A Reforma Trabalhista, que entrará em vigor em novembro, já começa a atingir os trabalhadores. Ao contrário do que diziam seus defensores, a Reforma trouxe insegurança e demissões em várias empresas, conforme denúncias feitas no Ministério Público do Trabalho (MPT). Essas e outras mentiras sobre a jornada intermitente, uma das principais alterações da Reforma defendida como modernização das relações de trabalho, foram desmascaradas em entrevista com a procuradora do trabalho do MPT de Pernambuco, Vanessa Patriota.
Ludmila Outtes e Thiago Santos, Recife
A Verdade – O que é a jornada intermitente proposta pela Reforma Trabalhista e a diferença entre ela e a jornada parcial existente?
Vanessa Patriota – No contrato de trabalho em tempo parcial há uma jornada definida. A jornada intermitente é diferente. Nela não há estipulação do horário, não há, inclusive, determinação de quantas horas o trabalhador vai trabalhar por semana ou por mês. Então a situação de vulnerabilidade do trabalhador é muito grande, porque ele não sabe com quanto ele vai contar no final do mês para pagar as contas dele. A jornada intermitente acaba fazendo com que o trabalhador receba pelas horas efetivamente trabalhadas, que vai de encontro ao pilar mesmo de sustentação do direito do trabalho. No Brasil, sempre se estabeleceu que o trabalhador seria remunerado pelo tempo em que está à disposição do empregador, mesmo que o empregador diga “neste momento, a produção caiu e você vai ficar aí aguardando para começar a trabalhar”, porque isso aí é o risco da atividade econômica que é do empregador.
No caso da jornada intermitente, trazida pela reforma trabalhista, se transfere o risco da atividade econômica do empregador para o empregado. E esse empregado não vai ter garantia quanto ao mínimo de um contrato de trabalho, que é saber quanto recebe e quando vai trabalhar.
Se a gente analisar direitinho, um contrato em tempo parcial hoje equivale a mais ou menos 53% da quantidade de horas de um contrato em tempo integral, que é de 44 horas semanais. Com a alteração que foi feita no contrato em tempo parcial pela Reforma, é possível o contrato em tempo parcial de até 30 horas semanais: aumentou-se o número de horas e se tornou possível, se o contrato for de até 26 horas, a realização de horas extras. Então, se a gente tem um contrato de 26 horas semanais com mais 2 horas extras por dia, então o total dessa jornada semanal do contrato parcial vai se aproximar muito do total da jornada de tempo integral. Ele vai corresponder a 70% da jornada integral. Então isso vai fazer com que seja interessante para o empregador contratar o trabalhador a tempo parcial, já que ele vai ter aquele trabalhador praticamente pela mesma quantidade de horas que ele teria em tempo integral, só que pagando menos direitos, menos benefícios.
O que o Ministério Público do Trabalho (MPT) imagina que vai acontecer? Uma substituição de contratos de trabalho em tempo integral por contratos de trabalho em tempo parcial. Isso já se observou, por exemplo, na Europa, após a crise de 2008, quando foi incentivada na União Europeia a contratação de trabalho em tempo parcial, e o que se observou é que não houve aumento de postos de trabalho, houve substituição de postos de trabalho em tempo integral por postos de trabalho em tempo parcial.
E ganhando por hora trabalhada, o trabalhador pode receber menos do que o valor do salário mínimo?
É uma situação complicada de a gente dizer, porque o MPT entende que a reforma trabalhista é inconstitucional quase do começo ao fim. Ela é eivada de inconstitucionalidades. A gente não sabe ainda como vai ser o posicionamento do Judiciário em relação a ela. Mas nós entendemos que a jornada intermitente está afrontando o Protocolo de São Salvador, que foi ratificado pelo Brasil, segundo o qual depois que o país atinge um determinado patamar de direitos sociais ele não pode regredir, ele não pode diminuir os direitos sociais. Ela afronta dispositivos constitucionais, como o caput do artigo 7º da Constituição Federal, que estabelece uma progressividade dos direitos sociais, ou seja, ali a Constituição elenca uma série de direitos trabalhistas, além de outros que visem à melhoria das condições de trabalho.
Como o empresariado vai reagir a ela, e como o Judiciário vai se posicionar é o que a gente vai ver com a entrada em vigor. De fato, eu imagino que sim, que vai haver um aumento de contratação por hora com salário abaixo do mínimo constitucional, que, de fato, essa foi a intenção do legislador ao aprovar a reforma trabalhista. Um caso emblemático, inclusive, foi a denúncia contra o McDonalds¹, que estabelecia a jornada intermitente em que os trabalhadores chegavam a receber menos do que o salário mínimo.
Como ficam os trabalhadores que têm reclamações trabalhistas deste tipo (pagamento abaixo do mínimo ou o não pagamento de seus vencimentos em virtude da jornada parcial)?
A reforma não pode atingir quem já tem ação trabalhista ajuizada. Aliás, os direitos dos trabalhadores, até a entrada em vigor da reforma trabalhista, vão ser observados com base na legislação vigente agora, com base no que tem na CLT. Em termos de direito material, qualquer alteração só pode incidir sob o contrato de trabalho a partir da entrada em vigor da lei. Até então, nada muda para quem tiver com reclamação trabalhista. Por exemplo, a reforma trabalhista acabou com as horas in intinere, mas, até a véspera da entrada em vigor da reforma trabalhista, quem trabalhou tem o direito a receber pelas horas in intinere, que são as horas de deslocamento, as horas que o trabalhador leva para ir e voltar do trabalho quando este é desenvolvido em local de difícil acesso, não servido de transporte público regular, e em que cabe ao empregador oferecer o transporte para o trabalhador chegar ao local de trabalho.
Com essa possibilidade da jornada intermitente, os trabalhadores que trabalham em regime de plantão, como os trabalhadores da saúde, por exemplo, podem ser afetados?
Quem está em regime de plantão não vai ser enquadrado na jornada intermitente, pois já tem fixada sua jornada. Também possivelmente não vai ser o caso da jornada parcial, que tem o número de horas menor. Independentemente de ser pago por hora, o repouso semanal remunerado tem que ser garantido.
Há denúncias atualmente de que as empresas estão promovendo demissões para depois efetuar novos contratos pela nova regra trabalhista?
Nós já temos conhecimento de que isto está acontecendo, inclusive foi noticiado recentemente pela imprensa a situação de alguns bancos que estão demitindo, salvo engano, o Bradesco, e de algumas empresas que estão desligando os trabalhadores. Isso já era absolutamente previsível.
É muito engraçado porque, durante os trâmites da Reforma Trabalhista, seus defensores diziam que ela serviria para gerar emprego, que a CLT era obsoleta e que era importante terceirizar para reduzir custos. São três falácias.
Primeiro, a CLT era de 1943, mas, de lá para cá, mais de 85% dela já foi reformada. Alguns dispositivos sofreram mais de uma alteração. Então a CLT é uma senhora moderníssima que foi evoluindo ao longo do tempo.
A segunda falácia é que terceirizar só reduz custos com sonegação de direitos trabalhistas. O raciocínio é muito simples: se eu contratar diretamente o trabalhador, eu vou pagar salários e benefícios impostos; se eu contratar o trabalhador através de outra empresa, eu vou pagar salários e benefícios impostos e o lucro da outra empresa. Então a terceirização legítima implica em aumento de custos. Ela só se justifica quando a empresa tomadora de serviços não tem conhecimento, know-how, não é especializada naquilo. Por exemplo, eu tenho uma fábrica de brinquedos; eu sei fabricar brinquedos, mas quero servir refeições pros meus empregados. Como eu não sei fornecer refeições, eu contrato um restaurante, mesmo sabendo que vou pagar inclusive o lucro da empresa que vai fornecer a refeição. Eu ganho em produtividade porque eu vou focar minha atenção naquilo que eu sei fazer, que é fabricar brinquedos. Só vai implicar em redução de custos se a empresa que for contratada pagar salário menor, não pagar as horas extras, não conceder os intervalos para descanso. Então, terceirização com redução de custos, só com sonegação de direitos.
Por fim, a terceira falácia, que é a geração de emprego. O que gera emprego é o aumento de demanda por bens e serviços. Nenhuma empresa, nenhum empresário em sã consciência, vai contratar mais só porque o salário está mais baixo. Se eu só preciso de 100 trabalhadores pra minha linha de produção, eu não vou contratar 150. A pessoa só vai contratar mais se houver a necessidade de contratar mais. E só se produz mais se a sociedade tiver comprando mais. Então é óbvio que, nesse processo, o que vai acontecer é uma maior concentração de lucro nas mãos das empresas e menor poder de compra da sociedade, que não vai provocar aumento de postos de trabalho. Da mesma forma que, com o aumento da jornada de trabalho, como é que a gente vai gerar emprego? Gerar emprego mexendo na jornada de trabalho, só se for reduzindo a jornada para contratar mais.
O que vai acontecer é a substituição de trabalhadores com maiores garantias por contratos de trabalho mais precários, do contrato em tempo integral por contrato em tempo parcial, de contratação direta por contratação por empresas prestadoras de serviços que vão pagar salários menores. Isso já era imaginado. Agora é uma nova forma de luta que o MPT vai ter e que eu acho que a importância dos sindicatos nesse processo é muito grande.
¹ O Ministério Público do Trabalho (MPT) processou a Arcos Dourados (maior franquia da Mcdonalds no Brasil) após constatar que os funcionários assinavam contrato de trabalho, mas não sabiam qual era o horário de entrada e saída nem o tempo diário de permanência na empresa, e só pagava pelas horas efetivamente trabalhadas, apesar do trabalhador ficar à disposição da empresa. O MPT apresentou na Ação Civil Pública exemplos da evolução salarial de ex-empregados da empresa, obtida a partir dos contracheques. De setembro de 2009 a fevereiro de 2010, um trabalhador ganhou salários que variaram de R$ 482,23 a R$ 203,46. Porém, as irregularidades continuam.