Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, nasceu no mundo das artes em São Paulo, no dia 4 de julho de 1936. Aos três meses, figurou no filme “Bonequinha de Seda”, feito por seu pai, Oduvaldo Vianna, teatrólogo e cineasta, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua mãe, Deoclécia, também era artista.
O “filho”, aliás, foi acrescido informalmente. Por equívoco, na certidão de nascimento consta apenas Oduvaldo Vianna, o mesmo nome do pai. Por isso, no Dops (por preguiça ou negligência) foi encontrada apenas uma ficha com anotação de atividades dos dois como se fossem uma só pessoa. Não é de surpreender, pois o que esperar de uma polícia política que durante uma das exibições da peça Liberdade, Liberdade (Millôr Fernandes), foi ao teatro prender um subversivo de nome Sófocles?1
Estudou Arquitetura somente até o 3º ano. Em 1954, ingressou, junto com Gianfrancesco Guarnieri (leia A Verdade nº 76) no Teatro Paulista de Estudantes (TPE). Sua concepção de arte formou-se a partir da influência do pai e do PCB, consequentemente, transformando-o em agitador cultural, pensador e militante contra o imperialismo. Era o povo brasileiro, nossa realidade que devia estar no palco. Sua referência cultura histórica: Bertolt Brecht (leia A Verdade, nº 153). Gritava Vianinha: É preciso um teatro de criação e não de imitação do real; um teatro otimista, direto, violento, sátiro e revoltado como deve ser o povo brasileiro.
Esta linha de ação o conduz à fundação do Teatro de Arena, junto com Augusto Boal (leia A Verdade, nº 106), que colocou o povo no palco. Em 1958 estreou como autor com a peça Bilbao, Via Copacabana, atuou em Eles não Usam Black-Tie, de Guarnieri e fez A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar para apresentação em sindicatos, entidades de bairros, favelas, etc.
O Arena teve grande importância no Movimento Cultural Brasileiro, mas teve limites. Colocou o povo no palco, mas não o levou ao teatro. Por isso, Vianinha saiu para fundar o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE); da fundação, além dele, participaram nomes de expressão tais como Guarnieri, Leon Hirszman e Carlos Estevam Martins.2
O CPC levou a arte para os bairros populares, favelas, escolas, sindicatos, para as ruas. As apresentações eram uma festa multicultural, com teatro, cinema, música, literatura de cordel, etc. No chão, em cima de caminhões, onde quer que fosse. O principal era o conteúdo e a participação, não a estética; sem desprezar, porém, a qualidade artística. Era a arte buscando água terra adentro, se encharcando no lodo, “indo aonde o povo está.”3 Entre as obras mais importantes de Vianinha, dessa época, estão a peça Brasil Versão Brasileira (1962) e Quatro Quadras de Terra (1963), com a qual foi agraciado em Havana com o Prêmio Latino-Americano de Teatro da Casa de Las Américas.
Arte de Resistência
Mas a noite de agonia sobreveio com o golpe de Estado de 1964, que instalou a Ditadura Militar, extinguindo organizações sindicais, populares e culturais. A UNE teve sua sede incendiada. Mas a arte não se calou. Os artistas de esquerda criaram o grupo Opinião, tendo à frente Vianinha, Paulo Pontes4 e Armando Costa5 e, até a edição do AI-5, o golpe dentro do golpe (13/12/1968), mantiveram razoável ligação com as massas, apesar de já haver repressão e censura. O foco agora era a luta por liberdade de expressão e tinha como base não apenas o proletariado, mas também a classe média. Apesar de várias obras censuradas, antes do fechamento completo, Vianinha recebeu prêmios do Serviço Nacional do Teatro (SNT) e o Molière6,com peças que só serão apresentadas anos após a sua morte, com a “abertura lenta, gradual e segura”.
Após o AI-5, não há como fazer arte com as massas. Esta reflui para os palcos. Por conta da repressão e também de fatores econômicos, o Opinião acaba. Vianinha e Paulo Pontes criam o Teatro do Autor, que se mantém como articulação informal até 1973.
Era preciso sobreviver em todos os sentidos. Uma fresta se abre com o convite da Rede Globo de Televisão para teatrólogos de esquerda como Dias Gomes, Vianinha, Paulo Pontes. Estes aceitam, vendo como oportunidade de manterem a si próprios e à arte, e de levar alguma mensagem ao povo por esse canal visto por milhões de pessoas em todo o país. Claro, tudo com muita habilidade e sutileza, seguindo a recomendação de Gonzaguinha na música Geraldinos e Arquibaldos: “No campo do adversário, é bom jogar com muita calma, procurando uma brecha pra poder entrar…”.
Para a televisão, Vianinha adapta clássicos do teatro, como Medéia, e produz um seriado de muito sucesso, A Grande Família, junto com Paulo Pontes, Armando Costa e Max Nunes.Há alguns anos, o seriado foi retomado, com alterações, e continua em exibição.
A obra-prima de Vianinha foi Rasga Coração, que ele terminou ditando para sua mãe, no leito de morte, que ocorreu prematuramente, aos 38 anos, vítima de câncer pulmonar, no dia 16 de julho de 1974. Para essa peça, ele deixou um prefácio, no qual afirma o que pretendia com ela: “…Rasga Coração é uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões das lutas populares; preito de gratidão à velha guarda, à geração que me antecedeu, que foi a que politizou em profundidade a consciência do país. (….) Em segundo lugar, quis fazer uma peça que estudasse as diferenças entre o novo e o revolucionário. O revolucionário nem sempre é novo e o novo nem sempre é revolucionário”.
Paulo Pontes, grande parceiro e amigo, avaliou da seguinte forma a obra de Vianinha: “…Toda a vastíssima produção cultural saída desse período particularmente feliz da cultura brasileira, quando a melhor energia criadora do país se unia aos interesses sociais mais legítimos do povo, recebeu, de alguma forma, o sopro da inteligência criadora de Oduvaldo Vianna Filho. Eram dezenas de peças, peças curtas, filmes, espetáculos de rua, shows, debates e conferências nascidos da perspectiva de que o intelectual do país subdesenvolvido tem que refletir e criar sobre as condições reais da existência do povo. E, sem dúvida, Vianinha foi o grande arquiteto dessa perspectiva em sua geração, pensando e criando, discutindo e organizando, prevendo e estimulando”.
A Arte é essencial para a Revolução
Engana-se quem pensa que a adesão consequente das massas à revolução e à construção do socialismo dar-se-á apenas a partir das lutas pela solução dos problemas gerados pelo capitalismo, e pelo estudo da teoria marxista. Claro que estes são dois aspectos fundamentais. Mas não bastam. A adesão precisa contar também com o sentimento, com a emoção, como muito bem definiu Che Guevara, ao dizer que o revolucionário é movido por profundos sentimentos de amor. Amor pelo oprimido, amor que o faz sentir um arranhão imposto pelos opressores, pelas classes dominantes, a uma pessoa em qualquer parte do mundo.
E quem molda mais a emoção do que a arte, em todas as suas formas? Quem nunca chorou ou presenciou alguém chorar diante de uma tela de cinema, de televisão, ou no teatro, ante o sofrimento de uma personagem com quem se identifica? Ou se alegrar com suas vitórias? Passar horas comentando o comportamento das personagens nas novelas?
Historicamente, a arte teve papel fundamental tanto nos períodos revolucionários como na construção do socialismo na União Soviética, na China, em Cuba, etc. Várias dessas experiências e de artistas revolucionários do teatro, do cinema, da poesia, do romance, temos lembrado no jornal A Verdade.
Mas tudo parece servir apenas de leitura, e nenhuma influência tem na prática. Por que as entidades estudantis, sindicais, populares, as organizações revolucionárias da juventude não realizam mais atividades culturais; não eventualmente, mas de modo permanente, estratégico? Onde estão os festivais de música, poesia, teatro e dança? Cadê a agitação cultural?
A arte, entretanto, não morreu. Está mais viva do que nunca do centro à periferia, nas cidades e no campo. Só que, por falta de uma direção revolucionária, está sendo distorcida, manipulada, cooptada pela burguesia com seus poderosos meios de comunicação. A classe dominante não é besta; sabe que é preciso conquistar mentes e corações e prioriza isso tanto quanto o financiamento das campanhas eleitorais para eleger suas marionetes ou fortalecer o aparelho repressor. Ganha audiência e muito dinheiro com tudo isso e fortalece seu domínio na sociedade.
Que o exemplo de artistas como Vianinha contribua para esse despertar! Tarde, não é. E mesmo que fosse, diz a sabedoria popular que “antes tarde do que nunca”! Então, vamos estimular o desabrochar de mil flores para o jardim das artes e da cultura popular e socialista em nosso país!
José Levino,
historiador
Notas:
1 Sófocles foi um dramaturgo grego que viveu do ano 496 a 406 antes de Cristo, autor de Édipo Rei e Antígona, que retratam a ação da Nobreza e da Realeza na Grécia.
2 Carlos Estevam Martins nasceu em 1934, foi o primeiro diretor e autor do Manifesto de lançamento do CPC da UNE. É sociólogo, professor da USP.
3 Verso da composição Nos Bailes da Vida, de Milton Nascimento e Fernando Brandt
4 Paulo Pontes, dramaturgo paraibano, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde produziu várias peças e outros trabalhos com Vianinha, Chico Buarque e outros parceiros. Foi casado com Bibi Ferreira. Viveu de 1940 a 1976.
5 Armando Costa, Rio de Janeiro (1933-1984), escreveu várias obras em parceria com Vianinha e Paulo Pontes.
6 O PrêmioMolière foi criado em 1963 e existiu até 1991, premiando melhor diretor, autor, ator e atriz no Rio de Janeiro e São Paulo. Era patrocinado pela empresa aérea Air France e se constituía num marcante evento cultural.