O cotidiano de uma desempregada

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“Dayane, desempregada, vende pipoca nos ônibus. Deixa o filho na creche e vai trabalhar. Apura cerca de 30 reais  por dia e recebe 200 reais de pensão alimentícia da criança. Vive com uns 700 reais por mês. A pensão, que é certa, ajuda a pagar o aluguel. Comida ela se vira, o menino come na creche e ela dá o jeito dela. Nos fins de semana só descansa no domingo, que é quando leva o menino pra passear. Deixou o pai dele porque ele batia nela, tentou voltar mas ele bateu de novo. Achou melhor viver separada mesmo, apesar de ainda gostar dele. Durante o dia escuta várias piadinhas e assédio dos homens no busão, mas ignora porque precisa desse dinheiro pra viver. Se tivesse um marido seria mais fácil, mas viver apanhando que nem um bicho não é vida pra ninguém… ’’

Dayane é um exemplo de uma mulher brasileira que vive na informalidade, enfrentando dupla jornada e assédio sexual. A vida difícil que a maior parte das mulheres levam é material para diversos movimentos e organizações sociais se mobilizarem. O feminismo, em suas variadas vertentes, cresceu e trouxe vários debates para o dia a dia. No entanto, por mais que haja boa vontade e muita dedicação desses grupos em prol da causa das mulheres, a falta de um projeto político claro e objetivo acaba sendo um empecilho para uma melhoria de fato em suas vidas.

As mulheres vem sendo oprimidas ao longo da história já a muito tempo, mas na sociedade capitalista a opressão vem sem véus. A mulher, que antes participava da produção com toda a sua família, se vê agora encarregada de, além da profissão que tiver fora de casa, cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos, devendo também seguir estritamente os padrões de feminilidade e beleza que a mídia impõe. Segundo Evelyn Reed:

O capitalismo introduziu a industrialização em grande escala e com ela fez surgir as massas proletárias que habitam as cidades e aglomerações industriais.Isto significou uma mudança na posição econômica da mulher. Enquanto a agricultura e o pequeno artesanato continuavam dominando na produção,todos os membros de uma família, incluindo mulheres e crianças, ajudavam no trabalho que mantinha a família e a comunidade. O trabalho coletivo, dentro do âmbito familiar, era o modo característico de vida nas regiões agrícolas, nas pequenas oficinas de artesanato e indústrias domésticas. Mas com o surgimento do capitalismo industrial, a família produtiva da época pré-industrial foi substituída pelas famílias consumidoras, não produtivas, próprias das zonas urbanas.Ao transferir grandes massas humanas das granjas e pequenas oficinas ecolocá-las como operários assalariados nas cidades industriais, as mulheres perderam o antigo posto no trabalho produtivo, ficando relegadas à criação dos filhos e aos trabalhos domésticos. Converteram-se em consumidoras totalmente dependentes de alguém que ganhasse seu sustento e pudesse “trazer o pão para casa”.

O papel da mulher passa a ser o trabalho reprodutivo, ou seja, ela é responsável por cuidar dos filhos, do marido e dos idosos, evitando que os capitalistas gastem dinheiro com assistência, já que, sendo mãe e esposa, elas fazem de graça. A partir dessa necessidade, o casamento, que antes era utilizado somente pelos burgueses, passa a ser massificado e imposto também para a classe trabalhadora, com a ajuda da igreja. O casamento precisa ser indissolúvel para os trabalhadores porque o intuito não é o bem estar da família, o amor ou etc, mas sim garantir que aquele trabalhador esteja em condições de ir trabalhar no outro dia sem o investimento do patrão. Apesar disso, a tendência é que, entre os trabalhadores, as relações sejam iniciadas por amor recíproco. Para Kollontai:

A humanidade sonda com inquietação os novos ideais. Mas, basta examiná-los um pouco, detalhadamente, para neles reconhecer, apesar de seus limites não estarem suficientemente demarcados, os traços característicos, pelos quais se unem as tarefas do proletariado, classe social incumbida de se apoderar da fortaleza do futuro.

Aquele que quer encontrar, no labirinto das normas sexuais contraditórias, os germens de relações futuras entre os sexos, mais sadias e que prometam libertar a humanidade da crise sexual, tem, necessariamente, que abandonar os bairros onde habitam as elites, com sua refinada psicologia individualista, e olhar as casas amontoadas dos operários, nas quais, em meio à obscuridade e, ao horror gerado pelo capitalismo, surgem, apesar de tudo, fontes que vivificam o amor e abrem caminho a um novo tipo de entendimento entre homens e mulheres.

 A situação da família está ligada com a situação da mulher, pois é ali na família que se sustenta a sua opressão. O novo tipo de relação que se dá entre homens e mulheres na classe trabalhadora é o início da transformação que essa classe vai trazer para a humanidade. Kollontai ainda diz que ‘toda classe ascendente, nascida como consequência de uma cultura material distinta daquela que a antecedeu no grau anterior da evolução econômica, enriquece toda a humanidade com uma nova ideologia que lhe é característica’.

É justamente nesse ponto que mora o problema entre as mulheres trabalhadoras e as mulheres num geral. As mulheres de todas as classes são oprimidas em maior ou menor grau pelo machismo, mas a forma em que elas sofrem com isso varia de classe em classe. Uma mulher que mora numa favela e é assalariada não possui nenhum interesse em comum com uma mulher burguesa dona de um grande banco, por exemplo.

Propor para as mulheres trabalhadoras bandeiras de luta onde a causa da sua opressão, a sociedade de classes, é deixada de lado por uma ideologia que acredita haver interesses conciliáveis entre todas as mulheres é dizer para elas que temos como resolver os problemas de gênero sem resolver os problemas de classe, o que é claramente equivocado.

Por mais que a mulher rica possa ser discriminada por ser mulher, ela tem a possibilidade de se desenvolver enquanto ser humano. Ela não tem a preocupação em arrumar sua casa, cuidar do seu filho, fazer sua comida. Na sua casa não falta água, possui acesso a saneamento básico e saúde. Seus problemas são limitados, logo, suas reivindicações são atendidas com mais facilidade, e sua aliança com as mulheres de outras classes para por aí. Para ela, conscientizar as pessoas que ‘’lugar de mulher é onde ela quiser’’ e que mulheres podem ocupar espaços antes ocupados pelos homens é o suficiente. A conscientização é um fim em si mesmo, a questão passa a ser pessoal e não mais política, pois o foco serão as relações individuais, em que a pessoa x deverá se tocar que o machismo é errado e ponto.

Para a mulher trabalhadora, a necessidade de mão de obra barata é o que mantém seus problemas de pé. O seu trabalho mal pago fora de casa, juntamente com o trabalho não remunerado que faz dentro de casa a impede de se desenvolver enquanto pessoa. Ser pobre, trabalhadora, não deixa ela ter acesso a cultura, lazer, saúde, educação, etc. Ao contrário, a vida corrida e cheia de privações que a mulher pobre leva limita a sua existência. Para essas mulheres, as reivindicações são muitas e bem mais complicadas porque a sua luta é capaz de mudar toda a sociedade.

Exatamente por isso que, por mais boa vontade que os grupos feministas possuam, a libertação de mulheres como a Dayane, do início do texto, só é possível se a construção do socialismo for o norte. E para isso, os interesses de classe que as mulheres trabalhadoras carregam devem orientar todas as nossas lutas.

Para entender o que é interesse de classe, vale a pena uma breve explicação sobre o que são classes sociais. Para Marta Harnercker, classes sociais são grupos da sociedade que estão diretamente ligados a produção dos bens materiais e defendem projetos de sociedade de acordo com o local em que ocupam nessa classificação. Classe social é espécie do gênero grupo social. O primeiro se refere ao local econômico ocupado (burguês, proletário, etc) e o segundo as classificações sociais (médicos, engenheiros, pedreiros).

Dentro das classes sociais, em maior ou menor número, há mulheres e elas certamente são oprimidas, mas forma em que elas sentem na pele algo que aparentemente é comum a todas está relacionado a classe que elas ocupam na sociedade.

Isso se explica assim: cada classe possui alguns desejos espontâneos, algo que toca a todos dessa classe, como, por exemplo, o desejo de uma moradia digna, saúde de qualidade e etc para um trabalhador. Esses interesses podem ser divididos em Imediatos e a longo prazo.

  • Os imediatos são aqueles que as classes ou grupos sociais sentem de forma imediata, a partir de um problema urgente de sua vida. A falta de água num bairro, o aumento do salário, o fechamento de uma empresa. Esses problemas mobilizam para uma situação rápida, muitas vezes sem questionar sua origem ou seu verdadeiro motivo de existir.
  • Os de longo prazo são aqueles que estão relacionados diretamente a situação de classe em que se está inserido. Harnecker diz ‘’O interesse estratégico a longo prazo da classe dominante é manter o seu domínio; o da classe dominada é destruir o sistema de dominação. O interesse estratégico do proletariado é destruir o sistema de produção capitalista, origem da sua condição de explorado, destruindo a base em que assenta: a propriedade privada dos meios de produção. ’’

Então, por mais que o interesse imediato supostamente possa ser comum às mulheres das mais diversas classes, os interesses de longo prazo são inconciliáveis porque são opostos entre si. Uma mulher burguesa pode ter alguma pauta específica que também toca a mulher trabalhadora, mas a solução que cada uma delas necessita está ligada com o seu interesse a longo prazo. Por exemplo, o direito à maternidade.

Enquanto a mulher burguesa luta por um parto sem intervenções desnecessárias, a mulher trabalhadora luta por isso e também luta pelo direito à creche, a alimentação da criança, a saúde e etc. No entanto, por mais que essas causas sensibilizem alguns indivíduos de outras classes, só vai mobilizar em peso as trabalhadoras porque são interesses imediatos que são sentidos de forma diferente pela diferença de classe das mulheres.

Por isso, ‘’Se a maneira como os homens produzem os bens materiais constitui o núcleo em torno do qual se organiza toda a sociedade, as transformações dessa sociedade devem consistir em mudanças dessas formas de produção. E por consequência, aqueles que dirigem essas transformações deverão ser aqueles grupos que, pelo seu papel na produção, têm determinados projetos de sociedade a propor.’’.

A melhoria no padrão de vida da mulher proletária é resultado de sua própria luta. Luta por moradia, luta por creche, luta por saneamento básico, enfim, todas suas conquistas são conquistas de sua classe e vão além do problema do machismo.

A mulher trabalhadora que despertou para a luta vai perceber que só a luta de classes, junto de sua classe, vai trazer resultados para a sua vida. A mudança nas formas de produção, a abolição da propriedade privada, virá com o esforço conjunto dos trabalhadores, com toda a sua diversidade, para a construção do socialismo.

As condições desumanas que vivem as mulheres só serão solucionadas com a superação do capitalismo. A dupla ou tripla jornada, a desvalorização de sua mão de obra e os diversos tipos de violência a que elas estão suscetíveis não são fatos isolados do sistema capitalista, são na verdade inerentes a ele. Por isso, uma agenda política para as mulheres deve necessariamente ter incluso como meta principal o fim do capitalismo.

Ana Carolina, Coletivo Fala Alto-PE.