A Comissão Estadual da Verdade Jaime Miranda, instituída no dia 12 de agosto de 2013, entrevistou o professor da Universidade Federal de Alagoas José Nascimento de França, na manhã de 25 de fevereiro. Esse é o 10º depoimento recolhido entre perseguidos e torturados pela Ditadura Militar em Alagoas.
Para o professor Nascimento, “esse trabalho é de fundamental importância para elucidar os crimes de Estado não investigados até hoje e ajudar a reescrever a história do país. Para que a tortura e tantos crimes perversos não mais aconteçam e nem mais fiquem impunes”.
Em emocionado, Nascimento contou sua história de vida inteiramente dedicada à luta por um país soberano e socialista. Descreveu as dificuldades na infância, a sua participação no movimento estudantil e operário, a luta contra a Ditadura, a prisão com os momentos de tortura e o ingresso como docente na UFAL dificultado pelo regime.
“Sem sonhos a gente morre”
José Nascimento nasceu de uma familia bastante humilde em Marechal Deodoro e, aos 9 anos, foi morar no bairro do Vergel. Teve uma infância sofrida, fez curso de alfaiate pela Escola Industrial de Alagoas (atual IFAL) pois, segundo ele, a escola era integral e oferecia fardamento, livros didáticos e alimentação, que nem sempre tinha em casa.
Seus primeiros contatos com a literatura marxista e com os movimentos sociais se deram ainda no nível secundário. Na biblioteca da Escola Industrial conheceu o livro de Máximo Gorki “A Mãe”, clássico da literatura soviética, e no bairro onde morava se aproximou da Juventude Operária Católica (JOC); fatos determinantes para alimentar sua vida de sonhos e esperança de um mundo novo.
Início da militância
Sua militância política se consolidou com o ingresso na JOC. “Eu considero essa a minha primeira Universidade. Nós aprendemos a nos identificar com o povo pobre, ser humilde, largar qualquer vício pequeno-burguês, se dedicar ao povo”, disse Nascimento.
Aos 18 anos, já participava como secretário da SAVEL (Sociedade de Amigos e Moradores do Bairro do Vergel de Maceió), que lutava pela legalização das moradias dos associados; ocupação de barracões militares americanos utilizados durante a Segunda Guerra Mundial.
Movimento estudantil e a primeira prisão
Após o ingresso na Escola de Serviço Social Pe. Anchieta, José Nascimento quebrou muitas barreiras. “Naquela época, o curso era totalmente feminino e orientado por uma perspectiva desenvolvimentista. Fui o primeiro homem a se formar como Assistente Social em Alagoas e rompi também com essa perspectiva de curso: me formei dando os primeiros passos na perspectiva do marxismo”.
“Antes do golpe, participamos da greve da UNE por paridade nos Conselhos e Representações e lutamos pela sua proposta de Reforma Universitária”, contou com entusiasmo ao lembrar de sua atuação, juntamente com Lúcia Souza, no Diretório Acadêmico Artur Ramos. “Mesmo depois de 1964, continuamos a organizar os estudantes. Lutamos contra a Lei Suplicy (Lacerda), que engessava a atuação do movimento estudantil, e organizamos um Seminário de Reconstrução da UNE, em Maceió, junto à União dos Estudantes de Alagoas (UEA)”, completou Nascimento.
Esse também foi o motivo de sua primeira prisão. O líder estudantil, em 1966, passou dois dias preso e não se intimidou. “Não me abati, voltei para a escola, convoquei uma assembleia para denunciar minha prisão e dizer que era preciso seguir na luta”.
Derrubar a Ditadura e construir o socialismo
Ao sair da Universidade, o jovem Nascimento tomou a decisão de continuar seu trabalho político e ingressou na Ação Popular¹ (AP). “O que me fez entrar na AP não foi só defender as liberdades democráticas, mas sim o desejo de construir o socialismo. Passamos de um cristianismo político para o marxismo-leninismo e o Pensamento Mao Tsé Tung”.
A definição política de sua organização era de transferir quadros para o campo e as fábricas dos grandes centros urbanos e organizar os trabalhadores pela derrubada da Ditadura. Dessa forma, Nascimento decidiu cancelar seu registro profissional como Assistente Social, parar de lecionar e atuar na Companhia de Habitação Popular (COHAB/AL) e ir trabalhar como operário tecelão. “Passei nove meses na fábrica de tecidos Torres, no Recife, e depois recebi a missão de ir a São Paulo. Minha companheira, militante da JOC, decidiu me acompanhar”.
Nascimento lembrou ainda da situação arriscada que passou em sua ida à capital paulista. “Tinham acabado de prender militantes da AP em São Paulo. Tive muita sorte. Fiquei no “ponto” durante uma hora e ninguém apareceu. Podiam ter me prendido já ali”.
Sem conseguir estabelecer contatos em São Paulo, deslocou-se para casa de parentes no Rio de Janeiro. “Essa foi minha lua-de-mel; eu e minha esposa, recém-casados, ficamos de favor na casa de quatro cômodos de um tio meu no Rio. Era uma família grande, os homens dormiam na cozinha e na sala e as mulheres no quarto”.
Prisão e tortura
Ao trabalhar na fábrica de tecidos Aurora, reencontra militantes da AP. Em 1970, já atuando na metalurgia carioca, é sequestrado e preso. Levado ao 7º andar do Ministério da Marinha, CENIMAR, sofre as primeiras torturas. “Um torturador mostrou-me um panfleto da AP denunciando as torturas no Brasil. Subitamente ele me disse: ‘Vocês andam espalhando que existe tortura no Brasil. No Brasil não existe tortura. Agora você vai ver se existe ou não tortura no Brasil e, subitamente, me deu um soco que me jogou no chão passando um tempão me chutando, principalmente no meu estômago”. Em seguida, Nascimento viu alguns de seus companheiros com o rosto desfigurado, resultante de pancadas.
Já na Polícia do Exército, “antes do interrogatório, um soldado me mandou ficar em pé diante da parede e, com um cassetete, batia em minha região anal e nos testículos, ordenando para eu subir na parede, como se fosse uma lagartixa. Paradoxalmente, eu tentava subir na parede”, confessou Nascimento ao indagar o quanto a tortura e o terror psicológico faz com que o ser humano perca a razão.
No momento do interrogatório, na Polícia do Exército da Rua Barão de Mesquita, em uma sala de tortura, os choques elétricos o fizeram ter ataque cardíaco. “Fizeram perguntas de coisas que já sabiam. Eu apenas admiti que era da organização”, falou Nascimento sobre o quanto foi difícil manter em segurança outros militantes e não delatar ninguém. “Passei sete dias entre tortura e a tortura de ouvir os gritos dos companheiros. Era um inferno”, declarou Nascimento.
Tendo resistido heroicamente, tanto às torturas físicas quantos às psicológicas, fato que frustava os torturadores, encapuzaram-no e levaram-no à Ilha das Flores², prisão onde passou um ano vivendo junto a outros presos políticos e lutando pela vida, mesmo dentro do cárcere.
“A tortura deixa marcas na alma da gente”
“Quando voltei a Maceió, tive depressão e tenho insônia até hoje. Fiz psicoterapia e tomava remédios e antidepressivos. Enfrentei problemas de perseguição política para dar aulas na UFAL. Fui aprovado na Universidade em 1973 e só consegui ser admitido de verdade em 1977”.
Professor Nascimento, como hoje é conhecido, tem uma longa história de luta. Atualmente, ensina no curso de Serviço Social, defendendo uma educação libertadora, e continua engajado nos movimentos sociais.
“Vivemos uma agudização da repressão”
Ao final do depoimento, questionado sobre as recentes ações da Polícia Militar e em relação aos protestos contra a Copa da Fifa, afirma: “A Dilma disse que garantiria a vida a todos os jogadores estrangeiros. Agora, garantia de vida para o povo brasileiro ela não dá. Ela reprime, as pessoas apanham da Polícia e alguns morrem”.
Já comentando sobre a violência em Alagoas, complementa: “Não é com Polícia, Secretaria da Paz, Carnaval e Copa que vai diminuir a violência, e sim com Reforma Agrária, Saúde e Educação”.
Só o socialismo acabará com a ditadura do capital
Apesar do fim da Ditadura Militar, no Brasil continua a existir torturas, assassinatos e perseguição aos que lutam contra o capitalismo. Com isso, o Estado opressor só será superado com o fim da classe que vive da exploração de todo o povo. José Nascimento encerrou seu depoimento bastante otimista na luta de classes e no futuro que se aproxima e, citando Dom Pedro Casadáglia, afirmou: “Erguei vossas cabeças; está próximo o dia de vossa libertação”.