Os planos de saúde acumulam há anos uma dívida com o Sistema Único de Saúde, que só cresce. De acordo com a lei 9.656/98, é cobrado ressarcimento ao SUS toda vez que um paciente é atendido na rede pública para um serviço que poderia ser realizado na rede suplementar, quando este é contratante de um plano de saúde. “É um instrumento de justiça contábil, criado para evitar que os planos se sintam motivados a se desobrigar de coberturas e enviar seus pacientes ao SUS”, afirmou Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, em entrevista à Folha de S. Paulo, em agosto de 2016.
Na prática, a cobrança passou a ser feita a partir de 2001 para uma parcela dos procedimentos (serviços ambulatoriais, tratamentos e serviços de alta complexidade, como hemodiálise e quimioterapia). Antes de ser cobrada, a operadora de saúde é notificada, podendo recorrer dos valores. Desde que foi instituída a lei, 3,1 milhões de atendimentos na rede pública a usuários de planos de saúde foram notificados, com valor total de R$ 5,5 bilhões, dos quais 90% foram contestados. Destes, 28% tiveram a cobrança cancelada por aceitação das contestações e 30% ainda estão em análise.
Até julho de 2016 foram cobrados R$ 2,1 bilhões em ressarcimento ao SUS por esses atendimentos. Porém, 40% desse valor não foi pago, o equivalente a R$ 806 milhões. Lideram o ranking das maiores devedoras a Hapvida, que tem o débito de R$ 40 milhões, a Unimed Nacional, com R$ 35 milhões, e a Unimed BH, com R$ 24 milhões.
Governo defende saúde privada
O fato das operadoras de saúde deverem ao Estado, não pagarem e não sofrerem nenhum tipo de punição ou suspensão de direitos deixa claro que o governo não pretende interferir nos lucros dos donos dos planos de saúde. Mas isso não é tudo.Em 2013 foi proposta a Medida Provisória 627, que pretendia anistiar as dívidas dos planos de saúde aplicadas pela ANS, que rondavam a cifra de R$ 2 bilhões. O perdão proposto era referente às multas emitidas contra as operadoras que cometeram irregularidades, como aumento indevido nos valores ou negativa de procedimentos que deveriam ser cobertos pela rede. O relator do processo era Eduardo Cunha (PMDB), cuja campanha recebeu doações milionárias do Bradesco Saúde e outras operadoras. A MP foi vetada pela presidenta Dilma Rousseff em 2014.
Porém, não é de hoje que o governo beneficia a saúde privada no Brasil. Segundo a matéria Saúde: a voz das ruas e a voz do mercado, publicada na Revista Poli, o financiamento aos planos de saúde vem desde a época da ditadura e tem aumentado ao longo dos anos. O governo deixa de arrecadar bilhões de reais por ano do serviço privado devido às isenções fiscais e tributárias. Segundo o pesquisador Carlos Otávio Ocké-Reis, do Ipea, o valor das isenções dobrou de 2003 a 2011: “em 2011, apenas com o imposto de renda pessoa física, o governo deixou de arrecadar R$ 7,7 bilhões”. Para o imposto de renda pessoa jurídica– valor que as empresas abatem por oferecer assistência médica, odontológica ou farmacêutica aos funcionários – o valor que se deixou de arrecadar foi de quase R$ 3 bilhões. O mesmo estudo mostra que, nesse período, o lucro líquido do mercado de planos de saúde cresceu mais de 2,5 vezes.
Participação no financiamento de campanhas
Os professores Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, e Ligia Bahia, do Laboratório de Economia Política da Saúde da UFRJ, desenvolveram um estudo intitulado Representação política e interesses particulares na saúde: o caso do financiamento de campanhas eleitorais pelas empresas de planos de saúde no Brasil, publicado na Revista Comunicação, Saúde e Educação, de 2011. Segundo o estudo, em 2006, haviam sido eleitos 28 deputados federais com apoio de operadoras de saúde. Já nas eleições de 2010, as empresas de planos de saúde destinaram R$ 11 milhões em doações oficiais para as campanhas de 153 candidatos. O apoio contribuiu para eleger 38 deputados federais, 26 deputados estaduais, três senadores, além de quatro governadores e da presidenta da República, Dilma Rousseff. Entre os partidos que mais receberam doações estão o PMDB (R$ 3,5 milhões), PSDB (R$ 2,1 milhões), PT (R$ 1,6 milhão), PV (R$ 1,2 milhão) e DEM (R$ 910 mil).
Assim, fica fácil compreender porque os políticos defendem tantas medidas para beneficiar as operadoras de saúde; também fica claro porque o SUS não é prioridade no governo, já que seu sucateamento contribui para a migração de novos clientes para as operadoras de planos de saúde.
Construir uma saúde pública de qualidade
A saúde é um direito básico de todo cidadão. Porém, no capitalismo tudo vira mercadoria para garantir lucros cada vez maiores para os patrões gananciosos, que têm como única preocupação sua própria conta bancária.
O Sistema Único de Saúde, conquista de toda a classe trabalhadora, está sendo cada vez mais sucateado, empurrando a população a buscar planos privados de saúde, muitas vezes sacrificando seu orçamento familiar. E isso, graças ao envolvimento dos donos das operadoras de saúde no Congresso Nacional, através da eleição de candidatos próprios ou financiamento de campanhas, garantindo a aprovação de leis que prejudicam o SUS e favorecem os planos privados, a exemplo da nova tentativa do ministro da Saúde de criar um plano de saúde “acessível” para “desafogar o SUS”.
Não podemos deixar retroceder mais essa conquista! O SUS é resultado de anos de luta da população e não pode ser entregue às mãos da iniciativa privada. A saída para a melhoria da saúde dos trabalhadores não é criar um plano de saúde mais barato, e sim garantir que o SUS seja como manda a Constituição: público, gratuito, universal, acessível a todos e de qualidade. Mas isso só será possível quando a saúde deixar de ser vista como mercadoria e quando toda a população tiver acesso a melhores condições de vida (saneamento, casas adequadas, trabalho com melhores condições e menor jornada etc.). Portanto, é preciso lutar também por uma sociedade mais justa e igualitária, uma sociedade socialista.
Ludmila Outtes, Recife