Rio de Janeiro. É manhã de sábado e faz muito frio. O sol começa a surgir e iluminar as duas plataformas de embarque de passageiros da estação de trens de Senador Camará, Zona Oeste carioca, que atende a linha ferroviária do ramal de Santa Cruz. Mal conservada, essa estação chega a receber quase mil passageiros por embarquenos horários de pico. Um desses passageiros é Antônio Soares de Alencar, 63 anos, morador de um condomínio popular da região. Seu Antônio é um negro forte, mas que já carrega no rosto as marcas da idade e nas mãos grossas as marcas da vida. Trabalhou como segurança privado durante um período e, há 19 anos, trabalha como porteiro em um edifício no Centro. “Pego o trem porque chego rápido no trabalho e também aproveito para descansar um pouquinho mais em casa”, diz. Em sua mochila carrega uma marmita com seu almoço, um jornal evangélico e um casaco, tudo o que precisa para passar o dia em seu trabalho. “Aqui eu nunca vou sentado. É raro. Agente precisa trabalhar, né? Fazer o que? Tem que trabalhar”, comenta sorrindo. Seu Antônio sabe que irá passar uma boa parte da viagem em pé. “Se o trem não der problema, em 50 minutos, agente chega na Central” (Central do Brasil, nome da principal estação de trens).
Seu Antônio sabe que poderá ter problemas no funcionamento da composição durante a viagem. “Saio até um pouquinho mais cedo de casa pra evitar problema”, comenta. Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro registrou,por diversas vezes, um problema frequente para quem usa os trens da SuperVia: as panes no sistema ferroviário. A Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio (Agetransp) registrou um aumento de 46% nos problemas nas linhas de trem em 2013. Em setembro, os problemas com a SuperVia, empresa que administra o transporte ferroviário no Rio de Janeiro, ganharam destaque na imprensa. No dia 3, uma composição teve problemas e ficou parada próximaà estação de Quintino. Indignados, passageiros atearam fogo em uma das composições. No dia 11, revoltados com as frequentes panes, passageiros fecharam a estação de Bonsucesso, atearam fogo na cabine do maquinista e interromperam a circulação do ramal de Saracuruna durante mais de duas horas. No total, foram quatro panes na rede ferroviária do mesmo porte e que acabaram causando transtorno e revoltando a população.
Depois de 20 minutos esperando, chega o trem, lotado para uma manhã de sábado, e todos embarcam. Disputando espaço com os passageiros, estão os ambulantes que vendem de doces a livros infantis. Um deles é Luiz José Soares Neto, 32 anos, ajudante de pedreiro que, nas horas vagas, complementa sua renda vendendo DVDs. “Os trens melhoraram, estão novos, alguns têm ar condicionado, mas continuam atrasando, continuam tendo problema, toda hora um trem para e,às vezes, fica parado mais de 30 minutos. Aí o trabalhador se revolta”, comenta o ambulante.
Luiz José estava em Engenho de Dentro, no dia 3 de setembro, quando a composição que saia de Santa Cruz para a Central parou próxima à estação de Quintino. “O trem ficou parado por mais de uma hora. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Todo mundo começou a saltar do trem. As pessoas mais velhas tinham dificuldade de saltar por causa da altura”, relata o ajudante de pedreiro. “Depois pararam mais dois trens. A plataforma ficou lotada. Foi quando tacaram fogo em um vagão. Muita gente correu com medo. Depois vieram a polícia e os bombeiros. O pessoal aproveitou que tinha um helicóptero filmando e resolveu escrever S.O.S. no chão da plataforma usando as mochilas”, continua. Em total clima de revolta, passageiros fecharam a estação em forma de protesto.
O descaso com a população que utiliza os trens não se justifica. Além de uma contribuição milionária repassada dos cofres públicos para a SuperVia, desde o início da concessão, recentemente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiou R$ 1,6 bilhão para a empresa. Este suporte representa 75,8% do total previsto no programa conjunto de investimento da SuperVia com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, de R$ 2,15 bilhões. A iniciativa prevê a compra de 90 trens de quatrovagões pelo Estado, com financiamento do Banco Mundial, ficando a SuperVia responsável pela aquisição de outros 30 trens e investimentos na rede aérea, em sistema de sinalização, na via permanente e em melhorias das estações.
A SuperVia, em nota, alegou que os problemas recorrentes são causados pela ação de vândalos que danificam propositalmente o sistema aéreo de fornecimento de energia. O fato é que,neste ano, até o fim de agosto, foram registrados 63 boletins de ocorrência. Em 2012, houve 43 ocorrências entre janeiro e agosto. Nos últimos 12 meses, a Agetransp aplicou cerca de R$ 355 mil em multas à SuperVia.
“O que eu acho é que parece que eles fazem tudo para que o povo se revolte”, diz seu Antônio. “Eu também pago imposto. Nada disso aqui é de graça. Todo mundo paga imposto. Até desempregado paga imposto, né? Então devia funcionar. Se não funciona em tenho meu direito de reclamar, de protestar. Esse é o meu direito, o direito de todo mundo”, afirma Luiz.
Os dois passageiros continuam a viagem. Cada um escrevendo sua própria história através da linha férrea do Rio de Janeiro. Os problemas fazem parte dessa história. O fim dela já começou a ser escrito pelos próprios passageiros nas ruas e nos trilhos. E todos nós escreveremos um parágrafo até o final.
Marcelo Machado, Rio de Janeiro