O avanço da Inteligência Artificial vem ocorrendo em todo mundo em cima de uma profunda exploração da força de trabalho de milhões de pessoas de países dependentes.
Guilherme Fernandes | Fortaleza
OPINIÃO – O que mais vemos sendo divulgado pela grande mídia burguesa é a narrativa de que a inteligência artificial (IA) é ao mesmo tempo promissora e ameaçadora. Fala-se constantemente sobre a possibilidade de uma “escravização” do homem pela máquina, da substituição massiva de empregos, inclusive em atividades essencialmente humanas, como a psicoterapia.
Não são raras as manchetes sensacionalistas que afirmam que sistemas de IA estão se tornando “conscientes”, alimentando uma falsa disputa entre humanos e máquinas. No entanto, por trás desse discurso alarmista, o que se observa é uma tentativa da classe dominante de nos desorganizar e confundir, desviando o foco das verdadeiras contradições do sistema.
Qual força nos move?
Marx e Engels afirmam que o ser humano está inserido na sociedade sempre a partir de uma posição de classe, e que a luta de classes é a força motriz da história. No pensamento marxista, compreendemos que as condições materiais de produção não apenas moldam as estruturas sociais, mas também formam os próprios indivíduos que nelas vivem. Em outras palavras, nossos desejos, capacidades e traços pessoais são profundamente influenciados pela posição que ocupamos na estrutura de classes.
Então partindo de nossa realidade, ao percebermos as contradições da sociedade, somos capazes de realizar uma prática transformadora e para isso acumulamos conhecimento. Dessa forma podemos perceber outras contradições e seguir neste contínuo processo de aprendizagem. Logo, quanto mais prática pudermos ter, mais podemos aprender e transformar. Contudo temos diversas limitações (de classe, física, emocional, histórica) que não nos permitem experimentar diversas possibilidades ao mesmo tempo.
É nesse ponto que surge a falsa promessa de que um ente artificial, focado unicamente na execução de processos de aprendizado, poderia testar infinitas possibilidades, mapear contradições e apontar caminhos de superação com mais eficiência que o próprio ser humano. Mas essa ideia ignora uma questão fundamental: a IA não está no mundo.
Ela não possui corpo, história, nem engajamento prático com as contradições que moldam a existência humana. Por mais sofisticados que sejam, não experienciam o mundo de maneira situada, e, portanto, não compreendem contextos, significados ou intencionalidades.
A IA pode simular decisões, mas não age no mundo. Atribuir a ela o mesmo processo dialético da prática humana é esvaziar a dimensão histórica, material e vivida da transformação. É converter uma tecnologia em fetiche, ocultando que ela opera sob os interesses de uma classe que a molda conforme suas necessidades.
A evolução dos meios de produção
Mikhail Bakhtin (filósofo, crítico literário e linguista russo) concebe a linguagem como essencialmente dialógica, ou seja, constituída pela interação constante entre diferentes vozes sociais. Segundo o pensamento do dialogismo, todo enunciado é, ao mesmo tempo, uma resposta a discursos anteriores e uma antecipação de respostas futuras. A linguagem, portanto, nunca é neutra ou isolada: ela reflete a multiplicidade de perspectivas, valores e tensões que atravessam a vida social. Nesse sentido, todo discurso está enraizado em um contexto histórico e ideológico específico, carrega consigo marcas do tempo, do lugar e das relações sociais que o produziram. Falar ou escrever é sempre entrar em uma arena de vozes, onde sentidos são disputados, negociados e ressignificados continuamente.
Partindo desse olhar sobre a linguagem, torna-se evidente que aqueles que detêm os meios de produção tecnológica estão sendo beneficiados com esse discurso; são eles que ganham quando um clima de medo e desconhecimento é construído em cima de uma ferramenta dessas. Mas como eles ganham?
Em O Capital, Marx apresenta o conceito de exército industrial de reserva para se referir ao desemprego estrutural das economias capitalistas. Esse exército é composto pela força de trabalho que excede as necessidades imediatas de produção, mas cuja existência é fundamental para a manutenção do processo de acumulação capitalista. Para que o sistema funcione, é necessário que uma parte da população economicamente ativa permaneça desempregada. Segundo Marx, esse contingente de trabalhadores e trabalhadoras desempregados atua como um freio às reivindicações da nossa classe, contribuindo para a compressão dos salários e a precarização das condições de trabalho.
Ao gerar uma massa de pessoas em situações tão degradantes que estariam dispostas a aceitar qualquer forma de emprego para garantir sua sobrevivência, o sistema capitalista utiliza esse exército de reserva como instrumento de coação: quem recusar as condições impostas, será facilmente substituído. É assim que os patrões nos mantêm submetidos a condições de trabalho cada vez mais exploratórias.
É neste contexto que surge a vitória da classe atualmente dominante. Durante muito tempo, essa ameaça da substituição tecnológica era em maior parte dirigida àqueles que realizavam ofícios manuais, ligados ao trabalho produtivo direto. Com o advento das máquinas, a necessidade de força humana foi reduzida, mas ao invés de realocar esses trabalhadores para outros setores e reduzir as jornadas de trabalho, o sistema simplesmente os descartou, deixando-os sem meios de subsistência.
Por outro lado, os ofícios que necessitavam de uma formação superior ou conhecimentos técnicos mais especializados, geralmente acessíveis apenas por meio da universidade, permaneceram, por certo tempo, relativamente protegidos dessa lógica de substituição. Contudo, ferramentas como a inteligência artificial, hoje mercantilizadas como soluções autônomas para problemas cada vez mais complexos, passam a exercer um papel semelhante ao das máquinas tradicionais. Elas não apenas ameaçam substituir funções antes consideradas exclusivamente humanas, como também aprofundam a lógica de exclusão e precarização estruturante do capitalismo.
A IA nas mãos da burguesia é exploração
Enquanto a burguesia utiliza a inteligência artificial para expandir o exército industrial de reserva, também se vale desse mesmo exército para alimentar o desenvolvimento dessas tecnologias. É fundamental denunciar que muitos desses sistemas são construídos com base na violação de direitos autorais (defendidos pela própria lei capitalista), no uso indevido de dados sensíveis e na superexploração do trabalho humano. Em especial, por meio do que a organização sem fins lucrativos Partnership on AI (PAI) denominou de força de trabalho oculta. Essa força é composta por trabalhadores invisibilizados que realizam tarefas essenciais para o treinamento desses sistemas de IA, como rotulagem de dados e revisão de conteúdo.
Milhares de trabalhadores são subcontratados por grandes empresas de tecnologia, especialmente em países periféricos do Hemisfério Sul, para atuarem como rotuladores de dados. Esses trabalhadores são responsáveis por classificar milhões de textos, imagens, áudios e outros conteúdos, tarefa essencial para o treinamento das IAs.
Não há nada de “inteligente” nesse processo: trata-se de trabalho humano intensivo, invisibilizado e mal remunerado. Muitos dos rotuladores terceirizados pela OpenAI, por exemplo, recebiam entre US$ 1,32 e US$ 2,00 por hora para rotular dados. Além da precarização econômica, esses trabalhadores são frequentemente expostos a conteúdos extremamente violentos, degradantes e perturbadores, oriundos dos espaços mais tóxicos da internet, a fim de classificá-los como material impróprio, isso quando esses conteúdos não são passados pela triagem e vão parar nos bancos de treinamento dos modelos.
Socialismo ou Barbárie
Fica nítido que a burguesia está, mais uma vez, utilizando toda a produção do conhecimento humano para converter em dinheiro e aumentar os seus já entupidos cofres. Para isso estão dispostos a nos explorar mais e consumir o máximo de recursos naturais de nosso planeta. Não por acaso estamos vendo o aumento dos conflitos no Oriente Médio e Leste Europeu, onde boa parte destes conflitos ficam em regiões estratégicas para produção energética e disputa de minérios que permitirão a manutenção do desenvolvimento predatório destas tecnologias.
Quando é anunciado o bombardeio nas usinas nucleares do Irã é muito mais falado sobre a possibilidade do Irã desenvolver uma arma de destruição em massa do que sobre o criminoso ataque realizado pelos EUA em parceria com o Estado de Israel. Muitas vezes a imprensa burguesa utiliza o discurso moral para justificar estes ataques e não responsabilizar os reais culpados.
Assim, a mesma imprensa constrói um discurso moral sobre a inteligência artificial, mas se recusa a colocar no ponto central da discussão quem financia essa ferramenta para fazer a manutenção do poder. Precisamos avançar com o debate e denunciar quem realmente são os culpados da utilização da inteligência artificial de maneira predatória e criminosa para as pessoas e para o planeta.
Desta forma veremos que não há, no sistema capitalista, qualquer possibilidade de uso consciente da IA ou de qualquer forma de utilizar essa ferramenta com interesse primário na sociedade, porque os capitalistas vão deturpá-la em nome do lucro. Por isso, a única possibilidade para a utilização ética da IA é com a construção de uma sociedade socialista. Só assim esta ferramenta estará com as condições adequadas para a nossa humanidade.