O prédio que abrigou por 30 anos o Dops de Minas Gerais, um dos principais aparelhos de tortura da ditadura militar fascista, foi ocupado permanentemente por movimentos sociais no 1º de abril deste ano.
Felipe Annunziata e João Márcio Dias | Belo Horizonte (MG)
BRASIL – A fachada modernista do prédio que abrigou por 30 anos o Dops de Minas Gerais esconde um dos principais aparelhos de tortura e repressão da ditadura militar fascista. Entre 1958 e 1988, o edifício localizado na Avenida Afonso Pena, principal avenida de Belo Horizonte, foi local de torturas e violações de direitos humanos de centenas de pessoas.
O prédio foi depois utilizado como Delegacia da Polícia Civil e abandonado em 2018 pelo governo estadual. No entanto, desde o período da redemocratização o endereço é ponto de encontro das lutas por memória, verdade, justiça e reparação na capital mineira. Há anos, todo 1º abril é marcado com manifestações exigindo que o prédio do antigo Dops se torne espaço de memória da luta contra a ditadura.
Mas o 1º de abril deste ano foi diferente. Diversos movimentos sociais, organizações e partidos políticos de esquerda organizaram uma ocupação permanente do espaço. Desde então, atividades de visitação, reuniões de movimentos e formação educativa de estudantes ocorreram. Desde o início da ocupação, mais de três mil pessoas visitaram o local, sendo que 800 tiveram visitas guiadas.
A decisão dos movimentos de manter a ação mostrou a viabilidade e a necessidade da instalação do Memorial dos Direitos Humanos naquele espaço. O projeto já havia sido elaborado por um Grupo de Trabalho da UFMG, em 2020, no entanto foi boicotado pelo atual governo estadual, liderado pelo fascista Romeu Zema (Novo). Além disso, o projeto não contou com nenhum apoio do atual governo federal ou da Prefeitura de Belo Horizonte, mesmo com os constantes protestos de vítimas e familiares de vítimas da ditadura militar.
Apagamento e destruição da memória
Para além disso, o espaço é vítima de um processo de apagamento dos vestígios de tortura. O acesso às oito celas e espaços de tortura no subsolo do prédio estão completamente bloqueados por paredes construídas nos últimos 20 anos. Após a ditadura, a Polícia Civil continuou usando o espaço não só como delegacia, mas também como carceragem.
Uma sala de tortura, localizada no pátio externo à carceragem, era conhecida como “igrejinha”, onde havia uma mureta para apoiar o “pau de arara” e também como espaço para guardar os aparelhos de tortura, como as fiações para choques elétricos e armas de espancamento. O apelido do lugar se dava em referência ao fato de que quem entrasse “confessaria” diante das torturas. O local foi tapado com uma parede para fazer parecer que fossem, na verdade, dois banheiros.
“Estamos dispostos a resistir. A política do governo é de destruição e apagamento da memória da ditadura.”, afirmou Oraldo Paiva, metalúrgico, militante perseguido na ditadura e que passou pelo Dops de Minas Gerais no ano de 1987.
Paiva, que também é membro da Comissão da Verdade dos Trabalhadores (Covet), lembrou da luta contra a ditadura e como a classe trabalhadora foi importante naquele processo. O metalúrgico também defende que as empresas que financiaram as operações de tortura financiem o novo Memorial.
“Então, aí eu cheguei aqui e comecei a trabalhar na Sid, e aí eu comecei a trabalhar aqui. Isso que me levou a chegar, em 87, na greve geral, que acabei sendo preso, né… Não fui torturado fisicamente, mas, segundo a companheira, a jornalista falou: ‘Oraldo, você está falando que você não foi torturado, mas você foi torturado, toda interrogatória é uma tortura psicológica.’ Uma das vezes que eu fui interrogado foi naquela sala lá da cortiça. Então, depois acabou me liberando”, afirmou.
Outro perseguido político que foi torturado no Dops-MG é Paulo Guarani, militante do movimento negro e ex-cabo da PM-MG. Ele nos contou as inúmeras vezes que foi parar no prédio do Dops por conta da perseguição racista da Ditadura à cultura do povo negro.
“A Polícia Militar chegava lá com as viaturas do 16º Batalhão e recolhia todos os negros que eles podiam recolher. Alguns iam pro 5º Distrito, alguns iam pro 2º e alguns iam pro Dops. E parece que era minha falta de sorte que eu estava sempre indo pro Dops. Parece que eles já sabiam que tinha que me levar pra lá”, contou Paulo Guarani.
Arquitetura da tortura e da morte
Segundo relatos de ex-presos e também por vestígios encontrados no local, o edifício passou por reformas para adequar o espaço a outros tipos de violação dos direitos humanos.
No local, nossa reportagem pôde verificar a existência de apoios para colocar o famoso “pau de arara”, salas solitárias e sem entrada de luz para presos, espaços designados como locais de espancamento, um canil onde cachorros eram treinados para atacar presos, entre outros espaços voltados para tortura. Todas as estruturas foram feitas durante a ditadura militar.
No entanto, no estacionamento anexo ao prédio, foi encontrada uma piscina e uma sauna, supostamente para a recreação dos policiais, mas que na verdade era usada para a tortura conhecida como “esquenta-esfria”. Neste tipo de tortura, o preso é colocado numa sauna extremamente quente e após alguns minutos é jogado numa piscina de água gelada. O objetivo é causar choque térmico na pessoa.
A utilização do prédio para torturas físicas é corroborada pela entrevista de Paulo Guarani. Ele revelou como as torturas aconteciam no espaço hoje ocupado pelos movimentos sociais.
“Mas o Dops chegava infiltrado no samba, no pagode, e já chegava arrastando. Não dava para fazer muito barulho no samba, porque ia machucar muita gente. E machucava mesmo. Então, a gente saía e vinha, tomava esse couro. O que você fala de tortura, a gente fala de couro, a gente fala de pau de arara, de cabeça para baixo, com choque no testículo, choque no ânus, cassetete enterrado no ânus, cassetete entre os dentes, choque elétrico entre os dentes, banho de banheira gelada, com gelo mesmo, mas era muito gelo”, afirma Paulo Guarani.
Segundo o relatório da UFMG, a estrutura arquitetônica difere de um espaço de recreação. O formato da piscina é de um poço que claramente não é utilizado para as pessoas nadarem. De acordo com a pesquisa também, o espaço teria sido construído na década de 1980.
A fachada modernista, que da rua poderia muito bem ser confundida com a de um museu ou de uma escola, esconde uma arquitetura construída para realização de torturas e assassinatos.
Vitória e negociação
A ocupação, desde o primeiro dia, foi perseguida pelo governador fascista Zema. No entanto, a resistência das organizações e movimentos sociais deu resultado. No dia 20 de maio, o desembargador Luis Carlos Balbino Gambogi emitiu uma liminar proibindo o despejo da ocupação e obrigando o governo de MG a negociar a criação do espaço de memória. Mesmo assim, a PM se recusava a levantar o cerco ao prédio, sendo novamente obrigada pelo judiciário a recuar.
Na Assembleia Legislativa a ocupação também tem repercutido e parlamentares progressistas têm defendido a manutenção do espaço. Diversos parlamentares já visitaram o local e reafirmaram a importância da criação do memorial. A Comissão de Direitos Humanos da ALMG tem atuado na defesa da permanência da ocupação.
No dia 30 de maio, aconteceu uma audiência de conciliação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na qual os ocupantes tiveram importantes vitórias para a luta, incluindo o compromisso do governo de que o prédio não será vendido e será destinado a ser o Memorial dos Direitos Humanos, além da prorrogação do mandado de segurança que garante a continuidade da ocupação.
“A gente conseguiu mostrar que a luta para ser memorial é fundamental para o resgate da memória, da verdade, da justiça do povo de Minas Gerais e do Brasil que lutou contra a ditadura, e também as heranças da tortura que ainda existem hoje no Brasil”, afirmou Renato Amaral, um dos coordenadores da ocupação.
As organizações que participam da ocupação defendem gestão coletiva do espaço pelo movimento social, para torná-lo definitivamente um Memorial dos Direitos Humanos e também um espaço de organização das lutas sociais.
Matéria publicada na edição impressa nº314 do jornal A Verdade