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domingo, 22 de dezembro de 2024

Capoeira e libertação

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“Capoeira é luta de bailarinos. É dança de gladiadores. É duelo de camaradas. É jogo, é bailado, é disputa – simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade. Única em que os movimentos são comandados pela música e pelo canto. A submissão da força ao ritmo. Da violência à melodia. A sublimação dos antagonismos. Na capoeira, os contendores não são adversários, são camaradas. Não lutam, fingem lutar. O capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta.” (Dias Gomes, dramaturgo nascido em Salvador)

A origem da capoeira é controversa. Pode ter surgido no meio rural, sendo sua denominação derivada do tupi-guarani, ao se referir à vegetação de mato rasteiro, comum no interior do Brasil. Os escravos que conseguiam fugir corriam em direção às matas e, muitas vezes, eram alcançados pelos capitães do mato (feitores) ainda nos arredores das fazendas, ou seja, nas capoeiras, onde se davam brigas de morte.

Dentro das próprias fazendas, à noite, após longas e extenuantes jornadas de trabalho, os escravos praticavam a capoeira mascarada de dança, pois ali o que predominava era o ritmo das cantigas e ladainhas ao som dos atabaques, com uma grande presença de rituais religiosos.

Outra explicação dá conta de seu surgimento no meio urbano (especialmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro), fazendo referência aos grandes cestos (capoeiras) que muitos escravos e ex-escravos carregavam na cabeça, transportando mercadorias diversas entre a região do porto e do mercado ou entre o mercado e as residências de seus patrões.

Esta linha de raciocínio é defendida pelo antropólogo carioca Carlos Eugênio Líbano Soares, especialista em História da escravidão africana no Brasil. Para ele, a capoeira nasceu em solo brasileiro entre “os filhos dos escravos negros trazidos da África”, ainda no século 18, resultado de uma síntese de elementos africanos associados às condições específicas da escravidão no Brasil. Em suas palavras, a capoeira nasce como “expressão da resistência escrava”.

Passando ao Rio de Janeiro do início do século 19, a capoeira já se encontrava disseminada pelos quatro cantos da Capital do Império e não era mais apenas uma forma de resistência: convertera-se também em centro de identidade cultural e atitude política.

Vários grupos se constituíram e posteriormente se fundiram, aglutinando-se em dois grandes “bandos”, chamados de maltas, cada qual com sua própria indumentária, cor, códigos e território: os nagoas (de matriz africana mais pura) e os guaiamus (que reunia negros nascidos no Brasil e mestiços).

A quantidade de membros das maltas e sua atuação na cidade cresciam. Com a Guerra do Paraguai (1865-1870), muitos capoeiristas foram enviados à força para as frentes de batalha, retornando como patriotas ou mesmo heróis de guerra.

Investidos, até certo ponto, de um novo status social, e contando com a divisão das classes abastadas entre republicamos e monarquistas, as maltas passaram a ser uma força política dentro da sociedade imperial, atuando em aliança com o Partido Conservador.

Tal situação estranha se explica pelo fato de que os republicanos rechaçavam por completo qualquer negociação com as maltas, enquanto que a própria Monarquia “concedera” aos negros uma série de benefícios, que culminaram com a Abolição da Escravatura (oficial, mas não real) por parte da Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888.

Ainda durante o Império, a capoeira sofrera forte repressão policial, sendo considerada contravenção. As penas por praticá-la variavam de algumas noites na prisão até 200 chibatadas. Mas foi com a instalação da República, em 1889, que se processou uma verdadeira campanha de combate à capoeira. Em outubro de 1890, o marechal-presidente Deodoro da Fonseca promulga a Lei nº 487, que prevê a deportação e prisão, de dois a seis meses, com trabalhos forçados na Ilha de Fernando de Noronha. No art. 402 da Lei (“Dos vadios capoeiras”), lê-se:

Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correria, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal.

As maltas foram, assim, desmanteladas pela repressão, e só em 1930, com as medidas populistas do então presidente Getúlio Vargas, uma série de manifestações populares foi liberada, entre elas a capoeira.

Segundo o historiador baiano Cid Teixeira, “a culinária, a vestimenta, a religião e a capoeira consistiam em elementos de resistência contra a dominação do senhor, do branco, do europeu. A capoeira era ainda ‘coisa de negro’, e nomes como o do capoeirista Besouro Mangangá, também conhecido como Cordão de Ouro, ficaram gravados na história dos negros baianos contra a repressão policial”.

No caso da Bahia, com a criminalização da luta, o Mercado do Ouro, na região do Porto de Salvador, transformou-se no quartel-general dos capoeiristas, pois estes eram, em sua maioria, estivadores. É daí que surge, nos anos de 1930, a figura de Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba (1900-1974).

Até então, praticava-se nas rodas de capoeira o que hoje chamamos de Capoeira Angola. Para evitar a repressão policial, a luta estava permanentemente camuflada de dança, valendo-se, sobretudo, de movimentos no chão e de “passos a dois”. O maior referencial deste estilo é o Mestre Pastinha (1889-1981).

Para Mestre Bimba, no entanto, a essência da capoeira como luta estava se perdendo, devido aos longos anos de cerceamento. Mesmo que agora descriminalizada, a capoeira continuava marginalizada em guetos. Era, portanto, preciso renová-la para que ela sobrevivesse e se fortalecesse.

Pelas mãos de Bimba a capoeira se transforma, ganhando uma essência pedagógica e elevando-se à condição de educação física. O mestre agora é também um educador.

Buscando profissionalizar a capoeira, ao mesmo tempo em que a mantinha com certo caráter sigiloso para despistar a Polícia, os treinos e as rodas foram levados para dentro de espaços fechados, verdadeiras academias, como o Centro de Cultura Física Regional da Bahia, fundado por Bimba.

Assim nascia um novo estilo, a Capoeira Regional¸ jogado, sobretudo, em pé, dotado de maior velocidade nos movimentos e de uma musicalidade mais agitada em relação à Capoeira Angola.

Já com fama de grande mestre e lutador, Bimba instala sua academia ao lado da Faculdade de Medicina, no Pelourinho (a única do Nordeste). Passa então a contar em seu grupo com alunos brancos, inclusive filhos da elite nordestina que recorriam à faculdade para estudar, fato que influenciou sua formação intelectual.

Assim, a Capoeira Regional passou a se expandir para fora da capital, Salvador, e, junto com ela, seus ensinamentos: “A essência da capoeira é a liberdade. Ela te dá a liberdade de fazer o que quiser dentro do ritmo”; “Capoeira não é pra atacar, é pra se defender. Mas é pra se defender pra valer”; “Deixe de beber e de fumar”; “Evite demonstrar aos seus amigos fora dos treinos o seu progresso na luta, pois a surpresa é a maior arma desta arte”.

Aliás, o fator surpresa, a abertura para o momento, o instante, a improvisação, a espontaneidade, o jogo dissimulado, o ritmo, em resumo, a malícia (palavra-chave para a compreensão do universo da capoeira), têm a ver com a própria vida do negro nas condições da escravidão.

Foi pela capoeira que muitos negros conseguiram romper os grilhões dos senhores e feitores e, a essa altura, era pela capoeira que os negros buscavam se afirmar em meio a uma sociedade completamente centralizada no poder do capital e do latifúndio.

A capoeira hoje

Em 1996, a Universidade Federal da Bahia conferiu a Mestre Bimba o título de doutor honoris causa. Ele não pôde recebê-lo em vida, pois morrera em 1974, em Goiânia. O fato é que, a partir de então, esta expressão popular – que une luta, música e dança – passou a ser reconhecida formalmente em seu caráter técnico, científico, educacional.

Hoje consolidada como modalidade esportiva e arte marcial genuinamente brasileira, estima-se que a capoeira é praticada por mais de cinco milhões de pessoas no Brasil e em outros 150 países. Há grupos que praticam exclusivamente a Capoeira Angola, mas muitos grupos de Capoeira Regional também disseminam o jogo, os toques e a tradição angoleira.

O mais importante é o fato de que a capoeira continua servindo de referência para a cultura afro-brasileira e para a valorização do elemento negro na constituição do nosso povo.

Também representa uma grande alternativa para crianças e jovens das periferias deste Brasil. Diante de uma sociedade tão cruel com os pobres, tão segregadora como aquela dos tempos da escravidão, é possível, através desta arte, aprender os valores da disciplina, do respeito ao próximo, do estudo, da paciência. Aprender, sobretudo, a absorver o espírito de luta dos escravos, muitos dos quais pagaram com suas próprias vidas pela libertação, de toda uma raça, do jugo dos senhores e latifundiários.

Rafael Freire é presidente do Sindicato dos Jornalistas da Paraíba

A música é um componente fundamental da capoeira. O toque do berimbau é o que determina o ritmo e o estilo do jogo desenvolvido na roda, podendo variar de um ritmo bem lento a outro bastante acelerado. Esse instrumento – um dos símbolos da capoeira – é fabricado apenas com um pedaço de pau (geralmente de biriba – daí vem seu nome), um arame e uma cabaça.

As letras das músicas também são bastante valorizadas. Algumas falam sobre capoeiristas famosos, outras sobre o cotidiano do capoeira, do negro, do povo pobre, da Nação. A música, o toque, é, na verdade, que dita o ritmo do jogo na roda.
Recentemente, o consagrado compositor de MPB Paulo César Pinheiro voltou às suas origens com a obra-prima Capoeira de Besouro e venceu o Prêmio da Música Brasileira 2011 na categoria Álbum Regional. Cada faixa do CD é dedicada a um toque diferente da capoeira, tanto na sonoridade quanto nas letras.

Para ouvir o disco na íntegra, basta acessar a Rádio UOL. Para assistir, em vídeo, a uma parte fundamental da história da capoeira, busque no YouTube o documentário Mestre Bimba, a capoeira iluminada, de Luiz Fernando Goulart.

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