Che e o Homem Novo

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Para garantir a existência do seu regime econômico e político e impedir uma revolta generalizada contra o capitalismo, a burguesia mundial construiu uma gigantesca máquina de mentiras, formada por poderosos monopólios de comunicação em estreita relação com o capital financeiro, donos da quase totalidade dos canais de TV e das rádios, gravadoras, companhias cinematográficas, jornais e, ainda, a internet.

Segundo o professor Robert MacChesney, da Universidade de Ilinois, somente sete companhias dominam o sistema global de mídia comercial e controlam os principais estúdios de cinema do mundo, todas as redes de televisão dos EUA, detêm quase todos os canais de TV a cabo do planeta e controlam 90% do que é tocado no mundo¹.

Com essa rede privada de propaganda, erroneamente chamada de rede social, a burguesia vende ilusões e falsifica notícias e fatos para justificar os privilégios de uma pequena classe e a exploração da imensa maioria da população mundial.

Na verdade, somente espalhando mentiras e alienando as massas se pode justificar que um punhado de homens e mulheres – alguns milhares numa população que já ultrapassa 7 bilhões de pessoas – vivam no luxo, enquanto bilhões são obrigados a mendigar para não morrer de fome.  O pior é que mantido esse sistema, a situação só se agravará: prevê a ONU que em 2025, dois terços da população mundial viverão em condições de extrema carência e 1,8 bilhões de seres humanos habitarão em regiões com grande escassez de água.

Portanto, além da violenta repressão e das guerras imperialistas, a maneira mais eficiente encontrada pela burguesia para manter a ilusão no sistema capitalista e deter as revoltas dos despossuídos é propagar que o problema não está no sistema, mas na falta de ambição das pessoas.

A ideologia do capitalismo

Coerente com esta filosofia egoísta, a sociedade capitalista passou a ser chamada de sociedade de consumo. O fato de a maioria dos membros dessa sociedade não ter condições nem de garantir sua alimentação diária não importa. Para a burguesia, o que conta são os que podem consumir, menos de 20% da população mundial.

As necessidades humanas são, assim, resumidas à compra de cada vez mais mercadorias, mesmo que não se necessite delas. Para essa ideologia, o ter e o possuir são a maior satisfação que o ser humano pode alcançar. Quem não possui o bem material da moda ou alguém que viva para servi-lo é excluído, como ironizou Rupert Murdoch, dono da News Corporationmaior monopólio de comunicação do mundo, presente em 133 países: “Não se preocupem. Não queremos controlar o mundo. Só queremos um pedaço dele.”

Os valores humanos de solidariedade e amizade são ridicularizados e motivo de piadas em filmes, livros e “pegadinhas” na TV ou na propagação de exemplos daqueles que se tornaram milionários enganando e explorando as pessoas. O mais recente caso é o filme “A rede social” do diretor David Fincher, que relata a história de Mark Zuckerberg, um jovem norte-americano que se tornou bilionário aos 23 anos após roubar a ideia de criação do Facebook dos seus amigos. Levado a julgamento e condenado, Zuckerberg foi obrigado a pagar uma indenização a seus ex-amigos e entregar 10% das ações ao antigo sócio, mas manteve sua riqueza e o rótulo de “novo gênio da internet”.

Os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade proclamados pela própria revolução burguesa tornaram-se utopia para a humanidade e realidade apenas para a classe dos capitalistas. A amizade tornou-se uma palavra sem sentido e vazia, já que a glória é agir de modo oposto ao que essa palavra significa, isto é, sufocar o outro e ver no amigo um concorrente. O egoísmo é, pois, a qualidade mais importante na sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção.

Nesse discurso, a “ajuda” de mais de 20 bilhões de dólares para salvar da falência os monopólios e bancos pertencentes à burguesia é algo inteiramente lógico e necessário e a  demissão de milhões de trabalhadores é considerada um mal necessário para que a burguesia proteja o seu capital e o sistema continue existindo.

Para os desempregados jogados na rua da amargura, no pauperismo, e de onde, em sua grande maioria, não sairão, devido ao processo de destruição das forças produtivas característico das crises econômicas, sobram apenas palavras, tais como, “capacitação” ou “fazer uma reciclagem”.

A justificativa para salvar uma minoria ao mesmo tempo em que se jogam milhões no abismo é a exaltação da “liberdade individual” e de que a felicidade só é alcançada individualmente e em prejuízo da maioria.

A propósito, cada vez que um político burguês é flagrado num caso de corrupção, sua defesa alega sempre que ele também é filho de Deus e tem o direito de enriquecer. Como conseguiu esse patrimônio, que negociatas fez, ou quantos teve de enganar ou demitir é apenas um detalhe. Repetem-se, assim, as mesmas palavras do burguês Piotr Pietróvitch, personagem do romance Crime e Castigo de Dostoievsky ao defender o direito de ser rico: “Antes de mais nada ama-te a ti próprio, porque tudo no mundo está baseado no interesse individual.”

Quanto vale a moral burguesa?

Desse modo, o proprietário do capital pode fazer o que quiser e o que bem entender com quem vive do trabalho e não tem propriedade. O direito humano de ser proprietário individual é santificado e em seu nome pode-se fazer uma guerra ou explorar impiedosamente um país, um povo ou um ser humano.

Esta é, inclusive, a única explicação para o cínico silêncio dos chefes de governos capitalistas para o crime sexual cometido pelo ex-diretor geral do FMI Dominique Strauss-Kahn contra uma trabalhadora imigrante de um hotel de luxo em Nova Iorque. Com efeito, mesmo com várias testemunhas e fartas provas do crime, a justiça norte-americana vendeu por um milhão de dólares a liberdade para o senhor DSK, defensor intransigente, durante a crise, dos interesses do capital financeiro mundial. DSK espera agora por uma audiência de conciliação numa mansão de 14 milhões de dólares. Nada poderia tornar mais explicito que a moral e a liberdade na sociedade burguesa são mercadorias que só as possui quem tem dinheiro.

Portanto, o “direito individual de se enriquecer” graças à perpetuação do direito de herança e, principalmente, ao Estado que tudo faz para garantir a liberdade individual do burguês e de seus herdeiros, existe apenas para uma ínfima minoria da sociedade.

Aliás, é nesse ponto que reside uma das principais críticas feitas pelos escritores das classes dominantes ao socialismo. Dizem que o socialismo tem emprego, mas não tem liberdade, nele não se pode dizer o que pensa, nem comprar aquilo que necessita. Esquecem, porém, que a verdadeira liberdade existente no capitalismo é a do homem explorar outro homem e abandonar seus semelhantes.

Porém, além de obrigar bilhões de trabalhadores em pleno século XXI a jornadas estafantes de trabalho e a viverem na pobreza, há ainda outra conseqüência da hegemonia da ideologia burguesa sobre a humanidade: a criação de novas doenças sociais. Este é o caso da depressão (conjunto de alterações emocionais, como afastamento do convívio social, perda do prazer nas relações interpessoais, sentimento de culpa ou autodepreciação, baixa auto-estima, desesperança, etc.), que afeta atualmente mais de 450 milhões de pessoas.

Não bastasse, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2030, a depressão será a doença mais comum do mundo, afetando mais pessoas do que qualquer outro problema de saúde, incluindo câncer e doenças cardíacas.

A moral comunista

Nesse contexto, a luta política contra o capitalismo e por uma nova sociedade é inseparável da luta contra a ideologia burguesa e o egoísmo. Trata-se de uma luta não só diária, mas que precisa ser resoluta e intransigente dado a enorme influência dos meios de comunicação burgueses sobre a sociedade.

Um dos principais revolucionários a mostrar a importância dessa luta e a necessidade de se opor firmemente à ideologia burguesa e à sua falsa idéia de liberdade foi, sem dúvida, Ernesto Che Guevara. Na realidade, a própria vida de Che foi um exemplo da conduta de um revolucionário, ao entregar sem nenhuma vacilação sua vida à causa da revolução mundial.

Um dos principais textos de Che sobre essa questão é O Socialismo e o Homem em Cuba. Nele, Che afirma que “as leis do capitalismo, invisíveis para o homem comum e cegas, atuam sobre o individuo sem que este o perceba” e que “A revolução se faz através do homem, mas o homem deve forjar dia a dia seu espírito revolucionário.”

Nesse mesmo artigo, Che adverte que ao lado da transformação na base econômica da sociedade, é necessário construir uma nova moral e um novo homem. E, diferente do que alguns dizem, Che via no partido comunista e na juventude, os dois elementos principais para construir, forjar esse homem novo e desenvolver a revolução na direção do comunismo.  Vejamos o que escreveu:

“Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores. (…)

O partido é uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos pelos seus companheiros para integrá-lo. Ele é minoritário, mas de grande autoridade pela qualidade dos seus quadros. Nossa aspiração é que o partido seja de massas, mas quando as massas tenham atingido o nível de desenvolvimento da vanguarda, quer dizer, quando estejam educadas para o comunismo. E a essa educação vai encaminhando o trabalho.

O partido é o exemplo vivo: seus quadros devem dar aulas de trabalho e de sacrifício, devem levar, com a sua ação, as massas ao fim da tarefa revolucionária, o que implica anos de dura luta contra as dificuldades da construção, os inimigos de classe, as marcas do passado, e o imperialismo …” (O Socialismo e o Homem em Cuba, edições Manoel Lisboa)

Em resumo, enquanto a burguesia prega a necessidade do individuo seguir um caminho solitário para obter sucesso, a ideologia comunista defendida pelo partido afirma que a felicidade individual está em total unidade com a felicidade da humanidade e ao atuar, como disse Che, “levanta a bandeira do interesse moral, do estímulo moral, a bandeira dos homens que lutam, se sacrificam e não esperam nada mais do que o reconhecimento por parte dos seus companheiros.” Age assim, com a certeza de que para o revolucionário nada é mais humano que dedicar sua vida à causa da libertação da humanidade.

Leia também: Che e Fidel: uma amizade revolucionária

Lula Falcão, membro do comitê central do Partido Comunista Revolucionário

¹ Dos dez maiores conglomerados mediáticos mundiais em 2009, seis são estadunidenses, três são japoneses e um francês.