O abandono paterno é uma realidade de proporções assustadoras em nosso país. A mais recente pesquisa feita sobre o assunto foi realizada em 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, atestou que 5,5 milhões de crianças, até então, não tinham o nome do pai no registro de nascimento, isso sem mencionar os já adultos. Ao contrário do que se pode pensar, não é nos estados mais agrestes que se concentra o maior número de crianças sem filiação completa. Os primeiros lugares do ranking são ocupados pelas duas maiores metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, com 677.676 casos, seguido por São Paulo com 663.375 casos. Roraima é o estado com menos crianças sem o nome do pai no registro de nascimento. Existem 67 milhões de mães no país, dessas, 31% (20 milhões) são mães solo, segundo a Data Popular. Estes dados mostram quanto o abandono paterno é uma realidade extremamente presente, e mesmo assim, pouco debatida, exceto quando vem à tona algum caso processual ou cenários impactantes, vide a crise sanitária causada pelo zika vírus no começo de 2016, e a série de abandonos paternos acarretados.
O afeto familiar é uma marca importante no desenvolvimento do respeito e da dignidade do indivíduo por ele próprio e por pessoas de seu convívio social. Existem vários conceitos de família, mas há um ponto comum em quase todos eles: a união dos membros de uma família, com ou sem laços consanguíneos, nasce da intimidade e da troca de experiências e sentimentos durante a vida, principalmente nos anos moldáveis. É a partir da família que se compõem os valores, hábitos e as perspectivas de mundo que permearam por toda a vida. A formação familiar torna-se reflexo da personalidade do indivíduo, a forma como ele mantém suas relações interpessoais e contribui para o desenvolvimento social e intelectual do ser.
Mas em um país onde o termo família tradicional é sempre ouvido, é bom esclarecer que ser pai ou ser mãe, além do biológico, são papéis construídos também socialmente. É mais do que necessário tirar os olhos da zona de conforto e observar além da superfície. Mesmo com diversos programas de reparação do governo fixados em todo o país, em cada bairro, em cada círculo social, há de se conhecer um indivíduo sem pai. Alguns lidam bem com isso, outros carregam traumas, expostos ou disfarçados sobre a frase de efeito “não há como sentir falta do que nunca se teve”. O abandono paterno é um problema histórico em nosso país, e talvez por isso seja tratado de forma tão naturalizada.
A miscigenação que se deu no processo de colonização do Brasil, pode ser uma das mais palpáveis formas de buscar a origem da ausência paterna em nossa cultura. A sociedade brasileira foi fundada, em sua maioria, a partir do estupro praticada pelos portugueses contra as mulheres negras e índias. Assim, as crianças nascidas que não eram consideradas nem brancas nem negras e nem índias, eram afinal “Zé Ninguéns” (termo cunhado por Darcy Ribeiro). Não tinham identificação social, quiçá afetiva. Como consequência, parece haver enraizada até os dias de hoje, uma herança cultural de filhos não mais sem pátria, mas sim, sem pai. Como povo a história já se inicia aqui com o sentimento de ausência presente, ausência de um mito de origem, de um pai a quem chamar de seu.
Temos enraizada em nossa sociedade, a ideia de que a mulher já nasce preparada para a maternidade, sendo capaz de desenvolver o amor puro e inato pelo filho sem muitos esforços. Denuncia-se, a partir deste ponto, uma disfunção social na qual homem e mulher têm papéis opostos já prestabelecidos, sendo responsabilidade do homem tudo o que vem do mundo externo, enquanto a mulher tem foco total a tudo que se refere ao interno. Além de simbolizar o amor incondicional, a mãe representa também a figura essencial da alimentação e fortalecimento do bebê desde seus primeiros minutos de vida. A maternidade é um tema que suscita discussões em diversas áreas – antropologia, história, sociologia, psicanálise, psicologia – e nelas, parece que entender a mãe é algo mais necessário do que entender o pai.
Com o advento do capitalismo na sociedade moderna, a mulher branca foi inserida no mercado de trabalho e passou a cumprir uma dupla jornada, que se consolidou com os avanços da industrialização e urbanização. Tal papel sempre foi cumprido pela mulher negra, mas como trabalhadoras assalariadas, nenhuma mulher perdeu sua responsabilidade para com o lar e os filhos.
Tendo em vista essa situação social e vendo a necessidade de trazer a questão do abandono paterno para discussão popular, um grupo de jornalistas decidiu contextualizar o tema por meio do livro de perfis Cadê Você? As pessoas por trás do abandono paterno. Tratando deste assunto a partir de casos individuais de diferentes personagens reais, é possível evidenciar as consequências sociais e psicológicas que o abandono pode acarretar. Além do livro, que será publicado em agosto deste ano, o projeto se estende também à plataforma digital com a página Cadê Você? (https://www.facebook.com/ProjetoCadeVoce/), onde são coletados depoimentos anônimos de filhos e mães solos que sofrem diariamente com os efeitos do abandono paterno.
A página do projeto no Facebook já conta com mais de 13 mil curtidas e publica diariamente conteúdos relacionados à instituição família, desde depoimentos até textos que trazem novidades sociais e políticas sobre o tema. Para participar, é só entrar em contato por inbox ou pelo e-mail [email protected]. A iniciativa embarca inclusive histórias de abandono materno.
Programas que buscam reconhecimento legal
Hoje, temos normas e leis que resguardam de maneira mais eficaz a dignidade daqueles que foram abandonados, conforme o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que prevê o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária para todas as crianças, adolescentes, adultos e idosos, além de programas como o Pai Presente, de reconhecimento de paternidade espalhados por todo o país.
O programa Pai Presente, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é uma iniciativa exemplar no estímulo do reconhecimento de paternidade de pessoas sem esse registro, funciona desde 2010 e assegura o direito à paternidade.
Partiu do CNJ, ainda em 2010, a iniciativa de solicitar ao Ministério da Educação (MEC) os dados do Censo Escolar para mapear as crianças matriculadas na rede de ensino cuja certidão de nascimento não trazia o nome paterno. Com esses registros, uma lista foi enviada aos tribunais, que separaram os nomes por comarca, encaminhando depois para os juízes. Estes passaram a notificar as mães para que comparecessem aos fóruns para explicar o motivo da ausência do nome do pai na certidão de nascimento.
O Pai Presente facilita a solução de um problema, que é doloroso e gigantesco no Brasil, em mutirões, sem a necessidade de um advogado e sem custos para a família. A declaração de paternidade pode ser solicitada espontaneamente pelo pai, mãe ou filho maior de 18 anos, comparecendo ao cartório de registro civil mais próximo do domicílio. Desde o Provimento nº 16 da Corregedoria Nacional de Justiça, que instituiu novas regras e procedimentos, o processo para declaração de paternidade se tornou mais ágil. Entre 2010 e 2014, o Pai Presente resultou em cerca de 536 mil notificações emitidas por juízes de várias comarcas do país e cerca de 42 mil reconhecimentos espontâneos.
Ao transmitir o gerenciamento do projeto para os tribunais locais, alguns decidiram mudar o nome do programa para adaptá-lo a suas realidades e outros, que já possuíam alguma iniciativa parecida, escolheram não alterar a nomenclatura antiga, o que resultou em desdobramentos interessantes por área. Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) já havia implantado em 2007 o Paternidade Responsável.
O programa Reconhecer é Amar existe desde 2012, implantado pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), e tem como base o Pai Presente do CNJ. Para possibilitar um atendimento completo, um laboratório foi instalado para que exames de DNA possam ser feitos imediatamente e sem custos, com resultado saindo em 15 dias. São organizados mutirões mensalmente nas sete varas da família da capital, e mesmo antes do resultado do exame já é feito um acordo prévio com o possível pai determinando o valor da pensão e as diretrizes de convivência. Caso a paternidade não se confirme, o acordo é cancelado.
No Espírito Santo, o projeto Meu Pai é Legal é realizado por meio de uma parceria entre a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Poder Judiciário e o Ministério Público, Defensoria Pública e instituições de ensino superior, e já atendeu cerca de 75 mil crianças matriculadas na rede de ensino público.
No Piauí, o projeto Eu Tenho Pai é realizado em parceria com o Ministério Público e a Defensoria do Estado. Desde sua criação já foram concluídos mais de 2.400 processos de reconhecimento de paternidade. A partir 2012, no Paraná foram realizados 113.340 reconhecimentos de paternidade graças ao programa. Em Goiás, o Pai Presente funciona em 70% das comarcas. Já em Roraima, o programa percorre todas as escolas da capital e do interior para orientar pais e professores sobre sua importância.
Tainá Roberta e Victória Magalhães
Sou mãe solteira,minha filha tem o nome do pai no registro mais ele não é presente ela me cobra muito a presença do pai.O pedido de guarda compartilhada é legal como forma de reparar a ausência paterna?