Marx e Engels afirmam no Manifesto do Partido Comunista que a burguesia apresenta seus próprios interesses de classe como se fossem interesses gerais, de toda a sociedade. Para justificar o capitalismo como o melhor dos mundos possíveis, ela recorre, no campo teórico, a todas as formas de artifícios ideológicos, a fim de legitimar sua exploração sobre a classe trabalhadora. Entre estes, um dos mais importantes é o seu conceito de “natureza humana”, com o qual ela pretende demostrar como este sistema é o mais “natural” e o mais “adequado” à essência do homem.
Para explicar a competição e a falta de ética nas relações sociais e humanas, ela aponta para o reino animal e nos diz que somos o que vemos ali: caças e predadores. Apenas os mais aptos sobrevivem. Na linha do darwinismo social, ela nos lembra pelo Discovery Channel e pelo Globo Repórter que aquilo que acontece nas savanas – leões caçando zebras e tantos outros animais engolindo outros – é o que acontece no mercado e dentro das corporações.
Mas o que está por trás desse conceito de “natureza humana” é apenas uma determinada concepção metafísica do real, a qual universaliza as relações sociais dos homens como são agora e explica seu ser no mundo como efetivação de uma suposta “natureza humana” estática, eterna, imutável, criada por um ente superior ou resultado evolutivo de um determinismo biológico mecanicista. Seja como for, o resultado é sempre o mesmo: uma “natureza humana” herdada espiritual ou geneticamente, a respeito da qual nada se pode fazer a não ser aceita-la.
Como o humano se forma
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que “o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material”.
Ora, mas para produzir esta vida material o homem precisa se relacionar com outras pessoas, pois ele não caça, planta ou constrói sozinho. Dessa forma, ele não cria primeiro, em isolamento, uma imagem de si mesmo, dos outros e do mundo para só depois sair a este mundo e se relacionar com as pessoas. Ele já está em relação com as pessoas quando começa a fazer essas representações.
Assim, continuam os autores, “a produção de ideias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e ao intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo”.
O homem não tem uma “essência” pré-determinada que lhe condiciona a agir em todas as épocas e em todas as formas de organização social sempre do mesmo modo. A consciência do homem reflete a organização de sua vida material, das relações de produção em que ele já se encontra envolvido quando começa a pensar sobre si, sobre o mundo e os outros (embora ela não se limite a ser apenas um “reflexo”). Daí Marx e Engels afirmarem que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência”.
Primeiro o homem existe, depois se define
Um século mais tarde, inspirado nesta descoberta fundamental do marxismo, o filósofo francês Jean-Paul Sartre também contesta que o homem seja pré-determinado, possuindo uma “natureza humana” que lhe condicione de forma determinística a ser apenas aquilo que se já é, tolhendo-lhe da liberdade de ser de outro modo. O homem não tem uma essência que precede sua existência, mas, pelo contrário, sua existência precede sua essência. Ele assim se expressa:
“O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la.” (Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, itálico nosso).
Para Sartre, a ideia de uma “essência” humana pressupõe que exista um Deus que a tenha concebido e que, em seus moldes, tenha criado o homem. Mas se não existe nenhum Deus, o homem primeiro existe, está no mundo, vive, e só a partir disso é que se define.
A natureza humana “científica” ou “darwinista”
Se uma determinada concepção da natureza humana pressupõe a existência de um ser supremo para criá-la, como afirma Sartre, a crítica filosófica à existência de Deus – como feita em Kant e Feuerbach, por exemplo – é suficiente para desconstruir todo o edifício a partir de seus alicerces. Mas e quando tais concepções parecem se apoiar em teorias “científicas objetivas”, como o darwinismo, que descartam a ideia de Deus?
Nestes casos é preciso lembrar que não existe conhecimento “científico objetivo” da realidade, ou seja, conhecimento imediato do mundo. Todo conhecimento é mediado (o oposto de imediato), passando também por um processo de construção social. A categoria de mediação, que Marx trouxe do sistema hegeliano, teve importante papel em sua crítica a alguns aspectos do darwinismo.
Em uma carta endereçada a Engels, datada de 18 de junho de 1862, Marx faz uma aguda observação sobre as descobertas de Charles Darwin, seu contemporâneo. Marx e Darwin chegaram a trocar cartas, nas quais expressavam mútuo respeito e admiração, sendo que Marx até mesmo enviou uma cópia de O Capital para Darwin. Na primeira vez que leu Sobre a origem das espécies, o filósofo alemão ficou positivamente impressionado. Mas cerca de um ano depois, ao reler a obra, ele percebeu algo que lhe escapara num primeiro momento:
“É notável como Darwin reconhece nas plantas e nos animais a sua sociedade inglesa com sua divisão do trabalho, concorrência, desenvolvimento de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela vida’ Malthusiana. É o bellum omnium contra omnes de Hobbes, e lembra Hegel na ‘Fenomenologia’, onde a sociedade civil é vista como ‘reino animal espiritual’, enquanto que em Darwin o reino animal figura como sociedade civil.” (1) (tradução nossa)
Como se pode ver, Marx identificou diversas determinações sociais que atuaram como mediações no pensamento darwiniano. A suposta “natureza humana” que alguns ideólogos burgueses tentam derivar do darwinismo não passaria, portanto, de um anacronismo: seria apenas a projeção do capitalismo e do burguês mesquinho do século XIX para o processo de evolução dos seres vivos e do gênero humano. Mas chamamos a atenção aqui para o fato de que Marx não rejeitou o darwinismo. Muito pelo contrário. Em outra carta a Engels ele se referiu ao darwinismo como a “base natural de nosso pensamento”. (2) No entanto, sua apropriação das descobertas de Darwin não foi incondicional ou acrítica.
A essência humana
O homem do capitalismo é apenas o homem do capitalismo – ele não é expressão de uma “natureza humana” eterna, imutável. Em uma outra forma de organização social, em que as coisas sejam produzidas não para dar lucro, mas sim para satisfazer necessidades humanas, em que as relações sejam pautadas pela cooperação e não pela competição, a consciência do homem também refletirá esta nova forma de organização. Em suas Teses sobre Feuerbach, na tese VI, Marx afirma: “Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”.
O homem possui, contudo, certas características que têm perpassado todas as formas de organização social, e que provavelmente ainda existirão no novo homem do comunismo. (3) Mas este homem perene, das civilizações tanto passadas quanto futuras, se define não por aquilo que lhe aproxima dos animais, mas sim por aquilo que lhe é específico, distintivo (pois uma definição é uma delimitação). Por isso, Sócrates dizia que a essência do homem é a razão, Aristóteles lhe chamava de animal político (zoon politikon) e Freud dizia que o homem é o único ser capaz de sublimar suas pulsões, isso é, de dizer “não” aos seus impulsos biológicos. Neste último sentido, o que é especificamente humano não é exatamente o impulso para matar ou destruir, por exemplo, mas a capacidade de dizer “não” a estes impulsos e reelaborá-los no uso das mais altas construções sociais.
A história do homem é a história da superação de suas determinações biológicas, de sua elevação acima da natureza bruta, da vitória da civilização sobre a barbárie. E é nesta direção que acena, no horizonte, o próximo passo desse processo civilizatório: a instauração da sociedade comunista. Se a opressão do homem pelo homem tem sido uma constante em grande parte da história do mundo, também nunca estiveram ausentes o desejo de liberdade e a luta por sua emancipação. O homem é um ser aberto ao mundo, e sempre será o que ele fizer de si mesmo.
Glauber Ataide, graduando em Filosofia pela UFMG
Notas
1.A íntegra desta carta se encontra em Marx-Engels Werke, Band 30, Dietz Verlag Berlin, 1974, p. 249. “Es ist merkwürdig, wie Darwin unter Bestien und Pflanzen seine englische Gesellschaft mit ihrer Teilung der Arbeit, Konkurrenz, Aufschluß neuer Märkte, „Erfindungen” und Malthusschem „Kampf ums Dasein” wiedererkennt. Es ist Hobbes’ bellum omnium contra omnes, und es erinnert an Hegel in der „Phänomenologie”, wo die bürgerliche Gesellschaft als „geistiges Tierreich”, während bei Darwin das Tierreich als bürgerliche Gesellschaft figuriert.“
2.No discurso diante do túmulo de Karl Marx, Engels ainda comparou seu amigo com Darwin, dizendo que “assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana”.
3.É possível entrever um exemplo dessa continuidade do homem das civilizações tanto passadas quanto futuras quando Marx analisa a arte grega e sua capacidade de ainda hoje nos proporcionar prazer estético.