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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Conjuração mineira: uma revolução poética

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Tiradentes, o mártir da Independência, homem do povo, não escrevia, mas apreciava a poesia e aquelas ideias libertárias de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), Cláudio Manoel da Costa (1729-1789) e José Inácio de Alvarenga Peixoto (1742-1792). Os três poetas cantavam pela independência e por uma república com igualdade, liberdade e fraternidade, como pregavam os iluministas franceses, filósofos da burguesia, então revolucionária, que tomou o poder em 1789, mesmo ano em que os mineiros também tentaram libertar o Brasil do jugo colonial.

Debelada a revolta, Tiradentes deu a sua vida: “daria dez, se as tivesse”. E com os poetas, o que aconteceu? Cláudio Manoel da Costa morreu numa prisão em Minas Gerais (suicídio ou assassinato?); Inácio José de Alvarenga, condenado ao degredo perpétuo, morreu na África e Tomás Antônio Gonzaga, também degredado, morreu em Moçambique (África).

A conjuração libertadora continuou inspirando poetas pelos anos afora. Segue trecho do Hyno a Tiradentes, publicado pela imprensa mineira no dia 21 de abril de 1882, autoria de Bernardo Guimarães: “O teu sangue generoso/ Nesta terra rociada/ Fez brotar da independência/ A semente abençoada”.

O grande Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) também homenageou a conjuração. Como diz o título do poema, Museu da Independência, museu contém o passado e provoca a reflexão de como se encontra a realidade, após a derrota do movimento libertário: “São palavras no chão/ amores nos autos/ As casas ainda restam/ Os amores mais não./ Macia flor de olvido/ sem aromas governas/ o tempo ingovernável/ Muros pranteiam. Só”.

Cecília Meireles (1901-1964) dedicou todo um romanceiro à luta de libertação nacional liderada por Vila Rica. Com fundamento na luta dos conjurados ou “inconfidentes” mineiros, trata da luta por independência e liberdade. “Liberdade, esta palavra que o ser humano alimenta/ que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Vários romances compõem o extenso poema, não tão longo quanto os anos de luta por um amanhã feliz e radiante. A poetisa invoca a morte do herói e o ambiente em que ela aconteceu: “Vale a voz do Brigadeiro sobre o povo e sobre a tropa, louvando a augusta Rainha, já louca e fora do trono – na sua proclamação. Ó meio-dia confuso, ó vinte-e-um de abril sinistro, que intrigas de ouro e de sonho houve em tua formação?”. “Tudo me fala e entende do tesouro arrancado a estas Minas enganosas, com sangue sobre a espada, a cruz e o louro. Tudo me fala e entendo: escuto as rosas e os girassóis destes jardins, que um dia foram terras e areias dolorosas, por onde o passo da ambição rugia; por onde se arrastava, esquartejado, o mártir sem direito de agonia”. “E, atrás deles, filhos, netos, seguindo os antepassados, vêm deixar a sua vida, caindo nos mesmos laços, perdidos na mesma sede, teimosos, desesperados, por minas de prata e de ouro curtindo destino ingrato”.

A ambição de alguns gera o sofrimento, a contradição, a revolta de muitos e a luta: “Pelos córregos, definham negros, a rodar bateias. Morre-se de febre e fome sobre a riqueza da terra: uns querem metais luzentes, outros, as redradas pedras. Ladrões e contrabandistas estão cercando os caminhos; cada família disputa privilégios mais antigos”. Há revolta e lamento dos sofridos: “Já se ouve cantar o negro. Por onde se encontrarão essas estrelas sem jaça que livram da escravidão, pedras que, melhor que os homens, trazem luz no coração? Já se ouve cantar o negro. Chora neblina, a alvorada. Pedra miúda não vale: liberdade é pedra grada…”.

As ideias de liberdade trazem a esperança de um novo dia: “As verdades e as quimeras. Outras leis, outras pessoas. Novo mundo que começa. Nova raça. Outro destino. Planos de melhores eras. E os inimigos atentos, que, de olhos sinistros, velam. E os aleives. E as denúncias. E as ideias”. O povo está revoltado. As elites nacionais também, pois já não aguentam a derrama, a cobrança de impostos, quer se ache ou não o ouro. Basta uma faísca para incendiar a pradaria, pensou aquele grupo de conjurados. Vamos fazer a Revolução, pensaram poetas, padres e o homem do povo, alferes, Tiradentes, porta-voz das gentes pobres. “Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, entre sigilo e espionagem, acontece a Inconfidência. E diz o Vigário ao Poeta: “Escreva-me aquela letra do versinho de Vergílio… E dá-lhe o papel e a pena. E diz o Poeta ao Vigário, com dramática prudência: “Tenha meus dedos cortados, antes que tal verso escrevam… LIBERDADE, AINDA QUE TARDE, ouve-se em redor da mesa. E a bandeira já está viva, e sobe, na noite imensa. E os seus tristes inventores já são réus – pois se atreveram a falar em Liberdade”.

Quem era o homem do povo, que se reunia com os intelectuais e ia para o meio popular preparar o levante?  “Águas de ouro puro seu cavalo bebe. Entre sede e espuma, os diamantes fervem… (A terra tão rica e – ó almas inertes! – o povo tão pobre… Ninguém que proteste! Se fossem como ele, a alto sonho entregue!) Suspiram as aves. A tarde escurece. (Voltará fidalgo, livre de reveses, com tantos cruzados…) Discute. Reflete. Brinda aos novos tempos! Soldados, mulheres, estalajadeiros, a todos diverte. (Por todos trabalha, a todos promete sossego e ventura, o animoso Alferes)”.

 Mas quase sempre aparece na organização alguém que não desenvolve o espírito de coletividade e pensa em se dar bem sozinho. E trai. Judas. Joaquim Silvério dos Reis (só podia ser): “Ai, que o traiçoeiro invejoso junta às ambições a astúcia. Vede a pena como enrola arabescos de volúpia, entre as palavras sinistras desta carta de denúncia!”. É a história: “(No grande espelho do tempo, cada vida se retrata: os heróis, em seus degredos ou mortos em plena praça; os delatores, cobrando o preço das suas cartas…)”.

O próprio povo está revoltado, mas poucos aderem. Têm esperança, mas não se comprometem. Alguns acham Tiradentes um louco: “Passou um louco, montado. Passou um louco, a falar que isto era uma terra grande e que a ia libertar. Passou num macho rosilho. E, sem parar o animal, falava contra o governo, contra as leis de Portugal”. “Por aqui passava um homem… e como o povo se ria! – No entanto, à sua passagem, tudo era como alegria”.

Presos os revoltosos, os intelectuais se rendem; negam, jogam o peso da rebeldia no homem do povo, no alferes, tirador de dentes.  “Direi quanto for preciso, tudo quanto me inocente… Que alma tenho? Tenho corpo! E o medo agarrou-me o peito… E o medo me envolve e obriga… Todo coberto de medo, juro, minto, afirmo, assino. Condeno. (Mas estou salvo!) Para mim, só é verdade aquilo que me convém”.

Cláudio Manoel da Costa não suporta e morre na prisão; ou é assassinado? “Dizem que o viram ferido, ferido, e não sufocado: de borco em poça de sangue, por um punhal traspassado. Dizem que não foi atilho nem punhal atravessado, mas veneno que lhe deram, na comida misturado. E que chegaram doutores, e deixaram declarado que o morto não se matara, mas que fora assassinado”.

 O que ocorre nos porões das ditaduras das monarquias ou das repúblicas burguesas? “Não creio que fosse morto por um atilho encarnado, nem por veneno trazido, nem por punhal enterrado. Nem creio que houvesse dito o que lhe fora imputado. Sempre há um malvado que escreva o que dite outro malvado, e por baixo ponha o nome que se quer ver acusado”.

E agora, que esperança resta? “Que tempos medonhos chegam, depois de tão dura prova? Quem vai saber, no futuro, o que se aprova ou reprova? De que alma é que vai ser feita essa humanidade nova?”. Mas o homem do povo não foge da responsabilidade. Assume sua opção em prol da liberdade e da independência. Ao receber a sentença de morte, brada: “Se dez vidas tivesse, dez vidas daria. E segue tranquilo para o cadafalso naquele 21 de abril de 1792, mais de dois séculos atrás, e nunca esquecido. Joaquim José da Silva Xavier. Herói. Símbolo. Alguém lembra dos que o assassinaram? “Tudo leva na memória: em campos longos e vagos, tristes mulheres que ocultam seus filhos desamparados. Longe, longe, longe, longe, no mais profundo passado…, pois agora é quase um morto, que caminha sem cansaço, que por seu pé sobe à forca, diante daquele aparato…”.

Seu corpo despedaçado, sua memória incólume, seu pensamento de uma nação soberana, justa, independente, ainda não se realizou. Mas sua bandeira continua tremulando nas mãos dos operários, dos camponeses, dos quilombolas, dos indígenas, das periferias sofridas, que compõem o proletariado brasileiro, única classe que pode libertar a si própria e à sua, nossa pátria. Tiradentes Vive!

José Levino é historiador

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