“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Era com esse rigor que Graciliano encarava o oficio de escrever. Com certeza, ele abominaria os linguistas, pois não admitia o menor erro gramatical. A melhor expressão do seu realismo quanto ao uso da língua culta aparece em Luís da Silva, personagem do romance Angústia; ele vê pichado um muro com o slogan “proletários univos” e exclama: “Não dispenso as virgulas e os traços; quereriam fazer uma revolução sem traços e sem vírgulas? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim”.
Numa ocasião, Diógenes de Arruda Câmara, dirigente do PCB, partido ao qual se filiou em 1945, sugeriu a Graciliano que escrevesse como Jorge Amado, utilizando a linguagem do povo, ao que o escritor respondeu: “Admiro muito Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas não sei escrever do seu jeito”. Sobre isso, o romancista baiano comentou: “Ante a justeza, a correção da língua portuguesa por ele escrita, nós, os outros ficcionistas do Nordeste, somos uns bárbaros”
Graciliano nunca aceitou submeter seus escritos à apreciação do Comitê Central como o fizeram Jorge Amado e Alina Paim enquanto militantes. Para ele, o escritor, apesar de comprometido com a luta política, havia de manter sua independência criativa e liberdade de estilo. Por isso, não assimilou as regras do Realismo Socialista, Escola Literária consagrada na União Soviética após o caos criativo dos primeiros dias do poder bolchevique.
Apesar de certo tensionamento na relação com a cúpula do PCB, nunca saiu do partido nem recebeu qualquer admoestação.
Dos rincões alagoanos
Graciliano Ramos de Oliveira, considerado por muitos críticos como sucessor de Machado de Assis no trato da condição humana em sua obra, é alagoano, nascido em Quebrangulo, pequena cidade situada a 115 Km de Maceió, no dia 27 de outubro de 1892. Viveu os primeiro anos nas cidades de (AL) Buíque (PE), Viçosa e Maceió, ambas do Estado de Alagoas. Não guardava boas recordações dessa época. O pai – Sebastião Ramos de Oliveira – e a mãe – Maria Amélia Ferro Barros – não demonstravam afeto pelos filhos e reprimiam-nos fortemente ante qualquer contrariedade. No livro Infância, autobiográfico, Graciliano descreve-os sem contemplação: O pai: “Um homem serio, de testa larga (…), não economizava pancadas e repreensões; éramos repreendidos e batidos”. Mãe: “O que nessa figura mais me espantava era a falta de sorriso (…) miúda e feia, enfezada e agressiva, ranzinza, olhos maus, que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”.
Por essa razão, talvez, Graciliano era considerado por muitos como “intratável ríspido fechado em si mesmo, mas quem privava de sua intimidade o considerava solidário, paciente e compreensivo”1.
Concluiu o 2º grau em Maceió e seguiu para o Rio de Janeiro onde exerceu o jornalismo; já escrevia para os jornaizinhos de escola desde a adolescência.
Retornou para Alagoas em 1915, fixando-se com o pai em Palmeira dos Índios, onde se casou com Maria Augusta, que morreu em 1920, deixando quatro filhos: Márcio, Júnior, Múcio e Maria Augusta. Em 1928, casou-se novamente, com Heloísa Medeiros, com quem teve igualmente quatro filhos: Ricardo, Roberta, Luíza e Clara.
Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, tendo exercido um mandato marcante de apenas dois anos [1928-1930]. Moralizou a gestão, fez obras na periferia, saneou a cidade, enfrentou os coronéis. São famosos os dois relatórios anuais que encaminhou ao governador Álvaro Correia Paes. Eles foram publicados na imprensa oficial do Estado e chamaram atenção dos jornais do Rio de Janeiro, ficando conhecidos em todo o país: Eis alguns trechos do último, referente ao ano de 1929:
“ (….) Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequenos senhores feudais, exploradores da canalha, suprimi nas questões rurais a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte, estimulei as relações entre o produtor e o consumidor; esforcei-me por não cometer injustiças. Isso não obstante, atiraram as multas conta mim como arma política. (…) Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me (…).
No cárcere
Em 1930, o Brasil viveu um momento de transformação, não uma revolução como se denominou, mas um ajuste entre a burguesia industrial em ascensão e o latifúndio conservador. Diante de eleições fraudadas, Getúlio Vargas lidera um golpe de estado com apoio da ala progressista das Forças Armadas – os tenentes. Assume o poder político e imprime as mudanças de interesse dos capitalistas nacionais e estrangeiros, associados. O limite das mudanças implementadas provoca a formação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma Frente Popular liderada pelo PCB, que defendia o rompimento com o imperialismo, reforma agrária, reforma urbana, um governo popular, tendo como lema “pão, terra e liberdade”. Com a crescente adesão das massas à ANL, Getúlio decretou a ilegalidade do movimento fechando os comitês e proibindo as manifestações. O movimento refluiu; o PCB planejou então a tomada do poder pelas armas a partir de um levante dos militares progressistas. Em que pese os atos heróicos e a tomada de Natal por quatro dias (Leia A Verdade, nº 23), a insurreição (1935) foi derrotada e as prisões abarrotadas de lideranças políticas, militares sindicais, populares e intelectuais. Getúlio instalou um regime ditatorial denominado Estado Novo.
Em 1930, Graciliano tinha na gaveta o seu primeiro romance Caetés. Depois de deixar a prefeitura, foi trabalhar no Estado de Alagoas, como diretor de Instrução Pública e professor. Ele não participou da ANL, não assinou nenhum manifesto antivarguista, mas foi preso no dia 3 de Março de 1936. Durante 10 Meses e 10 dias, perambulou de uma cadeia para outra no Rio de Janeiro, para onde foi levado de Maceió. Durante a prisão, não perdeu tempo; não fez nenhuma anotação, porém seu cérebro privilegiado registrou tudo, resultando em sua obra-prima Memórias do Cárcere (alguns críticos consideram Angústia a sua obra maior). Não respondeu a processo, nunca foi sequer interrogado. Avalia: “Via-me submetido a cegos caprichos de inimigos ferozes, irresponsáveis, causadores de males inúteis”.
Libertado, ficou no Rio, refez a vida e consagrou-se como romancista no Brasil e no exterior. Suas principais obras: Caetés [1933], São Bernardo [1934], Angústia [1936], Vidas Secas [1938], e as póstumas: Memórias do Cárcere [1953], Viagem [1954], que relata a viagem à União Soviética e países socialistas do Leste europeu, Alexandre e outros Heróis [1962], Cartas [1980], Escreveu também livros infantis: Terra dos Meninos Pelados [1941] e Historias de Alexandre [1943].
Tradução em diversas línguas, premiações em países vários nunca faltaram a Graciliano Ramos. Foram adaptadas para o cinema, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, por Nelson Pereira dos Santos, em 1963 e 1983, respectivamente. Alexandre e outros Heróis foi adaptado recentemente para a televisão por Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho, com direção deste.
A morte de Graciliano, o velho Graça, aconteceu em 10 de março de 1953 aos 60 anos, causada por um câncer no pulmão.
1 Dênis de Moraes, em entrevista sobre Graciliano Ramos, pela publicação do seu livro “O Velho Graça”.
Nota: Sobre a vida e a obra de Graciliano Ramos, leia: O Velho Graça, autor: Dênis de Moraes, Boi Tempo Editorial. Retrato Fragmentado, Globo Livros, escrito por Ricardo Ramos, filho de Graciliano. Infância, do próprio Graciliano, Editora José Olympio.
Zé Levino
Muito boa essa matéria. Já adimirava o escritor, mas não sabia de tantos detalhes cativantes de sua vida. Ele conseguiu mostrar que sua luta política, sua militância, iam muito além do lápis.
excelente trabalho, acompanharei a partir de então.