O jornal A Verdade entrevistou Silvio Rodríguez, cantor e compositor cubano nascido em 1946, um dos maiores nomes da música latino-americana e fundador da Nueva Trova Cubana. Suas canções, que traduzem com sensibilidade os sentimentos, lutas e esperanças dos povos da América Latina e da Revolução Cubana, foram interpretadas por outros grandes artistas como Mercedes Sosa, Pablo Milanés, Chico Buarque, Milton Nascimento e Fito Páez.
Júlia Andrade Ew e Helena Andrade Ew
A Verdade – A primeira pergunta é sobre a arte e a luta internacionalista. Você tem usado uma Keffiyeh palestina nas apresentações, simbolizando a resistência de um povo que sofre hoje um genocídio. Ainda muito jovem, você se somou à luta de libertação em Angola e à luta anti-imperialista é presente em suas composições. Fale um pouco para nós sobre as experiências de solidariedade internacional e como elas te influenciam como artista e, ao mesmo tempo, de que maneiras a arte pode ser uma ferramenta contra as guerras.
Silvio Rodríguez – Embora a experiência do Che na Bolívia tenha fracassado na iniciativa de libertação, deixou, do ponto de vista do altruísmo, uma marca muito positiva na minha geração. Por isso, quando, em 1975, a África do Sul invadiu Angola, muitos milhares de cubanos se inscreveram nos comitês militares para defender aquela nação. Cuba é um país que tem sido vítima de invasões, sabotagens e poderosas campanhas de difamação. Um país que ainda sofre a guerra econômica mais longa da história: um bloqueio econômico ao qual se somam cada vez mais medidas de asfixia, apesar de que, todos os anos, na ONU, a maioria dos países vote contra.
Uma parte da humanidade percebe que o futuro da espécie humana deve estar baseado na empatia, na solidariedade, na cooperação, naquilo que os antigos chamavam de compaixão e misericórdia. Outra parte ignora completamente esses sentimentos e razões, e faz uso da impiedade e da força para obter o que ambiciona. É alarmante que, cada vez mais, predominem o egoísmo e a lei do mais forte. É vergonhoso e extremamente negativo para o destino da nossa espécie e até mesmo do planeta.
Desde 2003, em meus concertos, venho lendo o poema Halt!*, de Luis Rogelio Nogueras. Comecei a fazê-lo na época da invasão do Iraque. Agora, o faço como denúncia da impunidade do genocídio contra o povo palestino.
Você foi um dos jovens que, em 1961, construiu as Brigadas de Alfabetização Conrado Benítez, em meio a um momento duro de ataques e violências contra Cuba. Che, quando ministro da Indústria, também incentivou muito o trabalho voluntário entre a juventude e o povo. Qual a importância dessas campanhas na sua vida? Como elas serviram para aproximar o povo da Revolução?
Venho de famílias que, por razões econômicas, não tiveram a possibilidade de formar profissionais, famílias que foram beneficiadas em muitos aspectos pela Revolução de 1959. Aquele processo deu ênfase à solidariedade humana, decretou que as moradias pertenciam a quem as habitava e que o direito à vida, à saúde e à educação eram universais. Aos jovens, nos ofereceu a oportunidade de sacrificar um ano de nossos estudos para dedicá-lo a alfabetizar a parte do povo que não sabia ler. Tarefas como essas, junto à necessidade de nos prepararmos para defender aqueles direitos nossos como povo, foram criando uma consciência solidária em todo o país e, naturalmente, também entre os mais jovens.
Inspirados no exemplo da Revolução Cubana, hoje no Brasil a União da Juventude Rebelião constrói jornadas de trabalho voluntário nas periferias. O Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas constrói uma escola popular que alfabetiza jovens e adultos no país inteiro. Qual o recado que você deixa para os jovens alfabetizadores e para os trabalhadores que estão aprendendo a ler nesse projeto?
Sempre disse que, primeiro, vem a pessoa, depois, a vocação que se consiga desenvolver. Ou seja, de forma orgânica e consequente com a vida que nos cabe viver, quando conseguimos desempenhar uma função social, um trabalho, é natural fazê-lo a partir das convicções que a própria vida nos ensinou… E, com isso, não pretendo excluir a possibilidade de aprender a ser solidário: sempre é possível aprender a ser melhor.
A arte vincula sentimentalmente as pessoas. Às vezes, aqueles que pensam de forma muito diferente podem se colocar no lugar do outro por meio da influência do cinema, do teatro, da dança, das artes plásticas. Pessoalmente, pude comprovar que a música tem um poder empático altíssimo.
Por tudo isso, acredito que pode ser muito útil e, ao mesmo tempo, bonito, promover, com os recursos disponíveis, o desenvolvimento de uma cultura artística paralelamente a qualquer tipo de aprendizado, inclusive a alfabetização.
Assim, que avancem o saber e as artes!
Por fim, Silvio, a pergunta é sobre a vida. Você começou sua atividade política na adolescência e, hoje, com 78 anos, não abriu mão de seus princípios, da defesa da humanidade. Como você, na sua prática cotidiana, alimenta a esperança na mudança da sociedade?
Foi a realidade que me politizou, mais do que uma vocação. Fui parte de um povo que precisou adquirir consciência para compreender quem éramos, de onde vínhamos e o quão justo era aspirar a uma vida melhor. O mundo, o Universo, a natureza nunca estão em repouso; tudo está sempre em movimento – infelizmente, nem sempre na melhor direção.
Existe uma velha cultura do abuso e da resignação que vai assumindo diferentes formas ao longo dos tempos. Há uma estrutura propagandística muito antiga que favorece essa maneira de pensar. Por outro lado, acredito que, embora seja necessário nos defendermos e sermos firmes, não é bom que o ódio ou o rancor ditem nossos passos. O sentido de justiça e o amor ao próximo devem ser o que nos guia. Que odeiem os egoístas, os desumanos, os incapazes de sentir piedade.
Como disse José Martí a seu filho: “Só o amor engendra melodias”.
* O poema Halt! (Detenham-se!) foi escrito em 1979, pelo poeta e escritor cubano Luis Rogelio Rodríguez Nogueras após visita ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia.
Halt! (Detenham-se!)
Percorro o caminho que percorreram quatro milhões de espectros.
Sob minhas botas, na tarde melancólica e gelada de outono,
o cascalho estala dolorosamente.
É Auschwitz, a fábrica do horror
que a loucura humana ergueu em glória à morte,
é Auschwitz, estigma no rosto sofrido de nossa época.
E diante dos edifícios desertos,
diante das calçadas eletrificadas,
diante dos galpões que guardam toneladas de cabelos humanos,
diante da porta enferrujada do forno onde foram incinerados pais e filhos,
amigos de amigos desconhecidos,
esposas, irmãos,
crianças que, no último instante,
envelheceram milhões de anos.
Penso em vocês, judeus de Jerusalém e Jericó,
penso em vocês, homens da terra de Sião,
que, atônitos, nus, congelando,
cantaram o Hatikvah nas câmaras de gás;
penso em vocês e em seu longo e doloroso caminho
desde as colinas da Judeia
até os campos de concentração do III Reich.
Penso em vocês
e não consigo compreender
como puderam esquecer tão depressa
o bafo do inferno.
Matéria publicada na edição nº324 do Jornal A Verdade.