No dia 16 de janeiro a Literatura Brasileira perdeu um de seus maiores representantes, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Autor de poemas e histórias infantis e juvenis, educador, crítico de arte, museógrafo e ensaísta, o renomado e premiado escritor morreu em Belo Horizonte, em decorrência de insuficiência renal. Bartolomeu publicou mais de 40 livros, com grande reconhecimento de público e crítica. Estudioso da filosofia e da estética, utilizou a arte como parte integrante do processo educativo, participando de importantes projetos de leitura no Brasil, como o ProLer e o Biblioteca Nacional, dando conferências e seminários para professores de leitura e literatura. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado e membro do Conselho Estadual de Cultura, desenvolvendo um importante trabalho para a arte e para a cultura de Minas Gerais, além de ocupar a Cadeira 26 na Academia Mineira de Letras. Um dos mais premiados escritores dos últimos tempos, ele foi agraciado com o Prêmio Cidade de Belo Horizonte; Prêmio Jabuti; Selo de Ouro, da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil; Diploma de Honra da IBBY, de Londres; Premio Rosa Blanca (Cuba); Quatrième Octagonal (França); Prêmio Nestlé de Literatura; Prêmio Academia Brasileira de Letras, entre muitos outros.
Considerado por alguns como autor infanto-juvenil, sua literatura tocava fortemente indivíduos de todas as idades, com uma escrita extremamente poética, mas também com alto teor político e social, numa análise profunda das questões mais caras ao homem e seu meio: “São antigas as questões que nos afligem: é o medo da morte, do abandono, da perda, do desencontro, da solidão, desejo de amar e ser amado. E, nas pausas estabelecidas entre essas nossas faltas, carregamos grande vocação para a felicidade. O texto literário não nasce desacompanhado destes incômodos que suportamos vida afora. Mas temos o desejo de tratá-los com a elegância que a dignidade da consciência nos confere”.
Em seu livro Onde tem bruxa tem fada…, podemos encontrar claramente uma alegoria do capitalismo, com seus “mágicos” que “faziam coisas incríveis” como “televisão com poeira de guerra/ petróleo com gosto de sangue/ míssil mais feroz que a ambição”, ou que “diziam onde as pessoas deveriam guardar seu dinheiro”, e que ele “crescia, crescia” e “os homens podiam comprar tudo: casa, carro, viagem, roupa, voto, poder, glória, ‘sem entrada e sem mais nada’”. A fada, que veio do céu para “produzir alegrias” na terra, estava desanimada, pois “os mágicos – prometendo o céu e a terra – davam tantas tarefas aos homens que eles não tinham tempo para saber que faltava tempo para a alegria nascer”. Esses mágicos, para “facilitar a produção […] enchiam o coração dos meninos de esperanças. Quando uma esperança começava a morrer eles fabricavam uma nova. A esperança passou a ser uma certa doçura que sossegava a todos”. Quando a fada se oferecia para atender qualquer pedido, as crianças perguntavam “quanto custa, quanto?”. Em certo momento, a fada chega a conclusão de que “o mundo pertence agora aos mágicos e só eles pensam poder modifica-lo”, e compreende “por que era importante, para os mágicos, os meninos terem esperança. A esperança é uma coisa que sempre espera e nada faz”. Com alegorias infantis, o autor faz uma grande crítica ao capitalismo, suas ações perversas e seu enorme aparato de propaganda, que busca difundir falsas esperanças, com o objetivo de manter a inércia da população explorada, além do processo contínuo de mercantilização do homem e de seus sentimentos.
Sua obra intitulada De não em não, também é outro libelo contra o capitalismo. Já na primeira página, o poeta afirma que “Algum dia dividiremos a liberdade em fatias e nos amaremos – sem fome – em absurda alvorada.” O livro conta a história de uma família que, numa noite “dormiam por terra, entre trastes, frio e mais abandono”, e que é assolada por seu algoz, que era a “origem das lágrimas dos meninos. Era a Fome, hóspede previsível. Entrava sem chaves, sem trancas. Surgia sem consentimento, negando trégua ao repouso”. Na casa “só havia o vazio e o resto. A Fome, há muito, andava corroendo tudo”, até a música, a esperança e o tempo. Ela, que era aquecida pelo frio da noite, causava na mãe uma suspeita: “Quanto menos se possui, com mais frequência a Fome nos visita”. “A força dos braços do pai somada aos dias inteiros de trabalho não mais afugentavam a insistência da Fome”. A Fome, inexorável, consumia até as “palavras, frases, orações. Comia letra por letra, deixando a mudez em todas as bocas”. A mãe sabia que a Fome “mata sem piedade, com golpe lento”, por isso tentava atender suas exigências, porque “pelo pavor da Fome devorar a vida, perde-se o limite dos muros”, e também “a Fome não fala, mas exige pela dor”. “Ela é capaz de abraçar uma nação inteira de homens em um mesmo tempo”, pois ela “come por muitos. Com o devorado ela arma grandes banquetes para os seus senhores, generosamente. Em porcelana, linho, cristal, ela serve o resultado do vazio deixado no estômago dos oprimidos”. “Ela está sempre pronta para servir à mesa de seus donos, onde nada falta. Por comerem tanto e sempre, os patronos da Fome nunca experimentaram na carne a crueldade de sua aliada. Eles sabem de sua existência e seus lucros, sem jamais encarná-la”. Só resta aos “meninos […] vencendo as ruas, de porta em porta, de esquina em esquina, de lixo em lixo, de não em não”, continuar “buscando armas para matar a Fome”. Palavras poderosas contra o capitalismo e um de seus principais sustentáculos, a famigerada Fome.
Bartolomeu foi o idealizador do Movimento por um Brasil Literário, criado com o objetivo principal de fazer do Brasil uma sociedade leitora. Considerava a alfabetização como um bem e um direito, e criticava a postura das escolas em relação à literatura, afirmando que “a escola cobra muito caro por aquilo que ela ensina, a literatura só existe e funciona na liberdade”. No manifesto do movimento, ele diz que “É no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia. Na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude”, e que “no texto literário autor e leitor se somam e uma terceira obra, que jamais será editada, se manifesta. A literatura, por dar a voz ao leitor, concorre para a sua autonomia. Outorga-lhe o direito de escolher o seu próprio destino”. Ainda no manifesto, o poeta afirma que “A leitura literária é um direito de todos e que ainda não está escrito. […] afirmando que a literatura, pela sua configuração, acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo; compreendendo que a metáfora literária abriga as experiências do leitor e não ignora suas singularidades, que as instituições em pauta confirmam como essencial para o País a concretização de tal projeto”. Autor de textos sobre direitos humanos, artigos sobre ética e reflexões sobre diversos ofícios, Bartolomeu defendia a necessidade de um trabalho social com a leitura, reconhecendo-a como uma ferramenta transformadora, em um modelo onde a educação fosse vista como informação e principalmente transformação, contrariando o caráter adestrador e servil do modelo educacional atual, que só atende as demandas do mercado. Defensor da função social e política da leitura – não apenas a literária, mas a leitura do mundo – o poeta via o processo como busca do exercício da criação humana e da liberdade, ressaltando a importância da comunhão e da solidariedade, pois “a beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho, ela só é completa quando compartilhada”.
Com a morte de Bartolomeu Campos de Queirós, a Literatura Brasileira perde uma de suas vozes mais sensíveis e pessoais, além de um dos artistas mais engajados nas questões políticas e sociais do povo brasileiro. Um indivíduo que lutou pela construção de um novo homem e uma nova sociedade, e buscou promover “os indivíduos a sujeitos e responsáveis pela sua própria humanidade. De consumidores passa-se a investidores na artesania do mundo. Por ser assim, persegue-se uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável”.
Christian Coelho, estudante do curso de Letras da UFMG