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quinta-feira, 28 de março de 2024

Terceirização significa superexploração

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O jornal A Verdade entrevistou Odete Reis, formada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1993, e atualmente auditora fiscal do trabalho, do Ministério do Trabalho. Odete Reis participou, entre os anos de 2013 a 2015, de uma ação nacional de fiscalização em uma grande empresa de teleatendimento. Na época, foram emitidos por volta de 800 autos de infração contra as empresas Oi, Telefônica (Vivo), Net, e os bancos Santander, Bradesco, Itaú e Citibank. Essas empresas contratavam a empresa Contax S.A. para realizar serviços de teleatendimento. Porém, a auditoria verificou que a terceirização era ilícita e que os empregadores reais eram as empresas contratantes. A ação, que gerou R$ 300 milhões em multas, verificou um alto índice de adoecimento dos trabalhadores, causado principalmente pela forma predatória de organização do trabalho baseada na intensificação da força de trabalho e na gestão pautada pelo assédio moral. Se naquela época a terceirização representava um retrocesso para os trabalhadores, hoje, após aprovação na Câmara dos Deputados do PL 4302/98 (que permite a terceirização em qualquer setor de uma empresa) é ainda mais. Leia a seguir a entrevista e entenda melhor os impactos da terceirização na vida dos trabalhadores.

A Verdade – Atualmente a terceirização é permitida apenas nas atividades-meio de uma empresa. O que muda com ela sendo permitida também nas atividades-fim?

Odete Reis – Até agora, não há uma regulamentação sobre terceirização. O que temos é a Súmula 331 do TST, que permite a terceirização no caso de atividades-meio, como, por exemplo, serviços de conservação, higiene e vigilância. Claro que há um imenso descumprimento da legislação, sendo inúmeros os casos de terceirização irregular. O que o PL 4.302 faz é chancelar essa prática, que, obviamente, se for sancionada pelo presidente, aumentará em grandes proporções o número de empresas e trabalhadores terceirizados.

Os terceirizados recebem salários 25% menores e têm a jornada de trabalho maior que os contratados diretos. Como você explicaria esses fatos?

Segundo pesquisa feita pela própria CNI, 85,6% das empresas que terceirizam o fazem com o objetivo de reduzir custos. Para que seja, dessa forma, economicamente vantajoso contratar por intermédio de outra empresa, a redução dos custos deverá sair de algum lugar, não é isso? Daí o resultado: salários menores, mais horas trabalhadas (segundo pesquisa CUT/Dieese, por volta de três horas semanais a mais), pouco investimento em saúde e segurança do trabalho, etc. A precarização das condições de trabalho resultante da prática de terceirização vem sendo objeto de inúmeras pesquisas. Ocorre ainda como resultado dessa forma de contratação uma rotatividade mais elevada entre os terceirizados (tempo médio de permanência no trabalho para os terceirizados de 2,6 anos e para os contratados diretos, 5,8 anos), além de uma grande fragmentação e enfraquecimento sindical.

Algumas pesquisas apontam que a maioria dos acidentes de trabalho, inclusive os com vítimas fatais, acontecem principalmente entre os terceirizados. Você acredita que esses dados são a realidade no mundo do trabalho?

Sim, essa é a realidade. Com a terceirização há um aumento do desrespeito aos limites da exploração do trabalho. Os trabalhadores terceirizados são expostos a jornadas mais exaustivas, são menos treinados que os trabalhadores diretos, os salários são mais baixos, com pagamento por produtividade, pressionando o trabalhador a intensificar mais o trabalho, muitas vezes além dos seus limites físicos e mentais. A rotatividade elevada e os vínculos de trabalho mais instáveis também reduzem suas resistências à exploração. Várias pesquisas apontam um número bem mais elevado de acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho entre os trabalhadores terceirizados. Segundo estudo do Dieese/CUT, de cada cinco acidentes de trabalho, inclusive os que resultam em morte, quatro acontecem com terceirizados. Segundo o auditor fiscal do trabalho Vitor Filgueiras, no artigo “Terceirização e acidentes de trabalho na construção civil” (2015), nas obras da Copa do Mundo de 2014, sete dos nove trabalhadores mortos eram terceirizados. Há ainda um estudo desse mesmo autor em que são mostrados dados alarmantes sobre o trabalho análogo ao escravo e a relação com a terceirização. Foram analisados os dez maiores resgastes nos anos de 2010 a 2014 (50 ações fiscais). Desse total, 44 ações envolveram terceirizados, e do total de 4.183 trabalhadores resgatados, 3.382 eram trabalhadores terceirizados (somente 801 eram contratados diretos).

Em casos de não cumprimento das leis trabalhistas, quais são as garantias que o trabalhador possuirá, uma vez que trabalha para uma empresa sendo contratada por outra?

Este é outro ponto nefasto do PL 4.302. O referido PL prevê que a responsabilidade da contratante será subsidiária, e não solidária. Com a responsabilidade solidária, o trabalhador poderia acionar judicialmente as duas empresas ao mesmo tempo (terceirizada e contratante) por direitos não pagos. Agora, somente se não houver mais bens a serem penhorados da empresa terceirizada, processo que pode levar anos, é que a contratante poderá ser acionada.

Para finalizar, hoje com a estrutura e o corpo de funcionários que o Ministério do Trabalho possui, você acha possível garantir fiscalização justa às empresas?

Não, de forma alguma. Existe uma grande defasagem de auditores fiscais do trabalho, e não há expectativa de novos concursos. Há, ao contrário, vários auditores prestes a se aposentar, o que agravará ainda mais a situação atual. A legislação prevê um número mínimo de 3.640 auditores fiscais, no entanto somos 2.500 em atividade no país.

Importante ressaltar ainda que o número mínimo previsto na legislação brasileira é bem inferior ao preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é de um auditor fiscal do trabalho para cada 20 mil pessoas da População Economicamente Ativa (PEA).

Gostaria de acrescentar que, a despeito de o PL ser sancionado, ainda temos “armas” para lutar contra a precarização do trabalho e a terceirização. A Constituição Federal prevê, como princípios fundamentais, os valores sociais do trabalho e a preservação da dignidade humana.

Cito o artigo publicado no dia 23 de março, de Valdete Souto Severo, doutora em direito do trabalho e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região: “De acordo com a unanimidade da doutrina constitucional, um dos efeitos básicos de um direito fundamental é negar legitimidade a toda norma (anterior ou posterior) que o negue. Pois bem, o PL 4302 nega todo o projeto de sociedade ‘livre, justa e solidária’ que garante ‘desenvolvimento nacional’, erradique a pobreza, reduza as desigualdades e promova ‘o bem de todos’. De modo ainda mais direto, nega o direito fundamental à relação de emprego (artigo 7º, I), à irredutibilidade de salário (art. 7º, VI), às férias (art. 7º, XVII), à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII), apenas para citar os exemplos mais óbvios”.

E continua: “E se o argumento da inconstitucionalidade não animar, mantém-se a mesma possibilidade, hoje já existente, de exame do caso concreto, a fim de aferir se a opção administrativa de terceirizar, mesmo sendo lícita, não promove redução ou supressão de direitos fundamentais trabalhistas. Nesse caso, tal opção é nula, por força do que dispõe o artigo 9º da CLT. Do mesmo modo, se verificada a caracterização da figura do empregador ‘dividido’ de forma fictícia, entre prestador e tomador, basta invocar o artigo 2º da CLT para justificar o reconhecimento do vínculo de emprego direto. Aliás, o próprio PL 4302 dispõe, em seu artigo 22, que ‘presentes os elementos constitutivos da relação de emprego previstos na CLT’, restará configurado o vínculo de emprego entre a tomadora e os trabalhadores.

Pedro Vieira, Belo Horizonte

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