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sábado, 5 de outubro de 2024

Sobre sorrisos e sonhos – Crônica a Manoel Lisboa de Moura

Ditadura Militar no Brasil

Era bonito aquele sorriso. Por mais que houvesse olhado aquela fotografia zilhões de vezes, não conseguia acostumar-se com um sorriso tão bonito e se surpreendia sempre. Analisando friamente, não era um sorriso retilíneo, tampouco havia uma brancura exemplar. Havia mesmo pontos amarelados pelo cigarro. Mas era muito bonito, mesmo assim. Talvez fosse aquele jeito de sorrir com os olhos. E era amor. Sim, definitivamente aquele sorriso transparecia amor. Pela vida, pelos amigos, pelo futebol no domingo. Por Maria Lúcia, namoradinha de colégio e de faculdade. Amor pelo futuro. Era exatamente isso, conseguia enxergar naquele sorriso as suas fantásticas projeções para o futuro. Sempre havia pensado onde é que ele arrumava tanta criatividade para sonhar.

Dizia que no futuro não haveria meninos dormindo embaixo das marquises, nem vendendo chicletes nos sinais. Dizia que a gente ia poder descobrir que estava doente antes dos sintomas tomarem conta do corpo, através de exames moderníssimos, e que não seria apenas para os endinheirados, todos teriam acesso a essa tecnologia, porque assim seria com os trabalhadores na dianteira desse país. O sonho era tão bonito quanto aquele sorriso.

Chegara a sua vez. Guardou a foto na bolsa e caminhou em passos firmes. No caminho as lembranças iam surgindo como num filme. Os tempos de escola, a primeira namorada e o primeiro arranca-rabo com o pai por chegar a casa após a meia noite. Depois veio a faculdade, queria ser advogado, dizia que o problema eram os homens da lei, se o povo mudasse as leis e houvesse homens da lei a favor do povo, tudo se concertava, era questão de tempo. Sonhava bonito aquele sorriso. Um dia chegou alvoroçado.

— Mãe, eles rasgaram as leis – gritou do portão da rua abanando um jornal amassado.

— Eles quem menino? Deixa isso quieto, vamos almoçar! – Disse eu na minha ordem de prioridades. Primeiro todo mundo bem alimentado, depois a gente junta os pedaços dessa lei rasgada e dá um jeito de emendar.

Depois disso houve muita confusão. Nunca vi tanta cavalaria nas ruas, noite e dia. E onde houvesse passeata e protestos, lá estava a cavalaria e lá estava metido também aquele sorriso inconfundível e aqueles lindos sonhos. E o pai não brigava mais, porque todo dia chegava depois da meia noite em casa, sempre muito silencioso, no começo pensava que era para não acordar o pai, depois descobrimos que estava a se esconder dos mesmos homens que tinham rasgado as leis.

Até que um dia não apareceu mais. Os amigos não sabiam do paradeiro. Só tive notícias suas, meses depois. Maria Lúcia que trouxe. Disse que estava bem, que estava escondido porque os homens que rasgaram as leis queriam pegá-lo, e estavam vigiando a casa agora mesmo, e que mesmo Maria Lúcia corria risco sendo vista ali. Disse que me amava muitíssimo, que morria de saudades e pediu que continuasse a vida, porque logo chegava o futuro e levava todos esses rasgadores de leis e de sonhos para bem longe. E eu podia imaginar aquele sorriso em meio a todas essas palavras.

E alguns anos depois Maria Lúcia apareceu de novo. Não trazia boas notícias. Disse que houve choques elétricos, pau-de-arara, pauladas e pontapés. Disse que procuravam informações, nomes, endereços, queriam saber o que fazia e onde se escondiam aqueles sonhos todos. E por conta disso, não havia mais aquele sorriso que tanto amava, as sevícias tinham arrancado os dentes e a alegria. Mas o certo é que não houve informações. Não puderam encontrar os nomes que queriam, os endereços, não sabiam onde é que escondiam-se os sonhos. Também sabia ser duro aquele belo sorriso. Maria Lúcia chorava muito. Disse que jogaram o corpo no fundo do mar. Disse que isso não era coisa que se fizesse, que era covardia.

Enfim havia chegado o momento de depor na tal comissão da verdade. Era preciso contar tudo. Depor contra aqueles que mataram homens, sequestraram e torturaram sonhos, destruíram sorrisos. Sim, eram os mesmos rasgadores de leis. Nenhum detalhe ficou de fora, podia-se pegar o ar com a mão naquela sala de reunião. Homens e mulheres ouviam e anotavam. Era possível ver a indignação crescendo nos olhos daqueles homens e mulheres. O chefe da comissão pediu desculpas, em nome do Estado pelos bárbaros crimes cometidos, um jovem disse alto que era preciso punir os responsáveis pelas atrocidades, pois as leis, outrora rasgadas, estavam vigentes novamente e era preciso fazer valer nossos direitos. Houve um silencio constrangedor. Quem seria capaz de discordar? Esse mesmo jovem falou que naquele exato momento outros jovens estavam organizando manifestações e protestos em todo o país, exigindo a punição de torturadores e carrascos. E quem poderia ser contra a juventude, tão cheia de sorrisos?

Voltando para casa em um táxi, repassava mentalmente tudo o que tinha me ocorrido naquele dia. Essa memória misturava-se com o quarto arrumado igual como ele deixara, durante anos a fio, décadas. Retirei a foto da bolsa, queria olhar uma vez mais aquele sorriso bonito carregado de esperança nesse tal futuro que ele tanto falava. E apesar do amarelo e da data impressa no canto da foto, percebi que sorrisos não envelhecem. Sonhos também não.

A Manoel Lisboa de Moura (In Memorian)
José Lucas

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