A arte e a cultura sempre se colocaram como verdadeiras trincheiras de luta e resistência, sobretudo em momentos de crise. Foi assim com o movimento Nova Canção no Chile, os festivais de MPB durante os anos 60 no Brasil ou as canções contra a guerra do Vietnam nos EUA. Nesse ano de 2018, 5 discos lançados por grandes nomes de nossa música conseguem trazer uma reflexão, quase um Raios-X do momento histórico que estamos vivendo. Se o papel da arte é também questionar, fazer pensar, por o dedo na ferida, esses 5 discos conseguem bem fazer isso. São eles:
- Lenine-“Em Trânsito”: lançado em maio de 2018. É o 13º disco da carreira do artista pernambucano, sendo o 7º de inéditas. Quando lançado, o cantor afirmou ser “canções em tom de cinza”, referindo-se ao clima em que as músicas foram produzidas, criadas e registradas, e uma “tentativa de apresentar o caos em que a gente vive”. Destaques no disco para as canções “Sublinhe e Revele”,“Intolerância”, carro chefe do disco e “Umbigo”:
“Gosto muito de conversar comigo/Umbigo meu nome é espelho/Não dou ouvidos nem peço conselhos/Umbigo meu nome é certeza”. Sinal dos tempos.
- Mundo Livre S/A-“A Dança dos Não Famosos”: lançado em Julho de 2018, é o 8º disco da banda pernambucana, expoente do movimento Mangue Beat, que consagrou nomes como Otto e Chico Science ao mundo, com uma fusão de música, artes e engajamento socioambiental, inspiração até os dias de hoje. Sem dúvida esse não apenas mais um disco do grupo, conhecido pelo posicionamento político crítico frente a tudo que ocorre em nosso país, mais o disco mais politizado da banda conduzido por Fred 04, autor do Manifesto do Mangue Beat de 1992, intitulado “Caranguejos com Cérebro”. Em sua “Dança”, Mundo Livre traça os pormenores do golpe de 2016, com direito a pronunciamento de Michel Temer (“Eletrochoque de Gestão”), o título criticando o famoso programa do Faustão (Dança dos Famosos) e a capa, que trás a foto do estudante goiano, Matheus Ferreira da Silva, que ficou 12 dias em coma na UTI, com traumatismo craniano após ser agredido pela PM, em maio de 2017 em protesto contra Temer. Sobre as manifestações, aliás, o grupo deixa explícito em músicas como “Meu Nome está no Topo da Sagrada Planilha” e “Vem Pra rua Tomar na Cabeça” onde o cantor solta:
“A polícia mata/ Fora Rede Globo/golpe de estado/ A democracia é uma ditadura disfarçada” (…)
- Marcelo Yuka-“Canções Para Depois do Ódio”: Lançado em Janeiro de 2017, é primeiro disco solo do músico, fundador e baterista da banda O Rappa, que ficou paraplégico após uma tentativa de assalto em novembro de 2000. Yuka é um dos mais respeitados artistas de nossa música dos anos 90 pra cá. É dele a autoria de hitscomo “Minha Alma- (A paz que eu não quero)”, “O que Sobrou do Céu”, “Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro”, “Tribunal de Rua”, entre outras. Em 2005 lançou “Sangueaudiência”, projeto com a sua banda F.UR.T.O, um dos melhores discos da chamada música popular brasileira. Agora, com suas “Canções Para Depois do Ódio”, Yuka e parceiros como Seu Jorge, Céu e Black Alien, registram uma esperança no futuro com letras que tratam do nosso cotidiano e pede esperança no amanhã, como “Agora Nesse Momento”:
“Não me acorde, ansiedade/
Como testemunha do desejo/
Pois precisamos de mais barulho/
Mais barulho do que bombas/
Tanto fora quanto dentro” (…)
- Elza Soares- “Deus é Mulher”: Esse é o 33º disco da cantora carioca, dona de uma voz e de uma história impar, de resistência e luta. Lançado em abril de 2018, o disco faz jus ao apelido carinhoso de “A voz dos sem voz”. Sem cantar o ódio ou medo, o mais recente trabalho de Elza denuncia a intolerância religiosa, como em “Credo”:
“o amor é o deus que não cabe na religião/ Mas confesso qual é o meu temor/ Essa é a luz que ofusca limite/ Essa gente que olha pro céu e tropeça no chão”…)
A situação e a luta da mulher em seu dia a dia, a força da mulher negra, seus embates e enfrentamentos diante de um mundo patriarcal e capitalista está presente em todo o disco, com destaque para “Dentro de Cada Um”:
“A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo/A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco/ De dentro da cara a tapa de quem já levou porrada na vida /De dentro da mala do cara que te esquartejou te encheu de ferida /Daquela menina acuada que tanto sofreu e morreu sem guarida” (…)
E o projeto Escola Sem Partido, com a canção “Exu nas Escolas”:
“se Jesus Cristo tivesse morrido nos dias de hoje com ética/em toda casa, ao invés de uma cruz, teria uma cadeira elétrica”
- Devotos- “O Fim que Nunca Acaba”: Lançado em Setembro de 2018, o 7º disco da banda de Punk Rock pernambucana, natural do Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife. A banda, que comemora 30 anos de estrada, é um dos grupos pioneiros da música alternativa no estado. Com letras ácidas e criticas sobre a realidade do país e de suas periferias, é um retrato de como anda nosso Brasil, como em “De Andada” (Tem gente que anda com bíblia/ Que anda com arma e que anda fardado), “Periferia Fria” e “Fé Demais” (Eu tenho fé na mudança dos homens). Com uma arte de capa bem elaborada pelo guitarrista Neilton Carvalho, multiartista, o grupo segue representando a comunidade do Alto José do Pinho, com muita arte e atitude, sempre com um discurso politizado e consciente.
Esses cinco discos ajudam bem a entender esse momento turbulento que estamos passando. E a arte, por meio de suas mais diversas linguagens, como a música, tem sempre cumprido esse papel de não nos deixar sucumbir. Afinal, engana-se quem acha que a arte não tem lado ou deve manter-se neutra nessa tão escancarada luta de classe.
Clóvis Maia- Pernambuco