Foram três séculos de escravidão dos negros, trazidos à força da África. Muitos não aceitaram passivamente a escravidão. Além de ações individuais e de algumas revoltas urbanas, a grande reação dos negros foi a busca coletiva de libertação, fugindo das fazendas para embrenhar-se nas matas e formar suas comunidades independentes e autônomas, os quilombos.
O caminho da libertação
Centenas de quilombos se formaram no país inteiro e foram caçados e destruídos pelas tropas do governo e por milícias particulares dos fazendeiros, especialmente pelos bandeirantes paulistas. Entre os quilombos, o maior deles e que se tornou símbolo da luta de libertação dos escravos, foi o de Palmares (Alagoas/Pernambuco), que resistiu por mais de cem anos (1580-1695).
Em Palmares (leia A Verdade, nº 1), os negros, liderados por Ganga Zumba, sucedido pelo herói Zumbi, construíram uma comunidade com sistema econômico coletivo, com autonomia, independência política e liberdade, onde o povo podia viver sua cultura original (religião, danças, costumes, tratamento de saúde, etc.). A autoridade maior tinha a denominação de rei, mas, de fato, funcionava um regime de democracia participativa, pois nenhuma decisão, salvo as de caráter militar que exigiam segredo ou urgência, era tomada sem consulta ao conselho de representantes das várias comunidades que compunham a sociedade palmarina.
Para se defender, os palmarinos criaram um exército popular que resistiu a cerca de 40 ataques durante toda sua existência, sendo derrotados em 1695 por um exército colonial formado por mais de 10 mil soldados comandados por Domingos Jorge Velho, o famoso bandeirante paulista conhecido como bandido por caçar índios para escravizá-los, além de matar idosos, mulheres e crianças e incendiar as aldeias indígenas.
Zumbi foi assassinado no dia 20 de novembro de 1695. Por isso, essa data é o Dia da Consciência Negra. Sua cabeça ficou exposta durante anos na Praça do Carmo, no Recife.
A via insurrecional
No século 18, pequenos quilombos surgiram, mas nenhum que se aproximasse à dimensão de Palmares. No século 19, ocorreram várias lutas insurrecionais, das quais a mais importante foi a Revolta dos Malês (leia A Verdade, nº 100), que levantou os escravos de Salvador e do Recôncavo Baiano.
As insurreições acabaram derrotadas. Em Salvador, os quatro principais líderes da Revolta Malê foram condenados à morte e fuzilados no dia 14 de maio de 1835. A repressão aumentou. Os negros foram impedidos de circular à noite e de praticar sua cultura original. Foi proibida também a venda de escravos da Bahia para outras regiões do país, numa tentativa de conter a difusão da ideia de libertação.
A via da inclusão social
Contidos o crescimento, a articulação dos quilombos e as insurreições, tomou corpo a via reformista estimulada pela Inglaterra, cuja estratégia era conquistar a abolição e a inclusão dos negros no mercado capitalista, na condição de força de trabalho liberada. Em expansão, a burguesia inglesa precisava ampliar seus mercados e a permanência do trabalho escravo representava um empecilho ao avanço do capital.
Setores da burguesia industrial nascente e de “classe média” abraçaram a bandeira abolicionista. Os principais líderes foram: Luiz Gama (1830-1882), filho de mãe negra e pai branco, escravo dos 10 aos 17 anos, beneficiário da Lei do Ventre Livre (1871), tornou-se jornalista, advogado e escritor; José do Patrocínio (1853-1905), filho de um padre e de uma escrava, foi criado como liberto e se formou em Farmácia, tornando-se também jornalista e escritor; André Rebouças (1838-1898), engenheiro famoso cujo pai era filho de uma escrava alforriada com um alfaiate português; e Joaquim Nabuco (1849-1910), pernambucano, de família rica e branca, um dos mais importantes diplomatas do Império.
A ação abolicionista se dá em três níveis:
1) Mudanças legislativas, entre as quais se destacam: a) Lei Eusébio Queiroz (1850) que proibia o tráfico de escravos; b) a Lei das Terras (1850), que tornou palatável para os proprietários rurais o fim da escravidão, legislando que a propriedade da terra teria de ser adquirida por meio da compra, e para a burguesia industrial, pois permitiria a emigração do campo para os centros urbanos, criando uma grande reserva de mão de obra; c) a Lei do Ventre Livre (1871), estabelecendo que seriam libertos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data; e d) a Lei dos Sexagenários (1885), libertando os escravos a partir dos 60 (sessenta) anos de idade.
2) Compra de cartas de alforria, criando associações que faziam campanhas financeiras a fim de comprar cartas de alforria aos senhores, permitida a partir do século 18.
3) Fomento a “quilombos” de inclusão. Os abolicionistas articulavam um local determinado e uma rede de apoios de comerciantes e industriais e até compravam terras, estimulando a fuga de escravos das fazendas para esses lugares. Houve poucas experiências nesse sentido, mas uma delas ficou bem conhecida. Foi a do “quilombo” de Jabaquara, em Santos, São Paulo (1839-1898). Os abolicionistas colocaram para liderar cerca de três mil escravos Quintino de Lacerda, um liberto que continuava morando na casa do seu senhor. Foi eleito vereador, mas a Câmara, racista, negou a sua posse, que só aconteceu por ordem judicial.
A abolição, em 1888 (Lei nº 3.353, de 13/05/1888), não promoveu sequer a inclusão social, pois, como não houve reforma agrária, os ex-escravos foram expulsos das fazendas e se deslocaram para a periferia das cidades, onde tiveram de sobreviver de biscates, trabalhar em serviços auxiliares nas fábricas (limpeza) e morar nos mocambos e favelas. A mão de obra para a indústria foi trazida da Europa, bem como para a lavoura cafeeira do Sudeste.
A luta do Movimento Negro
Movimentos Negros surgem na década de 1970, sob a ditadura militar, buscando o resgate da cultura original afro e relacionando-a com as reivindicações da periferia. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) lança manifesto no qual pronuncia “como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todos os atos de discriminação racial, a organização constante da comunidade para enfrentar qualquer tipo de racismo (…). Por essa razão, propomos a criação de centros de luta do movimento negro unificado contra a discriminação racial nos bairros, nas cidades, nas prisões, nos terreiros de candomblé, em nossos terreiros de umbanda, no trabalho, nas escolas de samba, nas igrejas, em todos os lugares onde as pessoas vivem: Centros de Luta que promovam o debate, a informação, a conscientização e a organização da comunidade negra (…). Convidamos os setores democráticos da sociedade que nos apoiam a criarem as condições necessárias para uma verdadeira democracia racial”.
O MNU e outros movimentos e organizações negras promoveram ampla mobilização em favor da inclusão de suas propostas antirraciais na Constituinte pós-ditadura militar, realizando uma convenção nacional em 1986, cuja resolução propõe normas a serem inseridas na nova Constituição tratando de “direitos e garantias individuais, violência policial, condições de vida e saúde, direitos da mulher e do menor, educação, cultura, trabalho, questão da terra e relações internacionais”. A articulação conseguiu, junto com outros movimentos sociais, a formação de uma Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
Demarcação Já!
As principais conquistas inseridas na Constituição foram a definição de igualdade, a proibição de qualquer discriminação racial e o direito ao território. O conceito de remanescentes de quilombos foi introduzido na Constituição de 1988 (hoje, o Movimento Quilombola não aceita esta denominação, preferindo descendentes dos quilombos). A Constituição Federal determina o direito ao território por parte daquelas comunidades que se autorreconheçam como quilombolas e comprovem as Comunidades Quilombolas (Conaq). O Decreto 4.887/2003 regulamentou os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. Esse processo está mais atrasado que o dos indígenas e sofrerá igualmente as consequências da PEC 215, se aprovada. Atualmente, apenas 253 comunidades quilombolas contam com o título de propriedade de seu território, número que representa apenas 8% da totalidade estimada de três mil comunidades no Brasil.
O Movimento Quilombola luta pelo território e o Movimento Negro, em geral, por políticas de inclusão social, a exemplo das quotas para negros nas universidades e a implementação do Estatuto da Igualdade Racial.
Reflexão sobre inclusão social e libertação
Inclusão é uma compensação; dificulta a organização do povo, pois é processada individualmente; trata-se de estratégia das classes dominantes para servir ao capitalismo. A superação do racismo, da discriminação racial, assim como a de gênero, não se dará dentro do capitalismo. É claro que não bastam a supressão da propriedade privada e o estabelecimento de novas relações sociais de produção para automaticamente se pôr fim ao racismo. Foram três séculos de escravidão, tratando os negros, no Brasil, como seres inferiores. Portanto, a superação dessa ideia passa por um profundo desenvolvimento de uma nova consciência de que os oprimidos constituem uma classe que não é uniforme. Entretanto, a vitória e a implantação de uma sociedade sem classes, com a mais profunda unidade, somente será possível com o respeito à diversidade de pontos de vista e comportamentos que não colidam com o objetivo comum. A união entre a classe trabalhadora – unir quilombolas com índios, camponeses e operários – é estratégica, fundamental para a criação do poder popular.
O grande desafio para os movimentos sociais e organizações de esquerda que propõem mudanças estruturais visando a uma sociedade socialista é não recusar as medidas inclusivas – como quotas e distribuição de cestas básicas para comunidades quilombolas, pois o povo tem necessidade dessas medidas –, mas transformar tais benefícios em meios de fortalecer a consciência e a organização quilombola e a articulação com os demais setores sofridos do proletariado brasileiro, em vista da criação de uma Frente Popular e a conquista de um governo de baixo para cima, de forma independente e autônoma. Para esse fim, as eleições e a ocupação de espaços institucionais jamais poderão ser consideradas como um fim em si, mas como meio para o alcance do objetivo maior, que não é de inclusão social, mas de libertação.
José Levino é historiador