Pedro Casaldáliga fez a opção de viver e lutar com o povo pobre do Brasil. Ele nasceu na província de Barcelona, Catalunha (que luta para ser independente da Espanha), no dia 16 de fevereiro de 1928. Está perto de completar 90 anos de vida e luta; por isso, esta singela homenagem e reverência. O Mal de Parkinson trava seus movimentos e dificulta sua voz, mas não a lucidez. Ele permanece com a sua “Fé de guerrilheiro e amor de revolução”.
Ordenou-se sacerdote em 1943 e optou por ser missionário no Brasil em 1968. Um ano significativo. Para a Igreja Católica, foi o ano da Conferência Episcopal de Medellín, Colômbia, convocada pelo papa Paulo VI para promover a adaptação da Igreja latino-americana às resoluções do Concílio Vaticano II. A Conferência se pronunciou a favor da opção preferencial pelos pobres, fortalecendo a Teologia da Libertação formulada nesse Continente. Em nível geral, foi o ano de grandes mobilizações da juventude do Planeta, inclusive no Brasil, com o Movimento Estudantil liderando manifestações de massa nas grandes cidades brasileiras, que culminaram com o endurecimento do regime, a partir da edição do AI-5.
Entretanto, o padre Pedro Casaldáliga optou pelo campo, se instalando em São Félix do Araguaia – Mato Grosso –, região marcada pela concentração latifundiária, pelo analfabetismo, pela violência contra os camponeses pobres e sem-terra. Adepto da Teologia da Libertação, ele organiza a pastoral voltada para a defesa dos direitos humanos dos camponeses e indígenas, fomenta a organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e adota um sistema de democracia participativa, com as decisões tomadas coletivamente, sempre ouvindo as bases. É sagrado bispo em 1971. Foi um dos criadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismos vinculados à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
As perseguições e ameaças estiveram sempre presentes. O momento mais trágico foi o assassinato, a seu lado, do padre João Bosco Penido Burnier. Ambos pernoitavam no distrito de Ribeirão Cascalheira, distrito de Barra do Garças (MT), quando souberam da prisão de duas mulheres, que estavam sendo torturadas na delegacia, chegando seus gritos a serem ouvidos na pequena vila. Foram os dois à delegacia pedir o fim da transgressão e o respeito à pessoa humana. Um cabo da PM os recebeu a bala, acertando o padre. Revoltada, a população destruiu a delegacia; em seu lugar, funciona hoje uma capela.
Nos anos seguintes, tantos outros camponeses, indígenas e seus apoiadores – padres, freiras, advogados, etc. – foram assassinados por lutarem pela reforma agrária, pela demarcação do território e autonomia dos indígenas. Para honrar sua memória e propagar o seu exemplo, dom Pedro criou a Romaria da Terra, que acontece anualmente.
Um verdadeiro pastor e profeta
Seu lema: “nada possuir; nada carregar; nada pedir; nada calar; nada matar”. Casa simples, vestimenta de camponês, ele trocou a mitra pelo chapéu de palha, o anel de ouro dos bispos pelo anel de tucum1, os sapatos pelas sandálias. A ditadura civil-militar tentou expulsá-lo várias vezes, mas recuou diante da solidariedade do mundo inteiro ao franzino bispo, que disse em alto e bom som: “Creio na internacional/ Das frontes alevantadas/Na voz de igual a igual/ E das mãos entrelaçadas…”.
Tal qual o seu Mestre, Jesus de Nazaré, nenhuma ameaça o fez recuar e calar a voz que denunciava sempre os desmandos do regime e o modelo capitalista que gera riqueza para meia dúzia e pobreza para a maioria: “E chamo a Ordem de mal/E o Progresso de mentira/Tenho menos paz que ira/Tenho mais amor que paz”.
O massacre não calará a voz de quem luta
Se a situação de violência contra os camponeses pobres, sem-terra e indígenas nunca conheceu um momento de trégua, há um aguçamento evidente após o golpe jurídico-parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff (PT) e pôs o governo do país nas mãos dos setores mais conservadores e entreguistas das classes dominantes, representados pelo PMDB de Michel Temer.
2016 foi o mais violento dos últimos 13 anos no campo. 2017 apresentou uma média de cinco assassinatos de camponeses por mês. Em 20 de abril do ano passado, nove camponeses foram assassinados na gleba Taquaruçu, município de Colniza (MT). Mesmo com suas limitações, Pedro Casaldáliga fez questão de participar da reunião da Diocese, da qual é bispo emérito, pois renunciou em 2005 por razões de saúde (o bispo atual é Adriano Ciocca Vasino), na qual foi elaborada nota em relação ao tema da violência contra o povo: “(…) Na semana em que lamentamos o massacre de Eldorado do Carajás, que vitimou 19 lutadoras e lutadores do povo, somos surpreendidos por outro massacre no campo. Temos a certeza de que o massacre ocorrido jamais roubará os sonhos e as esperanças do povo. E jamais calará a voz das comunidades que lutam”.
Firmeza Revolucionária
90 anos. Um exemplo de firmeza revolucionária. Dom Pedro não reclama de sua condição. Não fala de morte. Continua disciplinado, se adaptando à vida numa cadeira de rodas, submetendo-se à rotina dos exercícios fisioterápicos e antenado no que acontece. Feliz pela eleição do papa Francisco. Mas, acima de tudo, como disse a repórteres que o entrevistavam: “Fé e Esperança. Sempre. Vamos, enquanto isso, tocando o barco”.
Coerente com a sua poesia: “Incito à subversão/Contra o poder e o dinheiro/Quero subverter a lei/Que perverte o povo em grei/E ao governo em carniceiro/…Creio na foice e no feixe/Destas espigas caídas/Uma Morte e tantas vidas/Creio nesta foice que avança/Sob este sol sem disfarce/E na comum esperança”2.
Assim é Casaldáliga. Simplesmente Pedro. Firme como uma rocha. O eterno bispo do povo.
(José Levino é historiador)
Notas:
1 O Anel de tucum é feito há séculos com madeira nativa da Amazônia. Utilizado pelos indígenas e pelos escravos como símbolo de união. Foi adotado por dom Pedro Casaldáliga e por tantos lutadores e lutadoras do povo como sinal de adesão à causa dos oprimidos.
2 Os versos citados entre aspas neste artigo foram extraídos do poema de dom Pedro Casaldáliga, intitulado “Canção da Foice e do Feixe”.
Canção da foice e o feixe
Me chamarão subversivo.
E lhes direi: eu o sou.
Por meu Povo em luta, vivo.
Com meu Povo em marcha, vou.
Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.
E entre Evangelho e canção
sofro e digo o que quero.
Se escandalizo, primeiro
queimei o próprio coração
ao fogo desta Paixão,
cruz de Seu mesmo Madeiro.
Incito à subversão
contra o Poder e o Dinheiro.
Quero subverter a Lei
que perverte ao Povo em grei
e ao Governo em carniceiro.
(Meu Pastor se faz Cordeiro.
Servidor se fez meu Rei.)
Creio na Internacional
das frontes alevantadas,
da voz de igual a igual
e das mãos enlaçadas…
E chamo a Ordem de mal,
e ao Progresso de mentira.
Tenho menos paz que ira.
Tenho mais amor que paz.
… Creio na foice e no feixe
destas espigas caídas:
uma Morte e tantas vidas!
Creio nesta foice que avança
– sob este sol sem disfarce
e na comum Esperança –
tão encurvada e tenaz!