Terceirizados lutam contra exploração e falta de salários em hospital municipal do Rio de Janeiro.
Douglas Batista e Gustavo Vorage | Rio de Janeiro
BRASIL – A precarização da saúde no Município do Rio de Janeiro atingiu níveis catastróficos, com consequências brutais, tanto para os trabalhadores do setor quanto para a população. O que vemos, mais uma vez, é o Estado protegendo os interesses da burguesia e do setor privado, enquanto o povo morre nas filas de hospitais. Afinal, o lucro das iniciativas privadas depende da fragilidade e da escassez impostas ao setor público.
Em Irajá, o núcleo local da Unidade Popular (UP), em conjunto com o Movimento Luta de Classes (MLC), iniciou uma brigada semanal do jornal A Verdade no Hospital Municipal Francisco da Silva Telles para dialogar com os trabalhadores e com a população, além de denunciar os absurdos que vivem os profissionais da área.
Os relatos denunciam o cenário humilhante que os trabalhadores vivenciam: uma confusão de gestão de múltiplas Organizações Sociais (OSs), servidores concursados realocados para outros setores para dar espaço à mão de obra mais barata, falta de insumos, condições de trabalho desumanas e até mesmo retaliação em caso de reivindicação por melhorias.
Recebemos um relato com foto de um dos pacientes que sofreu uma necrose nos tecidos do pé após um procedimento. Este não é o único caso absurdo. O mais trágico é o de Shirley D’Oliveira, que foi internada para um procedimento de retirada da vesícula no dia 14 de fevereiro. Durante sua internação, uma saga horrível de sofrimento se iniciou, que culminaria na morte da paciente. Primeiro, a pele ao redor do corte cirúrgico sofreu necrose. Depois disso, todos os pontos de seu corpo em que foram inseridas agulhas para aplicação de medicamentos e os curativos apresentaram o mesmo problema.
Em extrema angústia, durante uma visita no dia 8 de março, Shirley relatou para sua cunhada que “se sentia podre” em vida. No dia 9, ela foi transferida para o Hospital de Piedade, onde permaneceu internada por semanas em estado grave enquanto os médicos tentavam salvar sua vida. Infelizmente, Shirley não resistiu.
Vemos aqui o que a entrega da gestão da saúde pública para a iniciativa privada provoca na população: descaso, sofrimento e morte. Uma trabalhadora saudável que fez um procedimento que deveria ser simples teve sua vida ceifada pela ganância de empresas terceirizadas.
Superexploração dos terceirizados
Um dos piores cenários dessa unidade de saúde é vivido pelos profissionais da limpeza empregados pela Construir Arquitetura e Serviços Ltda, uma empresa especializada em terceirização. De acordo com funcionários e pacientes do hospital, os trabalhadores da empresa ficaram mais de dois meses sem salário.
Entre dezembro e janeiro, a empresa não pagou os trabalhadores, deixando-os sem condições de arcar com suas contas. As denúncias demonstram ainda que a empresa mal se importa com a vida dos empregados, pois nem o vale alimentação é pago integralmente.
No entanto, a empresa continua a receber verbas da Prefeitura, De acordo com o portal Contas Rio, só no ano de 2024 a Construir recebeu da Prefeitura R$ 1,5 milhão direcionados exclusivamente aos serviços prestados no Hospital Municipal Francisco da Silva Telles.
Para piorar, as denúncias recebidas pelo jornal A Verdade indicam que os funcionários acumulam até 10 anos de férias não pagas, além de não serem pagos o adicional de insalubridade, o décimo terceiro salário e com parcelamento em até vinte vezes os valores devidos a trabalhadores demitidos, sempre se recusando a fornecer qualquer explicação plausível sobre a situação caótica.
Os trabalhadores relatam que não possuem acesso a EPIs e materiais básicos para executar suas funções. São, inclusive, obrigados a assinar a folha de recebimento dos equipamentos de proteção sem os receber. Até mesmo os insumos mais primários, como luvas e desinfetantes, não são entregues. Quando possível, os trabalhadores levam estes itens de suas próprias casas para garantir a higienização dos ambientes hospitalares. Os materiais de limpeza precisam ser diluídos em água para render mais. O mesmo ocorre com a equipe de enfermagem de outras empresas terceirizadas: são obrigados a trabalhar com materiais sujos, a não ser que paguem do próprio bolso pelas ferramentas de trabalho. A empresa assume o risco de prejudicar a saúde dos pacientes ao não fornecer sequer os produtos essenciais para a limpeza de espaços tão sensíveis.
Os funcionários frequentemente são coagidos e sofrem assédio moral. Em caso da impossibilidade de comparecer a um dia de trabalho por qualquer problema, por mais grave que seja, como doença ou alagamento na região onde residem, os trabalhadores são punidos e obrigados a executar suas funções em unidades de saúde muito distantes de seus locais de moradia. Ao tentar organizar uma greve para lutar por seus direitos, muitos funcionários são demitidos por justa causa.
A Construir se aproveita da fragilidade de muitas mulheres trabalhadoras com uma idade, formação e gênero que as dificulta de conseguir emprego e se veem condenadas a trabalhar apesar da incerteza de recebimento de seus salários, porque a outra alternativa é a certeza do desemprego.
Em suas redes sociais, a empresa reproduz discursos claramente exploratórios, como um vídeo promocional com o título “Por que a terceirização é o melhor caminho”, onde reforçando as vantagens da terceirização para empresas, cita a “ausência de encargos trabalhistas” e “desburocratização de contratação” como benefícios para os grandes empresários. Enquanto isso, continua tratando seus funcionários com crueldade, ameaçando o sustento e a saúde daqueles que precisam do emprego para sobreviver.
Por conta da falta de limpeza e manutenção, a unidade de saúde está decadente e imunda. Recebemos relatos de um membro da equipe de enfermagem denunciando “o estado absolutamente insalubre dos ambientes hospitalares. Há sujeira por todos os lados e os materiais para manejo dos pacientes internados, como equipamentos para banho e limpeza pessoal, não são devidamente higienizados e esterilizados”.
Revolta dos trabalhadores
No dia 22 de janeiro, revoltados com a falta de dignidade imposta pela Construir, os trabalhadores da limpeza do Hospital organizaram de forma espontânea uma importante greve para pressionar os empregadores a quitarem os salários devidos.
Em apoio e solidariedade à luta, a Unidade Popular e o MLC promoveram um ato com agitação na porta do Hospital para fortalecer a paralisação, denunciando os absurdos que a empresa vem repetindo continuamente e exigindo o pagamento dos salários. No mesmo dia, conversamos com trabalhadores da Construir que estavam no local prestando serviços para a empresa.
Joana (nome fictício) revelou que a empresa recrutou trabalhadores de outras unidades para garantir a limpeza, pagando as diárias. “Como que pode eles terem dinheiro pra nos pagar R$ 250,00 por uma diária, mas não tem para pagar os salários dos nossos colegas? É um absurdo o que eles fazem. Mas eu também preciso, por isso vim. Amanhã estão oferecendo mais R$ 250,00 para quem vier, estou pensando se venho novamente”, relatou a terceirizada.
Após o ato e a paralisação, a Construir pagou apenas metade do salário aos funcionários, evidenciando seu desprezo e escárnio pela vida dos trabalhadores, além da certeza da impunidade ao repetir a desumanização e a crueldade que pratica há anos. O Estado sempre mantém protegidos os interesses e privilégios da burguesia ao permitir que este drama se perpetue.
No mês seguinte, a empresa parecia ainda acreditar, muito ingenuamente, que os atos e as paralisações realizados até o momento seriam apenas ações isoladas e transitórias: atrasou mais uma vez os salários. Novamente, os trabalhadores foram à luta: novas mobilizações foram tocadas e um grande ato na porta da empresa foi planejado. O pavor que se instaurou foi tamanho que, um dia antes do ato, a Construir colocou o pessoal de seu escritório para trabalhar na limpeza do Hospital, além de pagar os salários que haviam atrasado.
Essas conquistas são fruto da luta dos trabalhadores em união com a Unidade Popular, mas ainda há muito pelo que se lutar: Os profissionais ainda estão sem receber os pagamentos de férias e adicionais de insalubridade, recebem um valor abaixo do devido no vale alimentação, continuam sofrendo ameaças de demissão caso se mobilizem e os materiais de limpeza não são garantidos.
Após mais investigações, descobrimos que trabalhadores da Construir de outras unidades, como o Hospital Maternidade Alexander Fleming, em Marechal Hermes, na Zona Norte estão passando pela mesma situação. Com isso, também expandimos nosso trabalho de base para este local, envolvendo mais núcleos da Unidade Popular e abrindo novos pontos de brigada.
Manteremos nossa luta em conjunto com os trabalhadores do Hospital pelo tempo que for necessário, denunciando as condições degradantes que a privatização dos setores públicos gera na vida de tantos. Só a luta organizada e constante pode gerar vitórias para a classe trabalhadora!
Matéria publicada na edição n°311 do Jornal A Verdade.