele foi a política pública mais bem-sucedida do saneamento até o momento, já que permitiu um crescimento rápido e significativo dos índices de abastecimento urbano de água. Cançado e Costa (2002, p. 6) apontaram uma grande evolução na oferta dos serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto sanitário, porém destacaram que o PLANASA não abordou o tratamento dos efluentes.

Evoluçao dos índices de cobertura de água e coleta de esgoto com o PLANASA.

Alguns pesquisadores argumentaram que o PLANASA falhou em   responder adequadamente aos desafios e diretrizes estabelecidos. De acordo com Santos et al. (2018, p. 243), as metas de atendimento à população – que visavam prover 90% da população com serviços de abastecimento de água e 65% com esgotamento sanitário até 1981 – não foram alcançadas. Sousa e Santana (2016, p. 167) apontam que a centralização estadual do saneamento resultou em baixa eficiência e elevadas perdas nos sistemas de abastecimento de água.”

Segundo análise publicada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), “Apesar de não ter universalizado os serviços de saneamento no Brasil, o PLANASA pode ser considerado a política mais bem-sucedida no setor, pois avançou rápida e significativamente nos índices de abastecimento urbano de água.” Ainda assim, o PLANASA concentrou seus recursos nos municípios com maior capacidade de endividamento, canalizando os recursos em sua maior parte para o sudeste.

Quando houve o fim do BNH em 1986 e o repasse do FGTS para a Caixa Econômica Federal, a ausência de regulamentação, hierarquia e articulação institucional levaram o saneamento básico para fora da agenda governamental.

A década de 90 foi marcada ainda por grande influência do Fundo Monetário Internacional (FMI) nas políticas de saneamento do Brasil, chegando a exigir a privatização das operações para que o país pudesse ter acesso a linhas de crédito internacional.

O gráfico abaixo, retirado do texto do IPEA (2020), mostra a evolução dos investimentos em água e esgoto de 1971-2015. É importante observar neste gráfico que nem mesmo os recursos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) foram tão vultosos quanto os do PLANASA, o que demonstra a necessidade de investimentos cada vez maiores no setor.

Em resumo, a análise do IPEA apresenta as principais fontes de recursos pra o setor do saneamento básico do Brasil, que são basicamente:

  • Recursos extraorçamentários ou onerosos: a) fundos financiadores, com destaque para o FGTS e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); b) recursos próprios de instituições financeiras, em especial do BNDES; e c) recursos do mercado, que, no caso do saneamento, são captados por meio de emissão de debêntures pelos titulares dos projetos (fonte mais recente).
  • Recursos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União – OGU, consignados na Lei Orçamentária Anual (LOA), também denominados recursos não onerosos.
  • Recursos provenientes de orçamentos próprios dos estados e dos municípios.
  • Recursos provenientes de empréstimos internacionais, contraídos junto às agências multilaterais de crédito, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD).
  • Recursos próprios dos prestadores de serviços, resultantes de superavit.

Esses recursos guardam relação com o monopólio e com a economia de escala inerente ao setor, sendo verticalmente integrado, tendo em vista os estágios da produção e a estrutura de tarifas.

Por outro lado, o Projeto de Lei (PL) aprovado em 2019, que aprofunda o processo de privatização altera as concepções de governança, não trouxe, entretanto, qualquer novidade em aportes de investimentos que façam jus a entrega da estrutura construída com o dinheiro público para o setor privado.

Outra questão é que se coloca a justificativa de que o setor privado seria mais eficiente que o público, sem levar em consideração que a maior parte dos serviços desenvolvidos como obras, manutenção, cobrança e implantações novas já são realizadas por empresas terceirizadas – o que é de grande reclamação por parte dos usuários.

Um ponto fundamental do sucesso do que se propõe é que venha a ocorrer uma adesão em massa ao sistema. Tal acontecimento só ocorrerá no caso de uma profunda mudança social em que as famílias passem a ter recursos suficientes para arcarem com uma fatura dobrada ou ocorra toda uma modificação na forma como as famílias obtenham acesso a esses serviços. O que se espera então é que os recursos públicos continuem sendo transferidos aos entes privados, com um custo a mais que é o de manter as remessas de lucro para o exterior.

Chegamos assim, no ponto crucial da privatização que é uma manobra articulada pelo FMI e o Banco Mundial para aumentar a carestia fiscal dos governos infranacionais e transportar através do mercado financeiro e das empresas estrangeiras cada vez mais dinheiro para os países sede, tanto através dos valores advindos das faturas de água e esgoto, quanto através dos investimentos públicos aportados no setor.

Não a toa, em mais de dez anos de atuação na Região Metropolitana do Recife, a parceria-público-privada BRK Ambiental conseguiu a façanha de aumentar em apenas 8 pontos percentuais a cobertura do serviço, alterando o índice de atendimento de esgoto na localidade atingida pelo Programa Cidade Saneada de 30% para 38%. Vale ressaltar ainda que boa parte dessa ampliação se deve ao esforço de empresas nacionais do setor da construção civil, que ao realizar empreendimentos imobiliários constroem toda a ligação e muitas vezes até mesmo as ETEs (Estação de Tratamento de Efluentes) de forma que boa parte desse aumento de cobertura não teve qualquer contribuição das parcerias-público-privadas (PPPs).

Em termos da experiência internacional, segundo Satoko Kishimoto, em entrevista à BBC, informou que “Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás por que constatam que as privatizações ou parcerias-público-privadas acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas incialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso”.

As PPPs custam caro aos cofres públicos e rendem muito aos acionistas que podem se desfazer do negócio e liquidar as ações com rapidez e sem qualquer compromisso com o país. Como forma de alerta a BRK já avaliou uma parte de suas operações da BRK Ambiental em 10 bilhões. Ou seja, as empresas privadas recebem o sistema pronto, todo construído com os recursos do FGTS e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e depois vendem no mercado financeiro lucrando bilhões, tendo investido muito pouco. Esta movimentação é chamada de “financeirização do saneamento”.

Segundo o IPEA (2020) “As medidas de estímulo à privatização (ou “desestatização”, como tem sido chamadas ocasionalmente pelo governo e pelo BNDES) não têm sido, historicamente, portadoras em si de capacidades ou de fundamentos para trazer financiamento diferente dos mecanismos aqui mencionados, sempre necessitando do suporte estatal”.

A municipalização e a criação de um Sistema Nacional de Saneamento Básico estatal forte e integrado é a medida mais acertada a ser tomada, tendo em vista o sucesso de experiências com o Sistema Único de Saúde (SUS), a Vigilância Sanitária (VISA) e mais recentemente com o Meio Ambiente através da Lei Complementar (LC) 140. Tal mudança de percurso, entretanto, não está nos planos das classes dominantes nem de nossos governantes.  É fundamental, portanto, lutar pelas empresas públicas e contra a privatização da água, como a exemplo da luta da Unidade Popular (UP) e dos movimentos que a compõem ocorrida em São Paulo, quando a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) foi privatizada de forma rasteira e covarde pelo governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Água é um bem universal e um direito de todas famílias. Privatizar esse bem é um verdadeiro crime e um absurdo.

*Daniel de Albuquerque é técnico ambiental na cidade do Recife, Pernambuco.


Referências:

Miranda, C. A. C. (2012). O urbanismo higienista e a implantação da companhia do Beberibe e da Drainage Company Limited na cidade do Recife. Gestão Pública: Práticas e Desafios, 3(1).

Moreira, F. D. (2011). Higienismo enquanto prática urbanística: o exemplo do Recife no início do século. Cadernos de estudos sociais, 8(2).

Neves, M. A. (2018). Higienismo e ações de remodelamento urbano no Recife (1900-1929). Cadernos Do Centro de Organização Da Memória Sócio-Cultural Do Oeste de Santa-Catarina-CEOM, 31(48), 50.

Santos, G. R.; Kuwajima, J. I.; Santana, A. S. Regulação e investimento no setor de saneamento no brasil: trajetórias, desafios e incertezas. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2020;

 

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