Sílvio Tendler: “O sonho não acabou”

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Sílvio TendlerA Verdade entrevistou em janeiro um dos maiores cineastas brasileiros: Sílvio Tendler. Tendler dirigiu e participou de dezenas de filmes (Jango, Os anos JK, Milton Santos, A era das utopias, Josué de Castro etc.) todos essenciais para quem quer conhecer e entender o Brasil. Alegre, brincalhão, solidário com as lutas sociais, ele conta nesta entrevista, com entusiasmo, sua luta para construir uma sociedade melhor e a justiça social, e conclama todas as pessoas conscientes a continuarem, sonhando com o socialismo: “O sonho não acabou. A vontade de mudar o mundo não acabou. Aquele socialismo com que sonhamos no século 20 foi derrotado, infelizmente. Nós reconstruiremos o nosso mundo a partir dessas pequenas derrotas. A nossa luta continua”. 

A Verdade – Qual a história de Silvio Tendler?

Sílvio Tendler – Venho de uma família de judeus liberais. Meus pais são imigrantes. Meu pai nasceu na União Soviética, veio para o Brasil com oito anos de idade. Minha mãe nasceu no Brasil, mas de família de imigrantes. Eles tinham uma consciência liberal. Minha mãe era médica, meu pai advogado, eles sempre votaram à esquerda, no Juscelino Kubitschek. Sempre votaram contra a direita udenista. Dentro de casa, dentro do próprio leite materno, fui cevado num ambiente liberal, não esquerdista. Tem uma história que nunca contei, que é impressionate. Quando fiz 14 anos, no dia 12 de março de 1964, no dia seguinte seria realizado o comício da Central do Brasil, numa sexta-feira. No meu aniversário fiz uma festa ao som dos Beatles. Nesse dia, a minha surpresa foi ver nas janelas das casas e nos apartamentos, em Copacabana, um pano preto e uma vela. Foi aí que comecei a entender onde morava. Comecei a perceber que meus amiguinhos de infância vinham de famílias lacerdistas.

Lá em casa nós comemorávamos um governo que propunha transformações políticas. Meus pais apoiavam o comício da Central do Brasil, eram simpáticos ao governo do Jango. Em 1961, quando houve a renúncia do Jânio, meu pai escutava na rádio a resistência do Brizola (Movimento da Legalidade, liderado por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul). No dia 31 de março, recebemos as primeiras notícias de que um regimento havia se levantado em Juiz de Fora, comandado pelo general Mourão Filho. Havia uma conspiração muito grande para derrubar o presidente João Goulart, e o grupo que estava à frente dessa articulação era comandado e liderado pelo general Castelo Branco, que era da Escola Superior de Guerra. Adesões ao golpe começaram a acontecer no dia 1º de abril. Jango fica no palácio Guanabara até a tarde, depois se dirige a Brasília e, à noite, vai para o Rio Grande do Sul se juntar ao governador Leonel Brizola e ao general Ladário Teles, comandante do  III Exército, para tentar organizar a resistência. O golpe de Estado é sacramentado pelo presidente do Congresso Nacional, Áureo de Moura Andrade, que havia declarado a vacância do poder da Presidência da República, quando o Jango ainda se encontrava em território nacional.

Copacabana era um bastião lacerdista onde as pessoas comemoravam, gritavam e acenavam a bandeira nacional e, ao me dirigir ao prédio onde morava, nesse mesmo bairro, percebi que os porteiros estavam de cabeça baixa, com o rádio de pilha no ouvido, extremamente tristes. As mesmas pessoas que haviam colocado pano preto na janelas no dia 13 de março, dia do comício na Central do Brasil, no dia 1º de abril de 1964 colocaram lençóis para comemorar o golpe de Estado. Nesse momento senti necessidade de me politizar mais. O jornal Correio da Manhã tentou resistir ao golpe e não demorou para ser fechado. Percebi que os que conseguiram resistir ao golpe militar, de forma mais efetiva, foram os artistas, os jornalistas. O teatro Opinião, em Copacabana, o bar Zicartola, no Centro. O Rio de Janeiro começou a resistir ao golpe militar a partir da ação política e cultural de jornalistas, artistas, escritores e músicos. Comecei a perceber que pelo caminho da arte poderia fazer alguma coisa. Vislumbrei a possibilidade de ser cineasta. A resistência mais importante que havia no mundo naquele momento eram os filmes artísticos culturais. O Jean-Luc Godard, na França, o Glauber Rocha, no Brasil, o Paulo César Saraceni – com o primeiro filme de oposição, O Desafio, em 1965. Então, comecei a compreender que o cinema era importante como uma arma de ação política.

Seus filmes retratam períodos importantes da nossa história, a exemplo de Jango, JK, Marighela. Podemos considerar que esses filmes têm como finalidade a reflexão do Brasil para alimentar e desenvolver a consciência política do povo? 

Claro que sim. Acho que o cinema é um instrumento de ação política. Não que ele tenha que se dedicar exclusivamente à política, mas não vejo porque a política tenha que ser excluída do cinema.  Não vejo por que considerar que filme bom tem que ser só comédia ou romântico. O cinema tem que atender a todos os gêneros e gostos. Você tem o direito de se informar sobre a história de seu país, o direito de dizer que deseja ver a sua luta cotidiana refletida no cinema. Os meus filmes servem para isso, sou cineasta assumidamente político. Realizo outros tipos de filmes, mas a minha obra é 98% política, tenho muito orgulho disso. Essas obras não foram construídas no processo de “redemocratização”. São obras que foram feitas durante a ditadura militar, incluindo o período do AI-5. O filme sobre JK foi realizado em 1976. Jango foi lançado no governo do general Figueiredo. Nesse período, o Congresso foi fechado, os deputados cassados.  No período da realização do filme Jango ocorreu o atentado do Riocentro. Eles foram feitos em pleno processo autoritário. Naquele período, esses filmes diziam: no Brasil não há democracia e nós temos que reconstruí-la. Um dia, no Brasil, se lutou por justiça social e vamos voltar a lutar por ela. O primeiro filme sobre Marighela, eu realizei na década de 1990; ninguém na época teve essa coragem. O mais subversivo dos meus filmes foi sobre o Milton Santos, por ser atual a sua análise e sua crítica sobre a globalização, num momento em que essa política triunfava. Muitos acreditavam que a dita globalização iria inserir todas as pessoas numa sociedade mais justa. A tarefa do cinema não é apenas ser político, mas, sobretudo, se antecipar ao seu tempo.

Como cineasta, de que forma analisa o atual cinema brasileiro e a concentração das salas de exibição nas mãos de alguns poucos grupos? Por que sempre os filmes norte-americanos são os primeiros em bilheteria?

Existe um erro absurdo de política de Estado. Existem leis que permitem que as grandes distribuidoras coloquem parte do seu imposto de renda na produção de filmes. Essas distribuidoras são estrangeiras. Elas só fazem um modelo de cinema que reproduz aquilo que foi feito nos EUA há trinta anos atrás.  As comédias brasileiras que fazem sucesso são remake desses filmes. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) e nenhuma dessas agências – ANS, ANP, entre outras – não investem no setor em que trabalham, apenas ficalizam. A Ancine criou um fundo setorial audivisual, em que ela fiscaliza as atividades, autoriza a captação de recursos e  produz. Esse modelo de produção não é discutido com a sociedade. Eles não contabilizam, por exemplo, que 99% dos filmes produzidos no Brasil são feitos com recursos públicos. Eles só contabilizam através do bilhete eletrônico, oriundos das salas de cinema. Eles não contabilizam a quantidade de vezes que vocês do Centro Cultural Manoel Lisboa (CCML) utilizaram os meus filmes gratuitamente, para passar nos cursos de formação de quadros, de capacitação nas salas de aula, nas lajes das favelas, no Cineclube – é uma falta de política deles. Está na hora de todo o público do cinema brasileiro ser contabilizado – eles que se virem para arranjar o critério! –, tanto nas salas de cinema quanto nas salas alternativas.

Agora a censura é do chamado mercado?

A censura é econômica, não é apenas a do mercado. O mercado existe e está aí. Se você quiser ir a uma sala de shopping assistir a uma comédia para rir, você tem todo o direito, esse filme tem que ser produzido. Se quiser assistir a um filme político para depois discutir com os seus companheiros a realidade brasileira, você também tem esse direito. Essas políticas públicas de capacitação de reursos levam a concentração de investimento nesses filmes chamados “blockbuster”, porque são só blockbuster pelo modelo de avaliação de contabilizar público, não da realidade do público que assiste filmes, num todo. Se você entrar no Youtube e verificar o número de acessos ao meu filme O veneno está na mesa, que denuncia o agrotóxico na nossa alimentação e que custou R$ 50 mil, só no Youtube foram mais de 130 mil acessos. Nós temos que ampliar o espectro do que é o público de cinema. O público de cinema está nas salas de aula, nas lajes, nas formações de quadros. Quando os meninos da laje pedem autorização para passar os meus filmes, quando pedem, porque muitos usam cópias piratas, isso é uma realidade – seria doloroso para os ianques, que logo gritam que estão roubando o seu dinheiro, seus ingressos. E eu já digo o seguinte: cada menino que assistir a um filme meu eu respondo: obrigado por assistir aos meus filmes. Faço cinema para ser visto e não para ser rico. Quem quer dinheiro e ser rico é o imperialista. Quero discutir o Brasil, quero discutir o mundo. Estou vivo, sou feliz. Saí de uma doença de que quase morro, no ano passado, e hoje estou aqui conversando com você, empolgado, gritando, porque é isso que move a minha vida.

Em seu filme Era das utopias você retrata a utopia socialista no século 20. Como vê o mundo hoje mergulhado em uma grave crise econômica, com intervenções militares do imperialismo em vários países, o desemprego e a pobreza aumentando? A utopia socialista continua no século 21?

Nenhum de nós vai arrefecer o entusiasmo de continuar lutando. O sonho não acabou. A vontade de mudar o mundo não acabou.  Aquele socialismo que sonhamos no século 20 foi derrotado, infelizmente. Nós reconstruiremos o nosso mundo a partir dessas pequenas derrotas. A nossa luta continua.

A Verdade – Você foi recentemente intimado a comparecer a uma delegacia devido a um processo movido pelo presidente do Clube Militar. No dia do seu depoimento, vários setores da sociedade estiveram presentes, na porta da delegacia, para demonstrar solidariedade a você. Qual a sua opinião sobre essa intimação? O aparelho de repressão continua servindo aos que não querem uma verdadeira democracia no Brasil?

Sílvio Tendler – Minha opinião sobre essa intimação se resume a uma única palavra: ridícula. Em primeiro lugar, quero agradecer aos companheiros que estavam na porta, o que muito me emocionou, me tirou de uma absoluta solidão. Chegar acompanhado com uma enfermeira, mulher e advogado, numa delegacia de polícia, é constrangedor. A outra coisa é você chegar com inúmeras pessoas aguardando você na porta da delegacia, gritando palavras de solidariedade a você. Aquilo ali me deu outro impulso. Entrei na sala com a minha companheira, o médico, a advogada e a enfermeira, junto com dr. Modesto da Silveira, um dos maiores defensores de presos políticos do Brasil, o advogado da ABI, dr. Marcos Vinícius, da OAB, dr. Mário Augusto Jakobskind, presidente do Sindicato dos Jornalistas, e o Continentino Porto. Os companheiros do PCR (Partido Comunista Revolucionário) estavam lá, meus vizinhos de porta, que coisa linda. Estávamos todos juntos. Quem estava solitário era o delegado, que deve ter se sentido intimidado. Tanto que entrei como indiciado e saí como testemunha. Falei para o delegado que, num dia do mês de dezembro, acordei e não me mexia. Em fevereiro, fiz uma cirurgia na medula da qual tinha 20% de chance de sair vivo. As minhas mãos não se mexiam, eu não andava, não fazia nada. Como poderia estar, no dia 24 de março, na porta do Clube Militar, jogando tinta, como afirma o ridículo presidente do Clube Militar? Estaria, sim, se estivesse bom, porque aquele ato dos militares em comemoração ao golpe militar foi um desacato à determinação da presidenta da República de que não se comemorasse o olpe de 1964. Esquecem eles que são todos da reserva remunerada, eles continuam devendo obediência à presidenta da República. Eles desacataram uma ordem da presidenta. Vou com isso adiante. Continuam me ameaçando e tentando me intimidar. O Brilhante Ustra põe fotos e nomes no site dele para dizer que sabe em que e onde a pessoa trabalha, além de colocar e dizer: essa foto é da filhinha dele.  Isso, sim, é constrangimento e intimidação. Porém, o nosso movimento foi tão bonito e expressivo, que foi um tiro no pé deles. Além de tudo, esses milicos são ruins de pontaria.

Em um dos seus relatos você descreve a sua consciência aos 14 anos, ano do golpe militar.  Qual a sua opinião sobre o golpe militar e o período da ditadura militar no Brasil?

Um golpe de classe. Nós todos cometemos o equívoco de chamar de golpe militar, mas, na verdade, foi um golpe da burguesia, das oligarquias. Na realidade os militares foram insuflados pelos políticos burgueses, que atendiam aos interesses da burguesia. Pois foram eleitos pelos partidos de direita e financiados pelos grandes industriais. A Operação Bandeirante (Oban) foi uma invenção de um governador da ditadura, Abreu Sodré. O DOI-Codi foi criado e financiado com dinheiro dos grandes empresários. Isso significa que toda a repressão política e toda a ação política do golpe militar eram de interesse da burguesia. Acho que o primeiro filme que fala sobre isso claramente, de empresas que financiaram os militares a combater os militantes da luta armada, foi do cineasta Chaim Litewsk, com o filme Cidadão Boilesen. Esse período da ditadura foi tão sórdido, que eles deram o golpe militar em defesa da Constituição. O pretexto que utilizaram foi que o governo João Goulart queria fazer a Reforma Agrária. A primeira coisa que eles fizeram foi rasgar a Constituição e criar os atos institucionais. Cassaram mandatos, fecharam o Congresso, fecharam os sindicatos, a UNE, e cassaram mais de quinhentos oficiais das Forças Armadas. Eles romperam com a legalidade Constitucional e instauraram uma ditadura em nome da democracia.

Qual a sua expectativa em relação à Comissão da Verdade?

Minha expectativa com a Comissão da Verdade é a de recompor a verdade. O Brasil é um país muito complexo. Existem muitas restrições na atuação da própria Comissão da Verdade, que vai ter de driblar a má vontade dos militares para ter acesso aos documentos. Mas, com jeito e tato, ela vai conseguir, porque seus membros são pessoas muito tenazes, talentosas e competentes, e vão conseguir recompor a verdade. Mas, para que de fato essa missão seja possível, será preciso que a sociedade civil os apoie nessa empreitada. Porque os filhotes da ditadura permanecem vivos, em ação. São os mesmos que ainda financiam o processo eleitoral no Brasil, como as construtoras e os bancos. Essa promiscuidade que existe entre as empreiteiras e o sistema político permanece desde a época da ditadura.

Como você avalia A Verdade e a imprensa popular hoje no Brasil?

É fundamental. O jornal A Verdade faz parte da diversidade política brasileira. O Milton Santos, na última entrevista que realizei com ele, em 2001, afirmou: “O povo não acredita na grande mídia, ele não acredita na informação que vem da grande mídia. Ele acredita no jornal do bairro, do pequeno jornal, nas pequenas informações que lhe permitem formar opinião”. E essa análise corresponde à verdade, porque as grandes opiniões são dadas pela pequena imprensa. Quem faz informação é você. O jornal A Verdade é fundamental, porque nele vêm embutidas a informação e a ideologia. Vocês dão o norte. Tenho um maior respeito e admiração por vocês e adoro ter vocês como vizinhos, ainda que eu quisesse alugar a sala (risos).

Denise Maia, Rio de Janeiro