Desde que pisou pela primeira vez o território brasileiro, o negro tem sido um resistente. Inicialmente, como escravizado vindo de diversas partes da África, a organização de fugas e o aquilombamento foram as principais formas de tentar obter a liberdade retirada por algozes, até aquele período desconhecidos, como mercadores e compradores de escravos.
Apesar de o escravismo ter sido a relação social marcante durante três séculos, desde meados do século 18 o Brasil já não estava mais dividido apenas em um punhado de senhores brancos e uma multidão de escravos negros. A mestiçagem sempre foi uma realidade, embora não eliminasse o racismo, a violência e as desigualdades sociais. Tanto que, no começo do século 19, calcula-se que um terço da população nacional era composta pelos chamados pardos livres. Muitos negros haviam conquistado alforria e seus descendentes imediatos atuavam nos diversos trabalhos artesanais, nas irmandades religiosas, em milícias e alguns poucos até integravam as elites culturais e políticas, como José do Patrocínio (1854-1905) e Luís Gama (1830-1882)[i] Os homens e mulheres escravizados sofreram muito e enfrentaram desafios duros, mas não foram apenas vítimas. Como agentes históricos, participavam e interferiam, dentro de suas possibilidades, nos rumos da sociedade e em seus próprios destinos. “Vale chamar atenção para um ponto: a Abolição, oficializada pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888, não se realizou apenas ‘por cima’, isto é, pela iniciativa das elites parlamentares, de abolicionistas ilustres, dos proprietários ‘esclarecidos’ e da Coroa Imperial. De fato, um longo e penoso processo de embates ocorreu, do qual participaram, principalmente, os cativos. De forma direta ou indireta, as ações individuais ou coletivas dos escravos ajudaram a minar o sistema escravista, por meio de pequenos e grandes quilombos, de fugas coletivas ou individuais, cometendo violências contra a violência opressora, enfim, com variadas atitudes de resistência”[ii].
Nesse contexto de luta e de indignação acerca do sistema escravista, surge Carukango, trazido de Moçambique para o Brasil – mais especificamente, para Macaé.
A Resistência em Macaé
Quando em 1817, Saint Hilaire passou por Macaé, havia poucos anos que o local tinha sido erigido em vila. A criação da vila ocorreu em 1813 e no ano seguinte a Câmara iniciou seus trabalhos de ordenamento urbano e social. Assim, o que o naturalista viu ao passar pela região foi o início de um processo de consolidação espacial e de poder comandado pela elite local. Segundo seus relatos, “naqueles anos iniciais do século 19, a principal atividade econômica da vila era o comércio de madeiras. Tanto os ricos como os médios e pequenos proprietários de terras e homens se dedicaram a esta exploração. Havia também outros produtos na região, vinte engenhos de açúcar que existiam entre o sítio do Paulista e o porto de São João da Barra. Além destes engenhos, alguns fazendeiros estavam também iniciando o cultivo de café. Outros, ainda, plantavam milho, algodão, arroz e mandioca”[iii].
Em todas estas atividades, bem como nos serviços urbanos e domésticos, a mão de obra cativa era essencial. Todavia, para manter o controle sobre este elevado contingente era preciso ordená-lo. Para isto, a Câmara, em 1814, criou o cargo de Capitão do Mato para tentar coibir o número de escravos fugitivos que viviam pelos matos da região[iv].
Para períodos posteriores, através das informações remetidas ao Presidente de Província pelo administrador da Mesa de Renda do Município, em 21 de novembro de 1877, sabe-se que Macaé possuía um total de 11.599 escravos matriculados desde o ano de 1872 até o de 1876[v].
Como não poderia deixar de ser, e também de modo similar a outras searas, a região de Macaé, repleta de escravos, conviveu durante todo o século 19 com inúmeros quilombos e quilombolas. Os quilombos poderiam ser formados por centenas de pessoas, ou por apenas três ou quatro indivíduos. Normalmente surgiam em momentos de desacordos nas relações cotidianas entre escravos e senhores e seus capatazes, ou em épocas de crise política aguda, em função de uma desorganização maior.
A fuga e instalação do negro no quilombo colocava em xeque a sociedade patriarcal, além de resgatar, mesmo que momentaneamente (até nova recaptura possível), a condição de ser humano aviltado pela condição de mercadoria. A evasão de escravos, é claro, gerava prejuízos ao proprietário, ao Estado, à Coroa, que passaram a investir na manutenção da ordem, recaptura e castigos exemplares aos reintegrados à condição de cativos.
A fuga, então, era uma das formas de negação da sociedade opressora que anulava os seres humanos eliminando a possibilidade de usar suas línguas, religiões e estilos de vida. Dessa forma, a criação de quilombos fez parte da sociedade escravista. Onde havia uma, necessariamente surgiria a outra organização.
Ainda que fossem formados basicamente por escravos fugidos, tal não significa que outros grupos da população também não recorressem a eles quando sentiam necessidade de proteção e esconderijo. Tudo leva a crer que, em quilombos menores, a população seria predominantemente de escravos fugidos. Já nos maiores haveria a presença de elementos étnicos diferentes. Esta diferenciação poderia ser explicada, relacionando-a às condições econômicas do grupo. “Somente um grupo estável, com organização social, política e econômica forte, poderia permitir outros elementos em seu interior”[vi].
Tal estrutura, contudo, entrava em choque sempre que o quilombo se tornava perigoso para a população ou quando constituía um empecilho ao aumento da fronteira agrícola. As florestas, os índios e os quilombolas eram problemáticos à expansão da fronteira, porque quase sempre eram considerados hostis à população. Logo, o seu extermínio tornava-se condição essencial para a possibilidade do estabelecimento de novas áreas cultiváveis. “Os quilombolas, ao penetrarem nas matas e criarem as condições propícias ao desenvolvimento da agricultura, desencadeavam a cobiça por novas terras que, graças a eles, tornavam-se aptas à exploração. E então, os fazendeiros passavam a ter interesses cada vez maiores no extermínio do quilombo e, para isso, lançavam mão dos mais variados mecanismos para auxiliar as autoridades locais: colocavam seus escravos à disposição dos chefes das tropas; forneciam alimentos e estadias; participavam dos grupos de perseguição, havendo casos, inclusive, de fazendeiros que utilizaram espiões colocando-os no interior dos quilombos com o objetivo de conhecer suas fraquezas e o melhor meio para serem atacados”[vii].
O Quilombo de Carukango
Carukango seria um escravo proveniente de Moçambique[viii]. Fugira de seu senhor, o português Antônio Pinto, em uma noite, formando, juntamente com outros escravos da localidade, um quilombo numeroso. Na fuga, roubaram o que puderam da fazenda, principalmente ferramentas e alimentos. A área de atuação dos quilombolas era a divisa de Macaé com os atuais municípios de Trajano de Morais e Conceição de Macacu. Provavelmente, o quilombo ficava estabelecido na Serra do Deitado, no distrito de Crubixais.
Junto com um grupo crescente de fugitivos, Carukango percorria à noite as fazendas da região insuflando os escravos a se evadirem também. Numa destas incursões, ao invadir a fazenda de seu ex-senhor, matou-o. Depois, tentou assassinar um outro fazendeiro, Chico Pinto, irmão do assassinado, que vivia há muitos anos com uma mulata de nome Josepha. Ao ter sua casa atacada pelo grupo, Chico Pinto conseguiu dar um tiro no braço de Carukango, mas, por via das dúvidas, resolveu, no dia seguinte, deixar a casa de tapera e buscar proteção na cidade.
O medo do crescente poder de Carukango determinou que as autoridades proporcionassem condições ao coronel Antão de Vasconcelos, que era chefe do Distrito Militar da Capitania do Espírito Santo, para organizar uma expedição contra o quilombo. Essa expedição contava não só com soldados, mas também com grande número de moradores da região, inclusive da família do senhor assassinado.
O grupo conseguiu prender um negro que fazia parte do bando de Carukango e, por meio dele, localizou o quilombo. É Lamego quem o descreve: “Um chapadão a perder de vista era a sede do Quilombo e se achava coberto, em grande parte, de muitas roças de milho, feijão e outros cultivos. Tudo oculto pela mata virgem circundante. No centro havia uma casa apoiada nos fundos por três grandes pedras. Como se sabia que no quilombo existiam cerca de duzentos escravos foragidos, não era possível a tão pequena habitação abrigar tanta gente. Havia certamente algum mistério a ser desvendado”[ix].
Depois da troca de tiros, o grosso da população quilombola teria surgido do interior da casa, da floresta e de trás das pedras. Mas, mesmo assim, as tropas teriam conseguido dizimar a maioria. Uns poucos fugiram e o restante teria ficado em poder dos soldados. Carukango estava liderando o grupo que se entregara à polícia. Saiu “vestido com hábito sacerdotal, trazendo ao peito um rico crucifixo de ouro, ante o qual todos se descobriram e abaixaram as armas”[x].
Chegando à frente do filho do seu ex-senhor, assassinado por ele próprio, retirou do interior do hábito uma pistola e desferiu-lhe dois tiros mortais. Logo, a população que ali estava e as autoridades mataram-no com golpes de foice, cortaram sua cabeça, colocando-a à beira da estrada para que servisse de exemplo aos demais escravos da região.
Pode-se perceber que Carukango não é um simples bandido, como afirma Vasconcelos. Ele é um líder respeitado porque proclama uma justiça para seus companheiros mediante a fuga. Esta era encarada pelos escravos que o seguiam como um mecanismo para a liberdade que Carukango afirmava ser possível. Por isso, os negros das senzalas ajudavam-no a fugir todo o tempo de seus perseguidores. Além disso, ele é um líder que os escravos em dificuldades procuravam a fim de resolver seus problemas.
Foram encontradas “roças de milho, feijão e outros cultivos” no quilombo. Havia, pois, uma relativa independência da população quilombola no tocante à alimentação, o que era de muita valia para a manutenção de uma comunidade com tal porte. Esta “independência” dos quilombolas aponta para o fato de que Carukango não queria ficar escondido como os outros líderes (até mesmo os localizados em sua área). Ele poderia, graças à estrutura montada, sobreviver com seu povo. Contudo, Carukango preferia o ataque, preferia mostrar-se e auxiliar a outros escravos.
Carukango foi homenageado com o nome de um rio e de uma serra, no município de Conceição de Macabu, a fim de que sua luta e coragem estejam sempre vivas em nossas memórias.
Diogo Belloni, militante da UJR
[i] Luís Gama foi jornalista e escritor. Filho de uma cativa com seu senhor,foi alforriado ainda criança. Publicou livros, manifestos; redigiu e dirigiu importantes jornais engajados na luta contra o escravismo, além de ter criado entidades e participado de ações diretas para libertar escravizados.
²BARBOSA, P. Almanaque histórico: João Cândido: a luta pelos direitos humanos. Brasília: Abravídeo, 2008.
³SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
4ARQUIVO NACIONAL (Brasil), 1814-1828, Livro da Câmara Municipal de Macaé.
5ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1877, Mesa de Renda do Município de Macaé.
6AMANTINO, M. O mundo dos fugitivos: Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. 1996.
7AMANTINO, M. Banditismo social e quilombolas no Rio de Janeiro, século XIX. In: Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Rio de Janeiro, UFRJ, v.1, n. 1, p. 21-33, 1995.
8O tráfico na região Leste da África incrementou-se a partir de 1815, em função do aumento das pressões inglesas para proibir o tráfico ao Norte do Equador (tratados comerciais da Inglaterra com Portugal de 1815 e 1817). Em 1812, os portugueses instalaram uma feitoria em Quelimane e os traficantes de Cuba e do Brasil puderam comprar escravos diretamente. Em 1813 eram 8.000, em 1820 subiram para 19.000. Em 1828, 34.500, e em 1829, 30.400. Depois de 1830, os escravos de Moçambique constituíram um dos maiores grupos no Rio de Janeiro.
9LAMEGO, A. Macaé à luz de documentos inéditos. In: Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n.11, p. 97, 1958.
10VASCONCELOS, A. Evocações: crimes célebres em Macaé. Rio de Janeiro: B. Aguilla Edt., 1911.
Há atualizações importantes sobre o tema. O trabalho é bom, mas algumas informações foram acrescentadas, resultado de pesquisas posteriores a 2008.