“Era uma vez um rei chamado Midas. Ele tinha muita sede de riqueza e pediu aos deuses em quem acreditava para que tudo o que ele tocasse se transformasse em ouro. Foi atendido. Imaginem sua felicidade, até perceber que não podia mais comer nem beber, pois a água, os alimentos, tudo virava ouro em suas mãos. Arrependido, voltou a implorar aos seus deuses para perder essa capacidade de transformar tudo em ouro; em troca, ofereceu toda a sua fortuna”.
Assim é o capitalismo. Transforma tudo em mercadoria, em lucro,em dinheiro. Nãoimporta a destruição da natureza, da vida, de tudo. Se não for contido, chegará ao ponto de não se ter mais alimento nem água para beber. Pior do que Midas, é que o capitalismo não se arrepende. Se não for contido por uma revolução do povo consciente e organizado, destruirá mesmo a vida na terra.
Era assim que Domitila explicava ao povo nas suas palestras, nos seus discursos e na sua Escola de Formação Política, o que é o capitalismo e a necessidade da revolução popular em vista da construção do socialismo. Simples, didática, envolvente, símbolo das lutas dos mineiros, dos trabalhadores, das mulheres bolivianas; na verdade, ícone do povo da América Latina.
Das minas bolivianas para o mundo
No dia 7 de março do corrente ano, o coração de Domitila Barrios de Chungara parou de bater, aos 75 anos de idade, vítima de câncer de pulmão, doença que atinge grande parte dos trabalhadores em minas. Elanasceu e cresceu no meio de uma cultura profundamente machista, na qual a compreensão era de que lugar de mulher é em casa e que mulher não precisa aprender a ler e escrever, pois isto serve apenas para mandarem carta para os namorados. Mas teve sorte, pois seu pai, um camponês que depois se tornou mineiro, lhe dizia que “as mulheres podem fazer as mesmas coisas que os homens”.
Até o ano de 1961, não havia organização de mulheres nas minas e, na maioria dos casos, os homens não deixavam que elas participassem das reuniões. Foi com Domitila, na Mina Siglo XX (Século 20), que as mulheres começaram a conquistar seu espaço até formarem o Comitê de Donas de Casa, mulheres de mineiros, órgão de apoio à luta dos trabalhadores, ligado ao sindicato e à Central Operária Boliviana (COB).
No ano de 1967 (o mesmoem que Che Guevarafoi executado no solo boliviano), o então ditador René Barrientos ordenou que o Exército interviesse nas minasem greve. Omassacre aconteceu nas comunidades de Catavi e Lalagua, com o assassinato de dezenas de operários. Grávida, Domitila foi presa e torturada, tendo perdido o filho.
Mas foi na década de 70 que ela ficou conhecida mundialmente. Em 1975, representou os trabalhadores da Bolívia na Conferência Mundial das Mulheres, realizada no México, dentro da programação da ONU no Ano internacional da Mulher. Domitila não gostou muito do evento: “…Diziam que era um evento que ia representar camponesas, donas de casa, mulheres trabalhadores e pobres. Não foi assim. As mulheres presentes eram quase todas de formação acadêmica e completamente diferentes de nós, bolivianas, mineiras e donas de casa. Cumpri a tarefa de denunciar o que acontecia nas minas (o salário baixo, a superexploração), mas os organizadores e participantes da Conferência não estavam interessados em nossos problemas sociais”.1
Entretanto, foi essa conferência que proporcionou ao mundo o conhecimento da situação dos mineiros da Bolívia e transformou Domitila em sua referência. Não pela conferência, em si. É que Moema Viezer, uma educadora brasileira, se interessou pelo tema e por aquela brava mulher. Realizou uma série de entrevistas e publicou o livro Se me deixam falar – Testemunho de Domitila, uma mulher das minas da Bolívia, que foi traduzido em 14 idiomas e vendeu milhares de exemplares. Domitila passou a ser convidada para palestras em diversos países em continentes.
Cinco mulheres derrubam um general
Domitila não concebia a libertação da mulher desvinculada da libertação de todos os trabalhadores, e nisso se diferenciava do movimento feminista: “A nossa posição não é igual à das feministas. A nossa libertação consiste primeiramente em conseguir que o país seja liberado para sempre da opressão das grandes potências capitalistas e que possamos formar um governo da classe trabalhadora, incluindo nós, mulheres. Aí, então, as leis, a educação, tudo será feito de acordo com as necessidades do povo. Então, sim, vamos ter mais condições de chegar a uma liberação completa, também da nossa condição de mulheres”.
Em 1978, Domitila resolveu desafiar a ditadura de Hugo Banzer. Juntamente com quatro companheiras, iniciou uma greve de fomeem La Paz. Um padre aderiu, depois outras pessoas; com dez dias, eram 1.500. A mobilização foi tomando conta da cidade, do país, em diversas formas: passeatas, greves de fome, atos públicos, todos exigindo o fim da ditadura. Finalmente, o general Banzer caiu. Outros ditadores lhe sucederam e a redemocratização se deu no ano de 1982.
Breve linha do tempo
Habitada há 20 mil anos, a Bolívia abrigou grandes civilizações, sendo considerada mais importante a nação Tiahuenco. Fez parte do Império Inca. Vieram os Quéchua e os Aymara. No século 16, os espanhóis a dominaram e exploraram suas riquezas, enfrentando sempre revoltas indígenas até a independência conquistada na luta comandada por Simón Bolívar, de quem herdou o nome (1825). A colonização não conseguiu destruir os povos nativos, como no Brasil. Mais de 60% da população boliviana tem origem indígena.
Após a libertação, não se criou a Grande Pátria Latino-americana preconizada por Bolívar. Ao contrário, a Bolívia sofreu constantes agressões dos vizinhos, para quem perdeu três quartos do seu território. Em 1879, na guerra contra o Chile, ficou sem o acesso ao mar, e em 1903 perdeu o Acre para o Brasil.
Como os demais países da América Latina, a Bolívia se integrou ao capitalismo internacional de forma dependente e associada. Suas riquezas naturais continuaram sendo sugadas por empresas estrangeiras. Das minas, sob condições desumanas de trabalho, surgiu forte organização operária, base principal da Central Operária Boliviana (COB). Para manter o sistema, as classes dominantes precisaram implantar sucessivas ditaduras.
O fim da ditadura não se traduziu em mudança no modelo econômico. Ao contrário, a burguesia continuou governando cada vez mais atrelada ao imperialismo e seguindo o receituário do FMI. Na década de 90, vieram as privatizações e modernização das minas. Milhares de operários perderam o emprego, a poderosa COB se enfraqueceu.
A luta do povo, entretanto, não parou. O eixo é que se deslocou do movimento operário para o movimento indígena e dos pequenos camponeses (cocaleros). Estes constituíram a base do Movimento para o Socialismo (MAS), que elegeu em 2005 o primeiro presidente índio da história boliviana: Evo Morales Ayma.
O presidente eleito recebeu uma Bolívia nas seguintes condições: país mais pobre da América do Sul, com 60% dos seus 9 milhões de habitantes abaixo da linha da pobreza e 38% em extrema pobreza; desemprego de 12%, com 40% de subempregados; renda dos indígenas 40% inferior à dos não indígenas.
Morales nacionalizou as riquezas naturais, procedeu à revisão dos contratos com empresas estrangeiras, criou mecanismos de participação popular na gestão pública. Tem melhorado as condições de vida do povo e reafirmado a soberania do país, juntando-se à Associação Bolivariana, que envolve Bolívia, Cuba, Equador, Venezuela e Nicarágua (Alba).
Domitila sempre!
Domitila apoiava Morales, mas tinha reservas quanto ao caráter revolucionário do seu governo. Explicava: “O MAS é um movimento, não um partido com uma ideologia, um caminho definido. Eles dizem ‘vamos ao socialismo’, mas não dizem como será o caminho para o socialismo, como vamos chegar lá. Num movimento entra todo tipo de gente. Alguns integrantes do MAS estão agindo corretamente enquanto outros estão só se aproveitando. Mas o presidente [Morales] tem caráter forte, boa conduta e bons colaboradores. Nós, os poucos que sobrevivemos, estamos todos velhos. Precisamos formar novos quadros políticos, novos dirigentes dessa geração nova”.2
O presidente Evo Morales homenageou a heroína, concedendo-lhe post mortem o prêmio Condor dos Andes. Ela está entre aqueles seres humanos que não morrem jamais. Domitila morreu? Viva Domitila!
Notas
1 Entrevista concedida em setembro de 2010 à revista Caros Amigos; na ocasião, Domitila estava em tratamento médico num hospital de Havana.
2 Idem
José Levino, historiador