O mais recente livro do economista francês Tomas Piketty, O capital no século XXI, que será lançado no Brasil em novembro, foi objeto de polêmica entre os principais especialistas em economia em muitos países. Formado em matemática e economia, Piketty é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, prestou assessoria nas campanhas do Partido Socialista Francês – hoje na presidência da França – e teve seu livro atacado de forma veemente por porta-vozes da extrema direita estadunidense e europeia, enquanto o economista Paul Krugman, ganhador do prêmio Nobel em 2008, defendeu-o.
O livro de Piketty se propõe a analisar o desenvolvimento do sistema capitalista desde o início do século 19 sob dois aspectos principais: a relação entre a taxa de lucro e a taxa de crescimento das economias nacionais; e a relação entre o fluxo total de renda e o estoque de renda acumulado dentro de um determinado país. A quantidade de dados que o autor pôde analisar, principalmente acerca dos países imperialistas (França, Inglaterra e EUA) é impressionante.
O marxismo hoje
Talvez o grande êxito da obra de Piketty seja o de comprovar as mesmas teses que já havia provado Marx na metade do século 19, agora com a possibilidade de utilizar muito mais dados estatísticos, sem chegar, contudo, à mesma profundidade nas conclusões. Piketty procura evitar os conceitos formulados por Marx e, quando fala de capital, não se refere ao processo descrito nas obras marxistas, mas estritamente a uma quantidade de riqueza acumulada.
A análise da obra O capital no século XXI deixa ainda mais clara a genialidade de Karl Marx, que pôde explicar com tanta profundidade os processos do capitalismo sem ter acesso, em sua época, a tal quantidade de dados estatísticos que apenas hoje podemos manejar.
O que Piketty prova, principalmente, é que, a longo período, a taxa de lucro do capital (chamada de ‘r’) será sempre maior que a taxa de crescimento da economia (chamada de ‘g’). Isso é exatamente o que Marx havia dito com outras palavras em O capital, ou seja, que no processo da produção a ação da força de trabalho do operário gera uma mais-valia que é apropriada pelo dono do capital.
O autor chega à conclusão de que o livre desenvolvimento dessa força de concentração de riqueza (r>g) levará ao colapso da produção social, estabelecendo uma sociedade de rentistas que solapam o que ele considera como sistema democrático.
O capitalismo e seus períodos
Os dados apresentados levam à conclusão da divisão do capitalismo, pelo menos no que diz respeito aos países ricos, em três fases distintas. A primeira cobre toda a segunda metade do século 19 e vai até o fim da Primeira Guerra Mundial (1919); a segunda compreende os choques que foram fruto da Primeira e Segunda Guerras e vai até meados da década de 1970; a terceira vai do fim da década de 1970 até os dias de hoje.
Piketty caracteriza a primeira fase como de altíssima concentração de riqueza nas mãos de muito poucas pessoas e de enfraquecimento do poder público, e aponta esses problemas como os causadores dos dois conflitos mundiais. A segunda fase é a de maior igualdade de rendimentos até hoje vivida nos países estudados, quando foi criado o Estado de Bem-estar Social e havia a sensação de que o capitalismo seria capaz de dar cobro dos problemas sociais. Já na terceira, 1980 em diante, o autor identifica a volta da situação de profunda injustiça social existente antes da Primeira Guerra.
Durante o século 19, a taxa de lucro oscilou na casa de 4 a 5% nos países ricos, enquanto a taxa de crescimento não foi maior do que 1,5%. No final do século 20 e início do século 21, vivemos situação semelhante, com a taxa de lucro se fixando nos mesmos 4 ou 5%, e a taxa de crescimento não superando 1%.
Essa situação é a responsável pelo extremo acúmulo de riqueza nas mãos dos mais ricos do mundo. Na pesquisa do banco Crédit Suisse ficou comprovado que 0,7% da população mundial é dona de 41% da riqueza acumulada, 99 trilhões de dólares (o PIB dos Estados Unidos é de 14 trilhões, o PIB mundial da ordem de 80 trilhões), enquanto mais de um bilhão de pessoas passam fome.
Piketty procura se distanciar das posições do marxismo e, por isso, desconsidera quase completamente o papel cumprido pela luta de classe dos trabalhadores na conquista das posições de igualdade no período que compreende a segunda fase, período de existência da União Soviética e em que esta nação exercia posição de retaguarda dos movimentos de trabalhadores da Europa e do mundo. Desconsidera também as contribuições dadas por Lênin e outros teóricos sobre a nova fase imperialista do capitalismo no início do século 20, representando a nova repartição do mundo uma questão fundamental para o advento das guerras.
Rentistas, ‘managers’ e capitalismo patrimonial
A obra de Piketty analisa de maneira aprofundada a origem das desigualdades sociais em seus diferentes aspectos, no que diz respeito à divisão capital-trabalho, mas também no que diz respeito à divisão entre as diferentes remunerações no trabalho. Ele demonstra que os novos ‘managers’ das instituições financeiras e monopólios passaram a receber, a partir da década de 1980, um salário 300 vezes maior que a média de sua empresa.
Os supersalários se somaram ao afrouxamento do imposto sobre a herança, que, no caso dos países ricos, caiu de 70% para menos de 35%. Dessa maneira, os grandes ricos do período atual são exatamente os que herdaram essa riqueza e a renda advinda do trabalho de nenhuma maneira é capaz de distribuir a riqueza como pareceu possível durante o segundo período analisado pela obra.
Para Piketty, vivemos em um capitalismo patrimonialista, no qual os executivos do mercado financeiro se tornaram rentistas que não atuam sobre a produção; e a tendência natural desse sistema é a de agravar ainda mais a desigualdade, caso nada mude.
A utopia é salvar o capitalismo
A solução que Piketty defende pretende evitar o que ele chama de insucessos do socialismo e está em taxar o patrimônio, a herança e o rendimento do capital de maneira progressiva – ou seja, quanto mais rico, maior a alíquota, e os mais pobres pagam menos ou não pagam. Uma taxação desse tipo tornaria possível dar transparência à dimensão da riqueza e à forma como ela é distribuída, além de fornecer aos Estados nacionais as condições de superar seu atual endividamento e financiar melhores políticas públicas.
Evidentemente, uma política de taxação deste tipo precisa ser aplicada em todos os países ao mesmo tempo, pois, do contrário, bastaria aos capitalistas transferir seus rendimentos para outros países para evitar a taxação, como aliás já acontece bastante nos paraísos fiscais onde está depositada grande parte dos capitais do mundo.
A verdade é que uma política desse tipo não pode ser aplicada enquanto o poder político e econômico se mantiver nas mãos de um punhado de pessoas que, como a própria história demonstra, exercem uma resistência desesperada, inclusive recorrendo à guerra e ao terrorismo para manter seus privilégios. Uma taxa de imposto progressiva não salvará o capitalismo, mas apenas colocará a luta de classes pelo poder político em outro patamar.
Marx voltou
Para o Brasil, os temas levantados na obra de Thomas Piketty são de grande atualidade. Chegamos à condição de ser a sexta maior economia do mundo, mas, ao contrário do que diz a propaganda oficial, o povo continua pobre. Se o atual Produto Interno Bruto (PIB) nacional fosse igualmente dividido, ele seria suficiente para garantir uma renda de R$ 8 mil por mês para cada família de até quatro pessoas, o suficiente para garantir condições dignas de vida para todos.
Mas não apenas pelo volume de dados avaliados a obra é importante. Também é importante a postura do autor em colocar a atual ciência econômica em seu verdadeiro lugar, ou seja, no lugar da economia política, como uma ciência social irmã da sociologia, da antropologia, etc. Os modelos matemáticos criados pela atual economia não são uma lei natural, e o mercado tampouco tem uma tal mão invisível que tudo regula. São contingências de decisões políticas e de estruturas formadas ao longo da História e que, portanto, podem e devem ser mudadas para o futuro.
A obra já pode ser baixada em inglês na internet pelo sítio: http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2014/06/14Thomas-Piketty.pdf
Jorge Batista, São Paulo